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A APROXIMAÇÃO DO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO COM A COMMON LAW COMO MEIO DE ESTABILIZAÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA

A APROXIMAÇÃO DO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO COM A COMMON LAW COMO MEIO DE ESTABILIZAÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA

Pedro Henrique Martins Mesquita

Francisco Danilo de Souza Gomes

Manoel de Castro Carneiro Neto

 

INTRODUÇÃO

Pelo menos desde o surgimento da sociedade, a justiça sempre foi à busca da humanidade. Como é notória, sua ausência causará todos os males, tornará insustentável a vida em comunidade e fará com que as atividades de cada cidadão não se desenvolvam de forma satisfatória. Como resultado, existe um poder estatal responsável por promover e distribuir a tão almejada justiça, o Poder Judiciário.

O Poder Judiciário deve mostrar a confiança dos cidadãos, que esperam uma regulação judicial verdadeiramente justa, ou seja, de acordo com a legislação em vigor, por meio da igualdade de direitos entre os litigantes e em um prazo razoável. Acontece que esse não é o caso. O Judiciário está perdido e encontra muitas dificuldades no desenvolvimento de seu trabalho. Aos olhos da sociedade, o Judiciário não é mais “justo”. A demanda cada vez maior fez com que a prestação jurisdicional desacelerasse e, por muitas vezes, a atrasou.

Além disso, há também grande insatisfação com os termos judiciais obtidos, pois cada caso de litigante é decidido com base no entendimento de um ou outro juiz, o que torna o recurso à justiça uma espécie de loteria. Um grande número de documentos legais e uma compreensão do melhor direito a ser aplicado levam a uma grande sensação de insegurança, especialmente para aqueles que não entendem o sistema jurídico exato. Se não houver uma resposta correta, ou pelo menos a mesma resposta para todos que buscam a mesma pergunta, realmente parece não haver justiça.

O Brasil sempre afirmou ser um País com base no sistema da Civil Law. No entanto, como a credibilidade e a confiança da sociedade no sistema judiciário diminuíram, devido ao aumento da demanda e ao aumento da compreensão da lei pelas pessoas, uma nova sistemática foi adotada. Nesse sistema, os precedentes judiciais estão se tornando cada vez mais dominantes e gradualmente se aproximando de um sistema misto.

Assim, em 2015, o novo Código de Processo Civil atribuiu aos tribunais uma responsabilidade unificada, cabendo aos tribunais a importante tarefa de manter a estabilidade e integridade dos princípios jurídicos. Nesse caso, é instaurado um precedente judicial vinculativo, que está na origem da tradição da Common Law, que se pretende uniformizar o entendimento da justiça, proporcionar igualdade e segurança jurídica e, assim, reduzir o número de demandas judiciais e recursos.

Assim, a relevância do presente estudo se justifica na possibilidade de o precedente judicial representar uma solução, ainda que parcial, aos problemas afetos à atividade judicial, porém correndo os riscos de não se adaptar à tradição jurídica e aos princípios do processo civil brasileiro.

O objetivo geral deste estudo é analisar, a partir de um breve estudo comparativo, os sistemas brasileiro e inglês, que têm origens distintas – Civil Law e Common law, respectivamente – na criação e no desenvolvimento do sistema jurídico nacional. Os objetivos específicos são: a) definir os termos Common Law e Civil Law; b) definir precedentes; c) identificar as proposições teóricas para adoção das técnicas advindas de solo inglês em um sistema jurídico fundado na Civil Law.

Desse modo, a questão que se apresenta é a seguinte: A incorporação de instrumentos do modelo da Common Law no Brasil e a uniformização das decisões judiciais são soluções para as questões jurídicas apresentadas ao Poder Judiciário brasileiro?

A hipótese para essa pergunta surge, inicialmente, em uma realidade pautada no precedente judicial, que é elemento integrante da Common Law. Já no modelo da Civil Law, a princípio, não se fundamenta uma decisão ou resolução em decisões anteriores, mas, sim, no texto positivado pelo Estado.

Por muitos anos, ambas as tradições foram se refazendo enfrentando as necessidades da sociedade e a evolução do próprio direito. A característica distintiva da Common Law é aceita pela Civil Law quanto à importância do precedente. Isso ocorre porque o juiz entende que aplicar apenas direitos restritos a disposições legais não é suficiente para atender às questões controvertidas trazidas ao Poder Judiciário. Isso porque, tendo em conta as particularidades de cada caso específico, muitas vezes, o legislador pode não prevê-las.

O critério metodológico utilizado para essa investigação e a base lógica do relato dos resultados apresentados baseou-se no método indutivo da pesquisa bibliográfica, com consulta à teoria em livros, artigos científicos e periódicos, e à legislação nacional, o que viabilizou uma investigação criteriosa sobre o tema.

Neste contexto, nasceu a importância de se estudar a teoria dos precedentes judiciais e as suas implicações no Direito brasileiro, já que a importância deste instituto no novo CPC tornou-se uma das questões geradoras dos maiores debates entre juristas e doutrinadores do País.

Pretende-se, portanto, com este ensaio estudar o papel desempenhado pelos precedentes judiciais. A monografia busca compreender tanto o fenômeno do precedente e da sua função quanto o seu fortalecimento pelas alterações legislativas, permitindo perceber quais ponderações devem ser observadas para que não corra mau emprego desse instituto.

 

1 DOS SISTEMAS JURÍDICOS

A manifestação do direito surge no ocidente por meio de dois grandes sistemas jurídicos, quais sejam: Common Law e Civil Law. São estruturas jurídicas com princípios, fontes e normas peculiares, apresentando tanto aproximações quanto grandes distanciamentos na aplicação do direito.

O estudo analítico entre os sistemas jurídicos da Civil Law, também conhecido como romano-germânico, e da Common Law já foi objeto de preocupação de grandes doutrinadores comparatistas. Muitos, sem sombra de dúvida, por meio de informações enriquecedoras, demonstraram com erudição as semelhanças e dessemelhanças entre os modelos.

É importante salientar que a grande diferença existente entre as duas tradições, Common Law e Civil Law, está intimamente ligada pela influência do Direito romano após a queda do Império. No entanto, é necessário relatar alguns conceitos e elementos que identificam, caracterizam e diferem a Common Law da Civil Law.

 

1.1 Common Law: direito através dos costumes e precedentes

Ao falar do sistema, mostra-se imprescindível a explanação da sua evolução histórica. No começo, o Direito anglo-saxão manifestava-se de forma singular em cada localidade, inobstante haver um poder soberano que regia todos os países há época. Sendo assim, o que se observava era a demonstração de um direito primitivo.

De acordo com Pitta (2017), a verdade é que o Direito romano foi estudado na Inglaterra. Predominou durante séculos as universidades inglesas estudarem esse direito.

No entanto, a lei romana teve apenas influência no campo acadêmico, na época juízes e advogados não precisava de um diploma universitário, o que prova que o impacto desse direito na Inglaterra é mínimo. As universidades que se propuseram a lecionar o direito não se baseavam no contencioso, voltado a processos, à atividade judiciária. Eles ensinavam uma moral social apontando regras que mais estavam de acordo com ela.

O período anglo-saxão refere-se ao período anterior à dominação Normanda (1066). Pouco se sabia sobre a lei na época. Entende-se que por volta do século VI, com o advento do cristianismo na Inglaterra, as pessoas descobriram leis escritas em anglo-saxão, enquanto, antes, as leis bárbaras que vigiam eram escritas em latim (Pitta, 2017).

Seguindo-se, a segunda etapa ocorre após a conquista da Normanda, no ano de 1066, marcando-se pela unificação das pequenas tribos em uma sociedade feudal. Fora nesse momento que se iniciou a utilização da expressão Common Law ou Comune Ley para a solução dos conflitos na Inglaterra. As lides eram resolvidas através dos Tribunais Reais, marcadas por processos judiciais formais, aplicados igualmente em todos os conflitos que eram apresentados, por isso a expressão novel de direito comum (Common Law) criada nesta época.

A jurisdição praticada pelo rei ou chanceler tinha por base o caráter absoluto dos poderes do monarca, e, precisamente em razão desse privilégio, as decisões proferidas, de início, eram pautadas pelo senso pessoal de justiça do julgador, o qual intervinha “para tranquilizar sua consciência e fazer uma obra de caridade”.

No entanto, na Common Law, as Cortes Reais atuavam somente nas causas que interessavam à Coroa, enquanto as County Court, dedicadas ao direito local, cuidavam de questões de interesses privados. É por esse motivo que se afirma que “o direito aplicado pelas Cortes Reais apresentou-se, nessas condições, de início, como um direito público, distinto dos costumes locais que as jurisdições tradicionais aplicavam” (David, 1997, p. 4).

Com isso, o desenvolvimento do Direito inglês se tornou a terceira etapa, com a criação de um ramo paralelo denominado de Equity, que, por meio de um Chanceler (originalmente um clérigo), que seguia um processo inspirado na moral e em preceitos religiosos, produzia decisões de equidade, de forma a flexibilizar a rigidez do sistema (Mello, 2008).

Segundo Fagundes (2018), a jurisdição por equidade começou a perder com a restrição de se submeter aos precedentes estabelecidos, sem interferir na Common Law, o que em seguida aprovou todas as cortes a usufruir ambos os sistemas, Common Law e Equity. Por fim, com esse cenário, juntamente com as importantes reformas eleitorais na Inglaterra, em 1832, iniciou-se o processo de amadurecimento legislativo no país, sendo considerado a quarta e última etapa do incremento do Direito inglês.

Ao mencionar o sistema da Common Law, estar-se-á referindo ao modelo de Direito inglês caracterizado por possuir como principal fonte o costume, nascido como forma de oposição ao poder dos feudos pelos Reis ingleses. De acordo com Tucci (2010), a ressalva feita diz que o sistema da Common Law abrange as estruturas judiciárias da Inglaterra, do País de Gales, da Irlanda do Norte e da Escócia, e, sendo assim, todas elas são baseadas no direito casuístico ou case law.

Nesse sentido, David (1997, p. 88) adverte:

“Direito inglês está na origem da maioria dos países de língua inglesa, tendo exercido uma influência considerável sobre o direito de vários países que sofreram numa época de sua história, a dominação britânica. Esses países podem ter se emancipado da Inglaterra e seu direito pode ter adquirido ou conservado características próprias. Mas a marca inglesa muitas vezes permanece profunda nesses países, afetando a maneira de conceber o direito, os conceitos jurídicos utilizados, os métodos e espírito dos juristas.

O sistema inglês ou britânico, como é conhecido impropriamente, não se limita somente à Inglaterra, também sendo empregado nos Estados Unidos (com exceção do Estado da Lousiana, que é partidário da Civil Law), na Austrália, no Canadá (com exceção de Quebec) e na Índia, além de outros países colonizados pela Coroa britânica.

Dessa forma, verifica-se que, desde sua formação, a Common Law mostrou natural vocação para ser um sistema de case law, pois, embora ainda não houvesse um efeito vinculante ao precedente, os operadores do Direito inglês já ressaltavam a relevância dos julgados e a importância de que tais decisões deviam ser seguidas para conferir certeza e continuidade ao direito” (Tucci, 2004, p. 154).

O sistema da Common Law é caracterizado pelo fato de que, na ausência de norma escrita, os juízes tinham que formular uma decisão para o caso concreto (Nunes, 2010, p. 120).

Deve-se apontar, nesse sentido, que a Common Law é o direito criado pelos juízes (judge-made law), em contraposição à Civil Law, que vê o direito criado pelo legislador, sendo as decisões do Poder Judiciário apenas fontes secundárias de criação do direito.

Nos países do sistema da Common Law, a decisão judicial possui um caráter ambivalente. Na medida em que, além de resolver o caso litigioso, possui, também, a força de vinculação do precedente gerado. Nestes países de Common Law, percebe-se a presença da Doctrine of Binding Precedent ou Doctrine of Stare Decisis – teoria do precedente vinculante.

 

1.2 Civil Law: direito através dos Códigos

O sistema romano-germânico, também denominado Civil Law, tem sua origem na Europa continental, podendo-se afirmar que, do ponto de vista científico, surgiu no século 13, com o renascimento dos estudos de Direito romano nas universidades. Nesse sentido, René David (2002, p. 52) afirma que o renascimento dos estudos de Direito romano é o principal fenômeno que marca o nascimento da família de Direito romano-germânica. Os países que pertencem a essa família são, na História, aqueles em que os juristas e práticos do Direito, quer tenham ou não adquirido a sua formação nas universidades, utilizam classificações, conceitos e modos de argumentação dos romanistas.

De acordo com Lemos Junior e Batista (2018), o desenvolvimento da Civil Law aconteceu dentro das universidades, onde não havia preocupação com a prática do Direito, mas, sobretudo com um meio capaz de compreender as regras materiais mais justas, mais conformes à moral. Dessa maneira, a Revolução Francesa foi um marco histórico para o crescimento do sistema jurídico, que já vinha se desenvolvendo na Europa continental.

Segundo Lemos Junior (2018), tornou-se necessário criar um novo sistema jurídico apto a afastar os antigos pensamentos monárquicos e, ao mesmo tempo, por limites na atuação dos magistrados, ainda aliados ao antigo regime. Estabeleceu-se a primazia da lei, para atender à necessidade de controlar a atuação judicial, ficando o trabalho dos juízes limitado à aplicação literal do texto legal.

Portanto, Marinoni (2009, p. 46) afirma:

“Para a Revolução Francesa, a lei seria indispensável para a realização da liberdade e da igualdade. Por este motivo, entendeu-se que a certeza jurídica seria indispensável diante das decisões judiciais, uma vez que, caso os juízes pudessem produzir decisões destoantes da lei, os propósitos revolucionários estariam perdidos ou seriam inalcançáveis. A certeza do Direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei, ou melhor, dizendo, na própria lei. Lembre-se que, com a Revolução Francesa, o poder foi transferido ao Parlamento, que não podia confiar no Judiciário.

O Parlamento conquistou para si a autoridade restrita de criar o Direito, de forma que a pratica dos juízes deveria se restringir somente à declaração da lei.

Sendo assim, na França revolucionária o juiz foi proibido de interpretar a norma; considerando que uma legislação clara e completa garantiria a ele simplesmente aplicar a lei, e, dessa maneira, solucionar os casos litigiosos sem a necessidade de estender ou limitar o alcance da lei” (Lemos Junior, 2018).

O sistema da Civil Law, hoje, é empregado nos países de tradição romano- germânica, entre os quais aqui se destacam, a título meramente de exemplo, a Alemanha, o Brasil, a Espanha, a França, a Itália e Portugal. Com isso, Mello (2008, p. 15) relata:

“Já nos ordenamentos de origem românica, caberia à lei a função de protagonizar a manifestação do direito, incumbindo-se às decisões judiciais papel meramente acessório e mediato, como fonte explicitadora e declaradora do significado do ordenamento positivo. Assim, a determinação da solução aplicável a uma demanda específica dar-se-ia pelo mecanismo da subsunção das situações de fato na regra geral legislada, cujo significado seria revelado através da atividade interpretativa.

Observa-se, assim, que nos países que adotam a Civil Law há uma forte influência da aplicação da positivação do direito. Nesse sistema, o juiz é um mero aplicador da lei. Não há, por parte do magistrado, a criação de direitos.

De acordo com Constituição Federal da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988), existe uma demonstração da presença de um sistema positivado no art. 5º, inciso II, que trata do princípio da legalidade, que é uma das bases de um Estado de Direito – um Estado regido por leis: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

No sistema de Civil Law, o critério básico de decisão se baseia no princípio da legalidade. Não há um espectro muito grande para a liberdade de escolha do juiz. Deve-se pautar na legislação existente. Dessa forma, permite-se uma padronização de decisões, apoiada em um desenvolvimento no sistema de recursos.

Assim, os tribunais superiores auxiliam como “supervisores” da atuação dos magistrados e tribunais dos primeiros graus de jurisdição. Os ensinamentos de Castro (2017, p. 10) concluem que o sistema jurídico do Civil Law caracteriza-se pelo fato de as leis serem a pedra primal da igualdade e da liberdade, posto que objetivasse proibir o juiz de lançar interpretação sobre a letra da lei, fornecendo, para tanto, o que se considerava como sendo uma legislação clara e completa; onde, ao magistrado, caberia apenas proceder à subsunção da norma.

Diante do exposto, Campos (2017) explica que a fonte imediata da Civil Law é a lei, possuindo também outras fontes de interpretação como: princípios gerais do direito, doutrina e jurisprudência. Entretanto, a lei é a fonte imediata e fundamental. Dessa forma, essa sistemática garante que os magistrados só podem aplicar as leis elaboradas pelo Legislativo.

Conclui-se, assim, que existem diferenças entre os dois sistemas, Common Law e Civil Law, onde, no primeiro sistema, ocorre à acepção vinculante e coercitiva do precedente judicial, e, no segundo, em sentido oposto, o precedente tem função interpretativa de cunho persuasivo, orientando e norteando à interpretação da lei pelos magistrados. Nesse sentido, Tavares (2005, p. 128) afirma:

O modelo codificado (civil law) se caracteriza pelo raciocínio abstrato e dedutivo, que estabelece premissas e obtém conclusões por processos lógicos, a partir de normas gerais; ao passo que o modelo de precedente judicial (common law), fortemente centrado na decisão judicial (judge made law), atua por um raciocínio indutivo, pelo qual se busca nos julgados a fonte/norma de decisão dos casos subsequentes.

Observa-se, portanto, que, aos países de Civil Law, as decisões são colocadas como formas declaratórias da interpretação da produção legislativa.

 

2 SISTEMA DE PRECEDENTES DO BRASIL

2.1 A origem e etimologia por traz do precedente

O termo precedente foi utilizado pela primeira vez no ano de 1557 no sistema anglo-saxão. A evolução histórica do sistema da Common Law está ligada a sua doutrina. De acordo com Lênio Streck (2013, 38), “a doutrina dos precedentes estruturou no final do século XVII, a partir de uma mudança no método filosófico que orientava o pensamento da época”.

Segundo Georges Abboud (2013, p. 38-39), o jurista da época, Matthew Hale, afirma que os princípios legais necessitam da repetição para serem verídicos perante os membros de uma sociedade, e essa ideia tornou-se uma teoria do direito. O precedente judicial deveria, junto com a equidade e a legislação, ser fonte imediata do direito para Matthew e para outros juristas que influenciaram na construção de tal teoria. Além do caráter legal, moral e político, o direito é um reflexo histórico da tradição do povo ao qual pertence, devendo preservar a tradição desse povo.

Vale salientar que o Direito inglês sempre foi constituído a partir de regras vindas da rotina da sociedade inglesa, e, nesse sistema, a repercussão das decisões extrapolam o caso concreto, de modo a regulares decisões futuras. Com isso, formou-se o sistema de precedentes, justamente dessa prática já consistente de valorização do caso concreto.

Dessa forma, tem-se a noção de que precedente é uma decisão, bem fundamentada, expressa em determinada lide, que é aplicada, posteriormente, em casos idênticos. Para Câmara (2016, p. 428), quando uma decisão posterior se basear em uma decisão anterior, considera-se um precedente.

Porém, o precedente tornou-se obrigatório somente séculos depois, com a instituição da doutrina do stare decisis (stare decisis et non quieta movere), que  significa, nas palavras do Professor Lênio Streck (2013, p. 30), “continuar com as coisas decididas e não mover as coisas quietas”.

Francisco Rosito (2012, p. 85) refere-se, novamente, aos ensinamentos do Professor Lênio, que o stare decisis não pode ser confundido com a doutrina do precedente. A doutrina do stare decisis só veio no século XIX, quando decidido de forma precisa que os precedentes das cortes superiores passaram a ser obrigatórios quando da sua aplicação em casos análogos, e, em outras palavras, significa a vinculação obrigatória dos precedentes judiciais.

Considera-se que a instituição do stare decisis na doutrina de precedentes foi evitar a discricionariedade na atuação judicial, de forma a garantir a segurança jurídica, equidade e estabilidade do direito. Nas palavras do doutrinador Francisco Rosito (2012): “A doutrina do stare decisis objetivou que o case law adquirisse status de ciência, capaz de prever os resultados das controvérsias judiciais, conferindo aos jurisdicionados certeza, uniformidade e segurança dos direitos”.

De acordo com Tucci (2004), o precedente de respeito obrigatório, como é conceituado o stare decisis, refere-se à norma criada por uma decisão judicial e que, em razão do status do órgão que a criou, deve ser obrigatoriamente respeitada pelos órgãos de grau inferior.

Assim, a existência do stare decisis presume, a um só tempo, atividade constitutiva (de quem cria a norma) e atividade declaratória, destinada aos julgadores que tem o dever de seguir o precedente (Donizetti, 2015).

Desse modo, Donizetti (2015) afirma que o stare decisis possui eficácia no Brasil, pois, além de o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal terem o poder de criar a norma (teoria constitutiva, criadora do Direito), os juízos inferiores também têm o dever de aplicar o precedente criado por essas Cortes (teoria declaratória).

O doutrinador Humberto Theodoro Júnior (2015, p. 346) explica que, “[…] uma decisão não nasce como se precedente fosse; são os juízes de casos futuros que, instados a se manifestarem sobre decisões passadas, poderiam invocar tais decisões na qualidade de precedentes”. Para isso, ressalta que a aplicabilidade do precedente não se dá de uma forma automática; pelo contrário, exige dos juízes que os esclareçam dando novas finalidades ao texto, de modo a adaptá-lo de acordo com as circunstâncias do novo caso.

Theodoro Júnior (2015) afirma ainda que o precedente não é dotado de perfeição e singularidade, mas que “é a partir das distinções, das ampliações e das reduções que os precedentes são dinamicamente refinados pelo Judiciário […]”. De modo a completar o raciocínio, Theodoro Júnior (2015, p. 347) acrescenta:

Se de um lado é verdade que o precedente originário estabelece o primeiro material jurisprudencial (não se ignoram o texto legal e a doutrina) sobre o qual se debruçarão os intérpretes dos casos subsequentes, com o passar do tempo, uma linha de precedentes se formará a partir daquele primeiro precedente, confirmando-o, especificando-o e conferindo-lhe estabilidade, e a técnica da distinção (distinguishing) desempenha uma importante função nesse processo de maturação do direito jurisprudencial.

O distinguishing é um dos conceitos fundamentais necessários a compreensão da teoria dos precedentes, uma vez que se trata de uma técnica ou um método de aplicação de precedentes. Esse método permite que sejam recusados, no momento do julgamento do caso concreto atual, aqueles precedentes com identidades fáticas ou jurídicas diferentes que o juiz aplicará ou não o precedente, a partir das semelhanças e diferenças entre os casos, razão pela qual o distinguishing, juntamente com o overruling, é as principais técnicas de aplicação dos precedentes, uma vez que flexibilizam o sistema, possibilitando uma resposta jurisdicional mais justa. O processualista Fredie Didier (2015, p. 43) define o que é esta técnica do distinguishing:

Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, algumas peculiaridades no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente.

O overruling é outra técnica de aplicação do precedente que é nas palavras do doutrinador Ravi Peixoto (2015, p. 197), “[…] superação de um entendimento anterior sobre o mesmo objeto agora em julgamento; técnica que é essencial para qualquer sistema de precedentes, permitindo que o sistema possa evoluir”.

Essa técnica de superação (overruling) acontece de duas formas: vertical, quando um tribunal superior revoga precedente de um órgão inferior hierarquicamente; e horizontal, quando o órgão que originou o precedente o revoga.

Destaca-se que apenas uma corte superior hierarquicamente tem poder para alterar um precedente, ou seja, para Ravi Peixoto (2015 p. 198), “[…] os tribunais inferiores não podem superar precedentes das Cortes superiores […]”.

Nota-se que o precedente não é permanente, precisa se manter firme por um determinado período, para que certifique a segurança jurídica necessária a um sistema coerente e uniforme; entretanto, não poderia ser engessado dentro de um ordenamento jurídico, sob pena de se tornar insuficiente e injusto, levando em consideração a evolução da sociedade, que exige cada vez mais das direitas respostas adequadas e atuais (Scalcon, 2015).

Para Scalcon (2015), não há como cancelar um precedente sem produzir uma justificativa com uma argumentação séria que de fato esclareça o porquê da necessidade de tal ação, não sendo suficiente apenas articular nova decisão que contrarie a anterior, uma vez que isso prejudicaria a estabilidade, a segurança jurídica e a confiança do jurisdicionado no Poder Judiciário.

De acordo com Cruz e Tucci (2004, p. 152), “todo precedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fatos que embasam a controvérsias; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório”. Desse modo, embora normalmente se faça menção à eficácia obrigatória ou persuasiva do precedente, precisa-se entender que o caráter obrigatório ou persuasivo é da sua ratio decidendi, que é um dos elementos que compõe o precedente.

Segundo o doutrinador Lênio Streck (2013, p. 43), a ratio decidendi é “[…] o enunciado jurídico a partir da qual é decidido o caso concreto. Em suma, ela é regra jurídica utilizada pelo judiciário para justificar a decisão do caso”, ou seja, são os critérios jurídicos utilizados pelo julgador que sustentam a sua decisão, sendo que cada precedente terá uma ratio decidendi.

A ratio decidendi, razão jurídica da decisão, é o núcleo responsável pela formação do precedente, a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão tomaria outro sentido. Em razão disso, José Rogério Cruz e Tucci (2004, p. 177) esclarece que, para a correta inferência da ratio decidendi, propõe-se uma operação mental, mediante a qual, invertendo-se o teor do núcleo decisório, se indaga se a conclusão permaneceria a mesma, se o juiz tivesse acolhido a regra invertida. Se a decisão ficar mantida, então a tese originária não pode ser considerada ratio decidendi; caso contrário, a resposta será positiva.

Portanto, a ratio decidendi, norma jurídica geral, que construída por um órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto, pode servir como diretriz no julgamento de demandas semelhantes (Didier Jr., 2013, p. 427-428).

Existem precedentes com capacidade vinculativa, a ratio decidendi, e os simplesmente persuasivos, que constituem o obiter dictum (ou obter dicta, no plural). Dessa maneira, se faz necessário distinguir essas partes, que constituem a decisão com status de precedente, que é fundamental para um país que pretende utilizar-se da teoria dos precedentes com força vinculativa, visto que o julgador precisa saber que não é todo o conteúdo decisório que tem essa capacidade, mas, pelo contrário, que nessa decisão a ratio decidenti e o obiter dictum coincidem, e apenas um deles terá eficácia vinculante (Scalcon, 2015).

É importante ressaltar que existe uma grande dificuldade para explicar o que é cada um desses aspectos da decisão e, consequentemente, para identifica- los. Lênio Streck (2013, p. 45) explica que “a obiter dicta consiste no conjunto de afirmações e argumentos contidos na motivação da sentença, mas que não constituem fundamentos jurídicos da própria decisão”. Marinoni (2016, p. 170) esclarece: “Algumas questões são indiscutivelmente desnecessárias ao alcance da decisão, e, assim, são certamente obiter dicta”.

Portanto, pode-se dizer que obter dicta é as observações iniciais, questões que não tem nada a ver com o caso que está sendo julgado e questões secundárias que, embora não precisem ser apreciadas para se chegar à decisão, têm íntima relação com o caso sub judice (Marinoni, 2016, p. 170).

Logo, percebe-se que o obter dictum auxilia no desempenho da motivação e do raciocínio exposto na decisão, apesar de não ser essencial, desenvolvendo papel importante na teoria do precedente.

 

2.2 Diferenças entre precedente, súmula e jurisprudência

É imprescindível esclarecer a distinção existente entre precedente, jurisprudência e súmula. Apesar de frequentemente serem utilizados como sinônimos, os termos precedente e jurisprudência possuem nítida diferenciação. Da mesma forma, o conceito de súmula se diferencia claramente do conceito de precedentes e de jurisprudência.

Jurisprudência, precedentes e súmulas são conceitos que não podem ser confundidos – ainda mais porque o legislador procurou ressignificar os conceitos de jurisprudência e de súmulas e introduzir o de precedentes no novo Código. (Marinoni; Arenhart; Mitidiero, 2016, p. 550)

Sendo assim, Pedro (2019) fala que a jurisprudência, de forma ampla, pode ser conceituada como o conjunto das decisões de um tribunal e, de forma restrita, como o conjunto de decisões em um determinado sentido. Por esse lado, tendo como base decisões judiciais, os termos precedentes e jurisprudência podem se confundir; porém, apesar da semelhança, não podem ser igualados. Fazem parte de um mesmo contexto, porém com significados diferentes. Com isso, Marcelo Alves Dias de Souza (2007, p. 41) afirma que o termo jurisprudência é usado, no linguajar jurídico, em pelo menos quatro sentidos: a) como sinônimo de filosofia ou ciência do direito; b) significando uma série de decisões judiciais uniformes sobre uma mesma questão jurídica;

c) representando, de modo menos preciso, o conjunto de decisões judiciais de um país como um todo; d) referindo-se, impropriamente, a uma decisão judicial “isolada”.

Portanto, Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2016) ressaltam que a jurisprudência se consubstancia na interpretação da lei, cuja repetição acaba por gerar uniformidade, servindo, assim, como parâmetro de controle, porém sem autoridade formalmente vinculante.

No que se refere às súmulas, Pedro (2019) declara que as mesmas consistem apenas em um meio para ajudar a tarefa que o juiz exerce, de controle da interpretação e da aplicação do direito no caso concreto, e não se preocupam em demonstrar a tese jurídica encontrada no interior das decisões. Mônica Sifuentes explica que, no âmbito jurídico, a súmula de jurisprudência refere-se a teses jurídicas solidamente assentes em decisões jurisprudenciais das quais se retira um enunciado, que é o preceito doutrinário que extrapola os casos concretos que lhe deram origem e pode ser utilizado para orientar o julgamento de outros casos.

Cabe destacar que os enunciados, tão utilizados como se fossem a própria súmula, são, na verdade, textos resultantes da uniformização jurisprudencial inseridos no corpo da súmula, o qual recebe uma numeração.

Nesse sentido, Medina (2016, p. 1201-1202) diz que os enunciados de súmula não são precedentes, mas são criados a partir dos precedentes, ou de precedente e decisões que se seguem. Para Mônica Sifuentes (2005, p. 237-238), as palavras súmula e enunciado, embora tenham significados diferentes, acabaram por serem usadas, indistintamente, de modo que, por súmula, atualmente entende-se comumente o próprio enunciado, ou seja, o preceito genérico tirado do resumo da questão de direito julgada.

É importante observar que a súmula é o mecanismo utilizado para verificação da uniformização jurisprudencial de uma Corte, enquanto os enunciados decorrem de textos tirados das teses jurídicas pacificadas por um tribunal, ou seja, o próprio direito uniformizado.

Medina (2016, p. 1201-1202) resume a relação entre enunciado de súmula e precedentes com uma frase: “Os enunciados de súmula são a síntese da jurisprudência dominante, formada por precedentes emitidos em um mesmo sentido”.

 

2.3 A aplicabilidade no Brasil

Wink (2015) relata que, diante do que foi exposto a respeito do precedente judicial sobre sua contextualização no sistema jurídico e as razões que sustentam a necessidade de adoção de tal teoria, faz-se necessário analisar acerca do que hoje de alguma forma se relaciona ao precedente no Brasil.

Os precedentes judiciais ganharam força no Brasil apenas após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que incluiu no ordenamento jurídico os enunciados de súmula vinculante, que só será editada exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal. Com isso, é possível considerar que há mais de vinte anos o Direito brasileiro vem apoiando o sistema da obrigatoriedade dos precedentes, dependendo da hierarquia do órgão decisor (Donizetti, 2015).

Além disso, pode ser considerado marco normativo da aplicação dos precedentes judiciais no Brasil a Emenda Constitucional nº 3/1993, que acrescentou o § 2º ao art. 102 da Constituição Federal, que diz: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo” (Donizetti, 2015).

Assim, é importante deixar claro que, para Pilar (2018), os precedentes judiciais no Brasil continuam sendo apenas de força persuasiva; porém, a força vinculante mostra-se cada vez mais presente. Desse modo, se, de um lado, temos a flexibilização da execução do juiz como simples aplicador da lei, o que inicialmente garantiria maior liberdade ao magistrado para orientar o caso concreto; do outro lado, temos novamente uma restrição dessa liberdade, agora pela observação obrigatória de precedentes judiciais.

O precedente judicial tem como objetivo garantir a segurança jurídica apresentando métodos objetivos e específicos, por se tratar de uma decisão judicial de um único caso, que deve ser utilizada aos demais casos idênticos, em razão ao grande número de processos judiciais no Brasil, e as possíveis formas de interpretação normativa, onde o mesmo caso estava suscetível a receber decisões diferentes e conflitantes, ocasionando o fenômeno denominado de jurisprudência lotérica, definida por Eduardo Cambi (2001, p. 111):

[…] quando a mesma questão jurídica é julgada por duas ou mais maneiras diferentes. Assim, se a parte tiver a sorte de a causa ser distribuída a determinado Juiz, que tenha entendimento favorável da matéria jurídica envolvida, obtém a tutela jurisdicional; caso contrário, a decisão não lhe reconhece o direito pleiteado.

Segundo Neto (2017), a intenção de criar os precedentes foi o de dar maior efetividade ao processo, aliada à uniformização da jurisprudência, por meio de seu efeito vinculante, tanto no Judiciário quanto na Administração direta e indireta, e, com isso, trazendo agilidade ao processo, mesmo diante de algumas críticas, principalmente no que diz respeito à confrontação aos princípios constitucionais, tais como: independência do magistrado, livre convencimento do juiz, afronta ao duplo grau de jurisdição e confronto com o princípio da separação dos poderes.

Percebe-se que a teoria dos precedentes também ganhou corpo no âmbito processual de acordo com o Código de Processo Civil de 1973, onde diversos dispositivos foram aprovados ao longo dos anos, são eles: art. 285-A; art. 481, parágrafo único; art. 557; art. 475, § 3º; e art. 518, § 1º.

O marco mais reconhecido para o estudo dos precedentes judiciais é, no entanto, o requisito que foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro na Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, que assim se expressa:

CF/1988

Art. 102. […]

[…]

3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.

Em relação à aplicação de um precedente judicial, que é outro aspecto importante no presente estudo, o magistrado não precisa se deparar com casos idênticos, até porque isso seria impossível em algumas situações.

De acordo com o Enunciado nº 59 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF/STJ (2017), “não é exigível identidade absoluta entre casos para a aplicação de um precedente, seja ele vinculante ou não, bastando que ambos possam compartilhar os mesmos fundamentos determinantes”. Sendo assim, deve-se buscar identidade de fundamentos, ou seja, semelhança no “núcleo” dos casos concretos postos em análise.

Vale destacar que o art. 927 do CPC inovou ao designar um rol de precedentes a serem observados pelos magistrados. A legislação positivada simplesmente ampliou as hipóteses de execução obrigatória dos precedentes judiciais, ligando o magistrado não mais apenas às súmulas vinculantes, sendo um enorme passo no desenvolvimento do sistema jurídico brasileiro, ao andarmos para um sistema totalmente novo, derivado de uma verdadeira “mutação evolutiva” da Civil Law ao internalizar e reconhecer preceitos ora existentes apenas no sistema jurídico anglo-saxônico. Como dito anteriormente no art. 927, os juízes e os tribunais observarão:

I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II – os enunciados de súmula vinculante;

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Para Didier Junior (2016), as hipóteses presentes são meramente exemplificativas, de forma que os precedentes judiciais podem ser ainda obrigatórios sem necessariamente de estarem elencados no art. 927 do CPC.

No mesmo sentido, Sesma (1995, p. 36-37) afirma que os precedentes obrigatórios são aqueles cuja capacidade vinculante não depende da opinião do juiz do caso em julgamento, que deve prosseguir mesmo não estando seguro do seu acerto; nessa circunstância é que tem lugar a máxima stare decisis et non quieta movere (mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido).

Tiago Asfor Rocha Lima (2013, p. 480) fez uma análise aprofundada sobre os precedentes judiciais no Brasil, e nesse estudo explicou que o sistema de precedentes ainda estava incompleto e dependia de “algumas imprescindíveis correções para que dele se pudesse extrair a finalidade esperada”.

O precedente é um fato. Como explicam Didier, Braga e Oliveira (2016, p. 466), em qualquer lugar do mundo em que houver uma decisão jurisdicional, esse fato ocorrerá. Porém, a análise e o valor concedido a esse fato, serão alterados conforme a cultura de cada localidade. Alguns países não permitirão qualquer relevância ao precedente, e outros que lhe atribuirão relevância máxima.

Outros como o Brasil, podem conceder aos precedentes, uma série de efeitos jurídicos, que variam desde o efeito meramente persuasivo até o efeito obrigatório.

De acordo com Moreto (2012, p. 12), o Brasil tem conhecimento sobre a importância dos precedentes, e, mesmo que exista variação de efeitos ao longo do tempo, sempre foi alvo de admiração dos juristas pátrios. Assim também em relação aos mecanismos de uniformização da jurisprudência, já que sempre existiu a consciência de que a mudança de entendimentos judiciais traz a ideia de insegurança jurídica e desconforto social.

Segundo Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2016, p. 551), os precedentes, no ordenamento jurídico brasileiro, não devem ser vistos exclusivamente como formais e quantitativos, mas também materiais e qualitativos, pois, por exemplo, caso um julgamento de recursos repetitivos não apresente razões determinantes e suficientes claramente identificáveis, não formará precedente, apesar de ter sua origem da forma indicada pelo CPC/2015. Na lição de Didier, Braga e Oliveira (2016, p. 467), a eficácia de um precedente variará conforme as disposições de um determinado direito positivo. No Direito brasileiro, os precedentes judiciais têm aptidão para produzir diversos efeitos jurídicos, que não se excluem. É possível e até comum que um mesmo precedente produza mais de um tipo de efeito.

É importante salientar que, conforme Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2016, p. 552), o precedente no Direito pátrio é uma noção material, pois tem relação com a autoridade das cortes supremas; e qualitativa, pois tem relação com a necessidade das razões constantes na justificação das decisões, para a solução de determinada questão jurídica.

Dessa forma, o respeito aos precedentes judiciais tem sido reconhecido no sistema de processo brasileiro. Sendo assim, o que é visto nas mudanças ocorridas no âmbito processual é a adoção de métodos que pretende reforçar os precedentes na prática jurídica brasileira, especialmente nas estruturas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

 

3 DA APROXIMAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO COM A COMMON LAW NO CPC/2015

Todos os países adotam uma sistemática de normas próprias a serem utilizadas para manifestar sua jurisdição, sendo que tais sistemas podem sofrer intervenções. Os sistemas mais utilizados são a Civil Law e a Common Law. No Brasil, sempre houve predominância do sistema da Civil Law, dando-se prioridade às normas positivadas pelo Poder Legislativo como fonte do direito. Contudo, atualmente, percebe-se forte influência da Common Law, quando se trata de precedentes (Camilo, 2019).

Segundo Lemos Junior (2018), os precedentes, na visão da Common Law, são decisões anteriores que servem como ponto de partida ou modelo para a decisão de novos casos semelhantes. São decisões em que a mesma questão jurídica, sobre a qual há que se decidir novamente, já foi resolvido por um Tribunal em outro caso. Em seu sentido tradicional, uma decisão judicial não nasce como “precedente”, mas ela pode vir a se tornar um, em momento posterior, quando vier a ser utilizada como subsídio ou modelo para decisão de caso semelhante.

Nas palavras de Eduardo Talamini (2016, p. 1):

Até há pouco, a expressão “precedente judicial” tinha um sentido distinto daquele em que agora ele tem sido empregado. […] Falava-se em “precedente” para se referir a um pronunciamento judicial proferido no passado e identificado, em um momento posterior, como sendo um subsídio relevante ou decisivo para a resolução de novos casos, em que a mesma ou análoga questão se ponha. […] Nesse sentido tradicional, o precedente é identificado como tal não no momento em que é emitido, mas depois, quando invocado, interpretado e utilizado como subsídio ou baliza para uma nova decisão.

No Brasil, recentemente, passou-se a utilizar o termo “precedente” para designar alguns pronunciamentos judiciais que, no momento em que são emitidos, já nascem com a função de servir de parâmetro, com maior ou menor grau de vinculação, para decisões judiciais futuras de casos em que se discuta a mesma questão jurídica. Nesse sentido, “precedentes” são os julgados que, desde a sua prolação, a lei determina que tenham força vinculante obrigatória (Lemos Junior, 2018).

Buscando melhorar o sistema processual brasileiro, criou-se o CPC/2015, que abarcou a questão de precedentes e de decisões vinculativas, como forma de uniformizar as decisões, buscando a segurança jurídica, bem como para solucionar a morosidade do Judiciário.

Com isso, alguns autores têm se manifestado no sentido de que o CPC/2015, em seu art. 927, adotou um sistema de decisões vinculantes, bem diferente de um sistema de precedentes judiciais vinculantes. Nesse sentido, Flávio Quinaud Pedron e José Emílio Medauar Ommati (2017/2018, p. 666) afirmam:

Sendo assim, no caso do Código de Processo Civil de 2015, o que veremos é a instituição, no art. 927, de um sistema de decisões vinculantes, o que já é bem diferente de precedentes judiciais (Brasil, 2015). A vinculatividade futura de tais provimentos não decorre de uma apropriação crítica das gerações futuras, como ocorre com as decisões judiciais na Inglaterra e nos EUA, mas sim do fato de obedecerem a um procedimento que ao final dota o provimento de tal natureza vinculante.

É indiscutível que o constitucionalismo aproximou as tradições jurídicas da Civil Law e da Common Law, beneficiando a produção de precedentes com força vinculante na jurisdição constitucional brasileira.

Merryman (1989, p. 56) expressa com muita clareza às transformações excessivas suportadas pela tradição de Civil Law, na medida em que a Constituição omitiu os dogmas da supremacia da lei, e, o mais importante, mitigou o mito da aplicação mecânica da lei. Observe-se, diante disso, o que Merryman (1989, p. 56) esclarece sobre o tema:

A concepção dogmática do que é o direito, como muitas outras implicações dos dogmas do período revolucionário, tendo sido minada pelo tempo e pelos acontecimentos. É possível que a inovação mais extraordinária tenha sido o forte movimento feito pelo constitucionalismo, com seu empenho na rigidez funcional, e, portanto, na superioridade das constituições escritas como fonte do direito. Tais constituições, que eliminam o poder da legislatura para emendar mediante a ação legislativa ordinária, reduz o monopólio da legislatura em matéria de produção de leis. Inserem um elemento novo na hierarquia das fontes do direito, que agora fica assim: constituição, legislação, regulamentos e costume. Ademais, se um tribunal pode decidir que um estatuto é inválido porque está em conflito com a constituição, se destrói o dogma da separação estrita entre o poder legislativo e o poder judicial.

Portanto, tal fato comprova que os sistemas jurídicos analisados nesse momento não são mais completamente puros, podendo perceber um quadro tendencial de recíproca aproximação entre as famílias da Civil Law e da Common Law (Ramos, 2013).

Nesse sentido, nota-se há décadas uma aproximação entre os sistemas da Civil Law e da Common Law. Segundo Wambier e Talamini (2016, p. 694-695), a importância da jurisprudência é cada vez maior nos países do sistema da Civil Law, bem como são cada vez mais frequentes as normas jurídicas, na Common Law, que advém de textos legais positivados.

Gorga (2017, p. 1), diz que os sistemas jurídicos da Common Law e da Civil Law possuem elementos tão contraditórios que, por muito tempo, foram vistos como sistemas que não conversam entre si. No entanto, com um estudo mais aprofundado, é perfeitamente possível extrair uma aproximação entre esses dois sistemas, estimulada pela globalização, fazendo com que a família romano-germânica, de tradição Civil Law, tenha uma crescente simpatia pelo instituto jurídico da Common Law.

Várias tentativas foram feitas para reformar o ordenamento processual do Brasil. O antigo CPC/1973 não refletia certos princípios e garantias recomendados pela Constituição de 1988, não existiam mecanismos que dessa conta de um grande número de litígios e que garantisse a integridade e a coerência da jurisprudência.

De acordo com Wambier (2018), não se pode dizer que o Código estabelece um sistema jurídico fundamentado em precedente, e que a prática é a mesma que em países de Common Law. No entanto, há uma influência desse sistema, pois é altamente recomendável que o Código atribua observação aos acórdãos emanados dos novos instrumentos que se destinam à uniformização da jurisprudência.

O CPC superou as características típicas do sistema da Civil Law e determinou que certas decisões tomadas em determinadas situações já tenham força de precedentes, pois essas decisões podem ser objeto de reclamações.

Para Alvim (2020), a principal característica da Common Law é a extração de normas jurídicas das próprias decisões. Portanto, isso acontece espontaneamente, que os casos semelhantes sejam julgados igualmente. Na Civil Law, que é o que mais se assemelha no sistema brasileiro, em tese, seria mais razoável que as demandas equivalentes fossem avaliadas da mesma forma, já que o juiz toma a decisão de acordo com a lei. No entanto, conforme se observa no ordenamento jurídico brasileiro, o fato de a sentença derivar de um único texto jurídico não garante a consistência da sentença.

Trazendo uma interessante consideração a respeito da aproximação dos dois sistemas, Donizetti (2015, p. 4) esclarece:

Em que pese a lei ainda ser considerada como fonte primária do Direito, não é possível conceber um Estado exclusivamente legalista. Seja porque a sociedade passa por constantes modificações (culturais, sociais, políticas, econômicas, etc.) que não são acompanhadas pelo legislador, seja porque este nunca será capaz de prever solução para todas as situações concretas e futuras submetidas a apreciação judicial, não se pode admitir um ordenamento dissociado de qualquer interpretação jurisdicional. Os países de cultura angla saxônica cada vez mais legislam por intermédio da lei, e, em contrapartida, os países de tradição germano-românica estabelecem a força obrigatória dos precedentes judiciais.

Desde o projeto do CPC/2015, devido a uma ampliação que estabelece um precedente obrigatório, diz-se que está havendo uma “commonlawlização” da lei brasileira, o que não está ocorrendo, porque está longe de hospedar um sistema onde os precedentes são a principal fonte, mas, por outro lado, entende-se que os precedentes estabelecidos tem como base a legislação nacional, de acordo com procedimentos claramente definidos (Almeida, 2016).

Para Wambier e Talamini (2016, p. 965), os sistemas de Common Law e Civil Law ainda são muito diferentes. A conduta de precedentes na Common Law não decorre de simples responsabilidades que têm efeitos especiais sobre eles. O resultado de tradições seculares, uma série de atos, decisões judiciais e mesmo as doutrinas de origem formam o quadro jurídico, que constitui a Common Law. Por outro lado, na Civil Law a prioridade é o direito esclarecido, mas isso não significa que as decisões judiciais se limitem a declarar o sentido da lei, pois o sentido da lei não é extraído apenas do texto escrito, mas do escrito o texto representa uma pequena quantidade. Afastam-se também dos valores sociais, políticos, econômicos e culturais que prevalecem na sociedade, função que não cabe apenas às instituições judiciárias, mas também a todos os que aplicam e vivenciam o direito.

A busca pelo equilíbrio entre as tradições em busca de um sistema com maior segurança jurídica, isonomia e acompanhamento da sociedade é que o que permite a conexão entre ambos, para um melhor resultado, como o que vem a ser feito no Brasil.

Além de proporcionar a busca por estabilidade e uniformização da jurisprudência, o CPC/2015, no art. 926, estipula que os precedentes devem ser estáveis, completos e coerentes, incluídos em seu texto incidentes com a finalidade de garantir a isonomia e a segurança jurídica, quais sejam: o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência (Wambier; Talamini, 2016, p. 716).

 

3.1 Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e incidente de assunção de competência (IAC)

As duas inovações legislativas que mais aproximam pragmaticamente o processo civil brasileiro da Common Law são o IRDC e o IAC. Isso porque, por meio de seus respectivos procedimentos previstos no CPC/2015, o Poder Judiciário pode utilizar um caso concreto como parâmetro de julgamento para demandas semelhantes.

Em que pese se manifestem através de procedimento legal, diferentemente do sistema inglês no qual os precedentes assim se tornam naturalmente, percebe- se que o ordenamento jurídico pátrio está dando mais força ao julgamento de casos concretos, que são criadores de verdadeiras inovações normativas. Com efeito, contraria-se a ideia clássica de que somente por meio de códigos positivados os litígios poderiam ser resolvidos. De acordo com Didier, Braga e Oliveira (2019, p. 576), “trata-se de uma peculiaridade brasileira. Nem todo precedente pressupõe um procedimento específico de produção”.

Podemos definir o incidente de resolução de demandas repetitivas como um incidente processual de estabilização da jurisdição, por meio do fortalecimento da tese jurídica firmada em precedente vinculante, representativo de controvérsia repetida em outros processos individuais, que envolvem a mesma questão jurídica. Essa é uma das grandes inovações incorporadas ao direito processual brasileiro pelo CPC/2015, instituto de domínio obrigatório por operadores legais.

Para Teixeira (2015), o objetivo do novo incidente de resolução de demandas repetitivas é assegurar garantias constitucionais de primeira classe no âmbito do processo civil, entre as quais se destacam segurança jurídica, isonomia e prazos processuais razoáveis.

Santos (2016) relata que o incidente de resolução de demandas repetitivas regula casos que ocorreram ou podem ocorrer devido a determinado litígio. Essa técnica serve para ajudar no dimensionamento da litigiosidade repetitiva por meio de “procedimentos modelo” ou “procedimentos padrão”.

De acordo com Teixeira (2015), não se trata, portanto, de processo individual mediante procedimento comum, muito menos de processo coletivo, por isso foi decidido desencadear o incidente específico, iniciado por um processo individual representativo da controvérsia, para firmar um precedente vinculativo para a proteção uniforme de direitos individuais duplicados, e homogêneo, composto nos arts. 976 a 986 do CPC/2015. Desse modo, assim dispõe o art. 976 do novo CPC:

Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:

I – efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito;

II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

Sem o IRDR como mecanismo pacificador do entendimento, todas as partes devem entrar com vários processos. Como consequência, os juízos e tribunais tenderiam a tomar decisões diferentes sobre o assunto. Com isso, essas decisões correm risco de causar contradições para processos idênticos, o que prejudicaria a segurança jurídica e a isonomia (Santos, 2016).

O incidente de demandas repetitivas é uma técnica processual que visa resolver litígios seriados. Baseia-se em três pilares principais, a saber: o princípio constitucional da isonomia, que exige o tratamento unificado dos litígios isomórficos; a segurança jurídica, que é a previsibilidade e a uniformidade das decisões judiciais; e, finalmente, fornecer prestação jurisdicional dentro de um prazo razoável, além de nortear todo o sistema jurídico processual (inferido dos arts. 1º a

12 do CPC/2015), esses princípios também são a base constitucional do incidente ora analisado (De Castro Mendes, 2015).

Ainda de acordo com De Castro Mendes (2015), os incisos I e II do art. 976 do CPC/2015 indicam que, para estabelecer um incidente, deve haver concomitantemente a efetiva repetição de processos sobre a mesma questão jurídica, bem como o risco de ofender a isonomia e a segurança jurídica. A lei não prevê um requisito numérico de demandas homogêneas ou de requerimentos para instauração do incidente, de modo que ficará a critério do órgão julgador a análise de tal questão.

Embora os regulamentos do CPC usem apenas a definição de questões jurídicas para determinar o incidente, quanto a este deve ser amplo o cabimento, incluindo questões de direito material ou processual (art. 928, parágrafo único, do CPC/2015 e Enunciado nº 88 do FPPC), e, ao contrário do que acontece no regime alemão, a identidade apenas fática não autoriza a instauração do incidente brasileiro.

Por outro lado, caso os tribunais superiores já tenham se pronunciado para julgamento em recurso especial ou extraordinário sobre a mesma matéria de um potencial incidente, sua instauração não será aceita no art. 976, § 4, do CPC/2015.

O objetivo dessa norma é evitar começar incidentes desnecessários, decorrente tanto das vantagens hierárquicas da padronização das sentenças judiciais quanto do reconhecimento de que os incidentes fazem parte do microssistema processual de resolução de causas repetitivas (art. 928 do CPC/2015 e Enunciado nº 345 do FPPC), onde a coerência do sistema deve ser mantida, com ênfase na economia processual (De Castro Mendes, 2015).

Por fim, acredita-se que o incidente possa solucionar as desvantagens de muitos requisitos repetitivos, presumindo que o instituto deve conviver harmoniosamente com o sistema de processo coletivo. São inúmeros os casos de violações uniformes de direitos individuais que podem ser melhor solucionados por meio da ação coletiva, principalmente quando se deparam com danos de inexpressiva quantificação a nível individual. Além disso, o sistema coletivo apresenta uma vantagem inegável no funcionamento da máquina judicial e nos custos diretos e indiretos dela decorrentes.

Ainda em 2015, o Código de Processo Civil desenhou um novo método que pode iniciar o julgamento em tribunal a partir da análise do impacto social e do interesse público envolvido em hipóteses específicas a partir da relevância de casos específicos. Trata-se do incidente de assunção de competência, que é regulado pelo art. 947 do Código, que estipula a assunção de competência em duas hipóteses: a primeira é quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos; e a segunda hipótese quando ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal.

Ainda nesse sentido, Arcoverde (2018) relata que o incidente de assunção de competência (IAC) é uma das inovações trazidas pelo CPC/2015, seu objetivo é a uniformização da jurisprudência, estabelecendo um precedente de observância obrigatória. Esse mecanismo é baseado na teoria dos precedentes do Common Law inglês e aperfeiçoado no Direito americano, e se esforça para corrigir os de feitos de seus predecessores e evitar a formação de demandas judiciais em larga escala.

No entanto, o termo “assunção de competência” não é inédito no ordenamento jurídico. O art. 555, nº 1, do CPC/1973 dispôs que, depois de apuradas as questões de direito relevantes, o relator do processo poderia propor que o recurso fosse julgado pelo órgão colegiado, nos termos do regulamento interno do tribunal. Depois de verificar o interesse público, seria determinada a assunção da competência do órgão colegiado para julgar recursos.

Com isso, Marcos Porto Soares (2016) esclarece que existem algumas diferenças entre esses dois mecanismos. Diferentemente do que ocorre na instauração do IAC, a tecnologia anterior só era aplicável em agravos e apelações, e sua proposição não representava responsabilidade do relator do processo.

Gaio Júnior (2020) entende o atual incidente como um mecanismo do Direito Processual Civil para estabelecer normas de tomada de decisão, necessário para evitar divergências de entendimento judicial, embora essa prática seja manifestamente inaceitável, mesmo ainda estando em curso, contribuindo, assim, o seu manejo, para que alcance a necessária igualdade nas decisões judiciais, fator inalienável no estabelecimento da segurança jurídica entre nós. O presente incidente de assunção de competência se encontra disposto no art. 947: “É admissível à assunção de competência quando o julgamento de recurso, da remessa necessária ou de causa de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos”.

O incidente de assunção é uma técnica para definir questões legais, tendo uma relação clara com a “jurisprudência uniforme”. Isso porque o incidente de assunção objetiva alcançar uma solução única para problemas jurídicos. A maior diferença em relação à jurisprudência uniforme é que, neste último caso, chega- se a uma interpretação única com o tempo e mediante debate desencadeado por desentendimento, e, na hipótese de assunção, evita-se a divergência de uma definição direta de questões jurídicas (Marinoni, 2016).

Mas o que realmente importa de acordo com Marinoni (2016) é que a solução direta e única para o problema não está relacionada com a função de desenvolvimento jurídico específico do Supremo Tribunal Federal. A razão para tomar essas decisões é apenas para esclarecer questões legais para os efeitos das demandas próprias à circunscrição do tribunal. O precedente que define o significado do direito, promulgado pelo Supremo Tribunal Federal, orienta a vida social e regula os casos futuros. Não se aplica a situações em que o mesmo problema está prestes a ser resolvido ou ainda podem ser submetido a julgamento.

O incidente de assunção de competência é diferente de outros precedentes, porque está mais próximo do sistema da Common Law que formou esses precedentes, uma vez que é parte do julgamento de casos específicos e concretos para a formulação das teses. Diferentes procedimentos foram usados na preparação das súmulas vinculantes e das orientações jurisprudenciais.

A força vinculante do IAC difere de outros precedentes, e até mesmo do IRDR (que mais se assemelha com o instituto), na medida em que este foi instaurado para que ao final seja formulada uma tese jurídica aplicada a múltiplos processos, ou seja, o foco não está relacionado ao julgamento em um caso específico, mas relacionado à criação de uma tese. O poder do precedente é manter a previsibilidade e segurança jurídica. Logo, a superação de um precedente é uma medida excepcional, cujo episódio requer uma ampla gama de motivações (Soares, 2021).

É relevante o destaque dado à repetição de processos, de forma a diferenciar o incidente de assunção do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). Ao comentar a diferença entre os dois institutos, Luiz Guilherme Marinoni (2016) declara que de lado o fato de que o incidente de assunção de competência cabe para o julgamento do caso que contém a questão e o incidente de resolução para o julgamento da questão contida nos processos, o que realmente distingue os dois incidentes é que no primeiro há de haver uma questão com grande repercussão social e no segundo apenas uma mesma questão de direito.

Assim, para Richter (2018) o IAC julga o caso que contém a questão de grande repercussão social, ao passo que o IRDR confere competência para determinado órgão do tribunal, a ser definido por cada regimento interno, fixar tese para uma questão de direito que se repete em inúmeros processos.

Portanto, a compreensão do processo de instauração do IAC requer uma análise e descrição detalhada de sua particularidade e relevância com os mecanismos dos institutos de julgamento de casos repetitivos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das considerações apresentadas neste estudo, verifica-se que o ordenamento jurídico brasileiro está passando por uma sensível transformação, abandonando gradativamente as premissas clássicas do sistema da Civil Law, por meio da Constituição Federal de 1988 e do sistema processual, visando reduzir a crise jurídica enfrentada pelo Poder Judiciário, sendo influenciada pelo sistema de Common Law e pela doutrina do stare decisis.

Os precedentes judiciais na tradição jurídica da Common Law sempre possuíram papel de destaque como fonte do direito e resolução dos conflitos. No Brasil, por outro lado, os julgados passaram a ter maior relevância a partir da Constituição Federal de 1988, e, sobretudo, com a vigor do Código de Processo Civil de 2015.

Portanto, embora baseado na tradição romano-germânica, o ordenamento jurídico brasileiro está se mostrando apto a recepcionar a teoria do precedente judicial, sem comprometer os princípios do processo civil, embora se tenha uma preocupação a respeito da incompatibilidade dessa teoria com a cultura do direito na tradição brasileira, de modo a ferir normas principiológicas e, principalmente, a separação de poderes.

Desse modo, após analisar o histórico de formação e desenvolvimento do sistema da Common Law e Civil Law, a pesquisa mostra que vários fatores proporcionaram a aproximação entre as duas famílias, em que se destacam o constitucionalismo, os conceitos indeterminados e as cláusulas gerais.

A adoção de um sistema precedente não implica na eternização de decisões. Criar barreiras legais é inútil sem as técnicas de superação e confronto de precedentes. O magistrado deve continuar a exercer seu livre convencimento motivado, apenas retirando uma regra se esta não for capaz de resolver eficazmente o caso posterior. A aplicação do precedente dependerá da análise do caso concreto e de sua verdadeira semelhança com o caso anteriormente julgado, devendo o caso ser distinguido sempre que um novo requerimento tiver particularidade relevante de fato. Portanto, o precedente deve ser considerado como uma técnica processual a serviço da efetividade judicial para reforçar a busca pela aplicação uniforme do direito.

O ordenamento jurídico brasileiro, mais precisamente a Constituição da República Federativa do Brasil e o Código de Processo Civil de 2015, inspirou-se do sistema inglês o sistema de precedentes vinculantes, nomeando-os como: súmulas vinculantes, incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e incidente de assunção de competência (IAC). Todos de competência dos tribunais, alguns de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

De início, a preocupação estava na possibilidade de o Judiciário superar seus limites constitucionais e passar, por meio desses mecanismos vinculativos, a legislar, o que só pode ser feito pelo Poder Legislativo.

Entretanto, a teoria do precedente deve ser feita de maneira criteriosa, pois a interpretação jurídica de casos específicos não pode desviar-se das disposições legais, devendo apenas aplicar a hermenêutica adequada.

O Brasil nunca ignorou a importância dos precedentes judiciais, eles sempre estiveram aos olhos dos juristas, apesar do fato de que, de acordo com o Direito romano-germânico, o sistema nacional é considerado um sistema eminentemente positivista, mas, como já mencionado, o sistema nacional vem integrando importantes institutos espelhados da tradição anglo-saxã como ferramentas eficazes para a prestação jurisdicional e segurança jurídica.

O novo Código de Processo Civil reconhece as decisões judiciais como fonte do direito e estabelece um sistema a fim de fornecer maior relevância aos precedentes judiciais, proporcionando mais proteção para a segurança jurídica e previsibilidade das decisões.

No entanto, isso não significa que o estado, em sua função judicante, deva apenas aplicar precedentes, resolvendo conflitos de maneira simples. As técnicas de avaliação de precedentes devem desempenhar funções que melhoram o sistema processual e não de engessamento da ação interpretativa do poder Judiciário.

Neste cenário, novos institutos no Direito brasileiro estão sendo desenvolvidos, como a súmula vinculante e os recursos repetitivos, para dar novo tratamento a causas repetitivas que sobrecarregam o Judiciário. O incidente de resolução de demandas repetitivas surge neste caso, e, com ele, é possível referir-se a um sistema brasileiro de precedentes verdadeiro.

Assim, considera-se que o incidente de resolução de demandas repetitivas surgiu, na tentativa de ajustar o processo judicial, para que haja melhor prestação jurisdicional com a resolução dos conflitos coletivos, levando em consideração as características da sociedade moderna após a revolução industrial.

O incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no novo Código de Processo Civil é instrumento que visa: (a) gerar uniformidade na jurisprudência, (b) diminuir o número de processos judiciais e (c) agilizar a prestação jurisdicional. Conforme já visto no trabalho, entende-se que o incidente de resolução de demandas repetitivas efetivamente irá permitir uma agilização da prestação jurisdicional e produzirá uniformidade na jurisprudência. No entanto, entende-se que o instituto não irá proporcionar a diminuição no número de processos judiciais, pois os indivíduos ainda serão obrigados a entrar com ações judiciais individuais para outorga do bem jurídico, mesmo após a fixação de tese jurídica favorável no âmbito do incidente de resolução de demandas repetitivas.

Pretendeu-se, também com esta pesquisa, fazer algumas considerações acerca do incidente de assunção de competência sob o sistema de precedente obrigatório, implementado pelo CPC/2015, delineando seu procedimento e, oportunamente, aplicando-se as divergências doutrinárias existentes até então sobre sua futura aplicação e suas implicações práticas procedimentais.

Com o incidente de assunção de competência, o tribunal poderá até mesmo conjecturar a possível problemática daquela hipótese e o consequente ajuizamento de ações semelhantes posteriormente e, antes que o problema surja já uniformizar entendimento e vincular os juízes da sua jurisdição. Assim que o instituto começar a ser praticado, ele certamente terá um grande avanço com relação ao julgamento das causas relevantes, prevendo-se e solucionando-se, antes mesmo que o problema comece a lide, e os casos idênticos que porventura venham a surgir.

Com isso, espera-se, por fim, que possa estabelecer um precedente objetivo e direto, que irá gerar a tão esperada segurança jurídica e a plena aplicação do sistema multiportas para ajudar a aliviar o Poder Judiciário, para que os juízes possam trabalhar com eficácia nas soluções das mais diversas lides de jurisdicionados que estão ansiosos por análises detalhadas dos casos com soluções justas e personalizadas.

 

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