APROPRIAÇÃO INDÉBITA’ PREVIDENCIÁRIA: CRIME FORMAL OU MATERIAL? (PARTE 1)
Heloisa Estellita
Marcelo Costenaro Cavali
A Súmula Vinculante nº 24 causou uma série de efeitos indesejados no tratamento penal e processual penal dos crimes tributários. O mais recente deles está representado na discussão acerca da classificação dos crimes tributários como formais ou materiais, e nas supostas consequências dessa classificação para a aplicação do tipo penal do artigo 168-A do Código Penal. Tal classificação foi tida por determinante no julgamento do Recurso Especial 1.982.304, no âmbito do qual o STJ (Superior Tribunal de Justiça) fixou a seguinte tese: “O crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no art. 168-A, § 1.º, inciso I, do Código Penal, possui natureza de delito material, que só se consuma com a constituição definitiva, na via administrativa, do crédito tributário, consoante o disposto na Súmula Vinculante n. 24 do Supremo Tribunal Federal” (j. 17/10/2023)[1].
No caso, discutiam-se os efeitos da classificação do crime como material ou formal sobre a prescrição. A acusada obtivera perante o TRF o reconhecimento da prescrição, pois os fatos ocorreram em 2007/2008 e a denúncia tinha sido recebida em 2021, quase 13 anos depois. A corte federal, reconhecendo o caráter “formal” do crime, cravou o início do prazo prescricional no momento dos sucessivos não recolhimentos e reconheceu a extinção da punibilidade. O MPF recorreu ao STJ afirmando que, na verdade, o crime é “material” e, assim, “se consuma na data em que há a constituição definitiva do crédito tributário ou o exaurimento da via administrativa”, invocando a SV 24 e escancarando, assim, os efeitos nocivos em cadeia causados pelo teor e pela linguagem empregada na súmula vinculante[2].
A alocação das figuras típicas em categorias (classificação), a partir da identificação de elementos comuns, tem por fim agrupar figuras que, justamente em razão da comunhão de características compartilhadas, apresentam problemas e produzem consequências jurídicas similares, merecendo tratamento jurídico uniforme em decorrência do princípio da igualdade. Assim, faz-se a distinção entre delitos de mera conduta (ou de atividade) e de resultado, que tem como referência o objeto sobre o qual recai a conduta[3], para ressaltar que, nas figuras que exigem resultado naturalístico espaço-temporalmente ou pelo menos mentalmente (lógico-conceitualmente[4]) separado da conduta, será necessário examinar o nexo de causalidade (e a imputação objetiva) entre o resultado e a conduta[5].
Outra distinção, que costuma se confundir com a anterior, estabelece-se entre crimes formais e materiais. Para Bruno, materiais são os crimes em que há “realização do resultado fixado como característico do tipo legal” – e esses crimes são chamados de crimes de resultado pelos alemães[6]. Já nos crimes formais “com a própria atividade realiza-se o resultado”, e por esta razão, os alemães preferem chamá-los de simples atividade (schlichte Tätigkeitsdelikte)[7]. Em conformidade com isso, seriam intercambiáveis as expressões crimes de resultado/crimes materiais e crimes de mera conduta/crimes formais. Isso já dá uma ideia da pouca clareza que assombra esses conceitos[8].
A distinção entre crimes de perigo (concreto ou abstrato) e de lesão (ou dano)[9], por seu turno, tem como ponto de referência o bem jurídico e serve para colocar em evidência o grau do menoscabo ao bem jurídico, o que permite avaliar a legitimidade da incriminação e a proporcionalidade da intensidade da resposta penal[10]. Porque os critérios selecionados para essas classificações são diversos é que podemos encontrar crimes de resultado e perigo (concreto), como é o crime de desabamento ou desmoronamento; de mera conduta e de lesão, como a injúria; de mera conduta e perigo, como a posse de arma de fogo; de resultado e de lesão, como o homicídio[11].
Para evitar ruídos, como os produzidos no precedente ora analisado, talvez fosse melhor o abandono total das expressões crimes formais/crimes materiais e a adoção exclusiva das expressões crimes de mera conduta ou de atividade/crimes de resultado, já consagradas e mais estáveis, e que parecem expressar com mais fidelidade o critério diferenciador: um tipo de crime que exige ou não, a realização de um resultado naturalístico para sua consumação.
Parece-nos, porém, que nenhuma destas classificações é decisiva para os propósitos que realmente moveram o Parquet a interpor o recurso especial julgado pelo STJ, que fora o de usufruir da suspensão da prescrição da pretensão punitiva em decorrência da aplicação da SV 24. Esse resultado pretendia ser alcançado a partir de uma associação quase mágica entre crime formal = afastamento da SV 24, crime material = aplicação da SV 24. Essa forma de proceder não tem ares de novidade; já foi feita com relação ao crime de descaminho (artigo 334, caput, CP), um claro exemplar de crime tributário que exige o não pagamento dos impostos[12], ao qual se atribuiu a qualidade de crime formal para privá-lo das consequências penais do pagamento e do parcelamento e, depois, da SV 24[13].
Novamente, no REsp 1.982.304, recorreu-se à mítica distinção entre crimes formais e materiais, aparentemente incorporada pela SV 24: se é crime material, há necessidade de se aguardar o término do processo administrativo fiscal para a consumação do delito.
Todavia, como demonstraremos na segunda parte deste texto a incidência da súmula vinculante só faz sentido naquelas figuras que pressupõem que o sujeito passivo (contribuinte ou responsável) não tenha realizado o autolançamento[14], e isso independentemente de as classificarmos como crimes formais/materiais, de mera conduta ou de resultado, de dano ou de perigo.
[1] No texto acima indicado, fizemos comentários à ADI 4.980, julgada em março de 2022 pelo Supremo Tribunal Federal, e que não cabem neste espaço.
[2] Cf. MOURA/CAVALI, Revista do Advogado 154, p. 2–10.
[3] SCHULENBURG, La teoría del bien jurídico, p. 360-362; no mesmo sentido, GRECO, Modernização do direito penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato, p. 40. O bem jurídico não se confunde com o objeto da ação: “se A furta um anel a B, objeto da ação é o anel, bem jurídico a ‘propriedade alheia’; se C mata D, o corpo de D é o objeto da ação, a vida humana o bem jurídico lesado” (FIGUEIREDO DIAS, Direito penal PG I, p. 359).
[4] A expressão é de RÖNNAU, JuS 11/2010, p. 961.
[5] Cf. SANTOS, Direito penal PG, p. 85; TAIPA DE CARVALHO, Direito penal PG, p. 303.
[6] BRUNO, Direito penal PG II, p. 221.
[7] BRUNO, Direito penal PG II, p. 222.
[8] Cf. GRECO, Boletim IBCCRIM 229, p. 7; ROXIN/GRECO, Strafrecht AT I, §10, nm. 104; HEFENDEHL, Kollektive Rechtsgüter im Strafrecht, p. 155. Críticas da coautora deste texto em ESTELLITA, Responsabilidade de dirigentes de empresas por omissão, p. 236-239.
[9] Greco prefere o termo lesão (cf. GRECO, Modernização do direito penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato, p. 75 e ss.); Badaró, o termo dano (cf. BADARÓ, Bem jurídico-penal supraindividual, p. 241-242).
[10] SCHULENBURG, La teoría del bien jurídico, p. 367-370. Cf. SANTOS, Direito penal PG, p. 86-87; FIGUEIREDO DIAS, Direito penal PG I, p. 359-363. Demonstrações induvidosas em GRECO, RBCCrim 49, p. 89–147. Cf. também o ilustrativo artigo de MONTENEGRO/VIANA, Jota (23 mar. 2020).
[11] Outros exemplos, nem sempre isentos de dúvida, em LEÃO/SCALCON, Revista de Direito Tributário Atual 50, p. 330; GRECO, Modernização do direito penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato, p. 40.
[12] A jurisprudência do STJ é praticamente pacífica nesse sentido. Cf, apenas para indicar precedente recente, o acórdão proferido no AgRg no REsp 1964478, 5ª Turma, Rel. Joel Ilan Paciornik, j. 14/12/2021, DJe 16/12/2021.
[13] Uma proposta que ajusta bem ao vício que atinge juristas de querer que os fenômenos se acomodem às classificações e não o contrário, segundo CARRIÓ, Notas sobre derecho y lenguaje, p. 99.
[14] Preferiremos esta expressão à outra comumente utilizada – lançamento por homologação – apenas para tornar o texto mais conciso.