APONTAMENTOS SOBRE O RITO DE CUMPRIMENTO DA SENTENÇA DE ALIMENTOS
Rafael Calmon Rangel
SUMÁRIO: Introdução. 1 Das Inovações Consideradas Positivas. 2 Das Inovações Consideradas Negativas. A Título de Encerramento. Referências.
Introdução
O propósito que anima este ensaio perpassa pela necessidade de se compartilhar inquietações, provocações, talvez, sobre algumas novidades trazidas pelo novo CPC, especialmente no que concerne ao cumprimento da obrigação de prestar alimentos legítimos, estabelecida por pronunciamento judicial.
Diversas delas merecem aplausos; algumas, severas críticas; todas, detida reflexão.
O texto é curto e não tomará muito tempo do leitor, mas espero sinceramente que as questões aqui levantadas sirvam como um convite a que o texto legal seja lido de forma crítica e menos passiva pelos profissionais da área jurídica.
1 Das Inovações Consideradas Positivas
Um primeiro ponto que acredito seja digno de aplausos aparece logo na epígrafe do capítulo destinado à disciplina da matéria, que agora é denominado “Do cumprimento de Sentença que Reconheça a Exigibilidade de Obrigação de Prestar Alimentos” (Parte Especial, Livro I, Título II, Capítulo IV). Longe de proporcionar alterações limitadas ao campo semântico, essa inovação repercute sobre a esfera jurídica de todos aqueles que necessitem recorrer ao Poder Judiciário para cobrar débitos de natureza alimentar, como mencionarei mais a frente.
Outra novidade merecedora de elogios, acredito eu, vem no artigo inaugural deste capítulo, qual seja o art. 528, cujo texto enuncia que “no cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo“, eliminando, de vez, as sérias e fundadas dúvidas a respeito do procedimento a ser aplicado à então execução da decisão interlocutória que fixava os alimentos provisórios. Agora, portanto, parece ter havido a definição no sentido de que o rito adequado à cobrança dos alimentos fixados em decisão judicial será exatamente o mesmo, qual seja aquele previsto nos arts. 528/532, independentemente da natureza do pronunciamento que os houver estabelecido. Mais do que isso: esse rito difere por completo daquele previsto para a cobrança de quantia certa que não seja decorrente de obrigação alimentar (arts. 523/527).
As implicações daí decorrentes são gigantescas. Observe, de início, que a sentença/decisão exequenda não precisará ter transitado em julgado/precluído para que o devedor seja instado a cumpri-la definitivamente, contrariamente ao que ocorreria se se tratasse de decisão que reconhecesse a exigibilidade de outra prestação, diversa da de prestar alimentos [1]. Isso fica bem claro não só a partir da leitura dos dispositivos legais acima transcritos – que bem demonstram as distinções entre um e outro procedimento -, mas especialmente pelo que estabelece o art. 531, segundo o qual “o disposto neste Capítulo aplica-se aos alimentos definitivos ou provisórios“. Em aparente reforço a essa afirmação, o art. 1.012, § 1º, II, enuncia que “começa a produzir efeitos imediatamente após a sua publicação a sentença que condena a pagar alimentos“.
Lendo-se esses e outros dispositivos do Código de forma conjugada e sistematizada, percebe-se que não foi por acaso a retirada do termo “definitivo“, contido na epígrafe do Capítulo III – destinado ao cumprimento de obrigação de pagar quantia certa -, daquele que inaugura o Capítulo IV – dedicado ao cumprimento da decisão que estabelece alimentos -, sendo este, inclusive, o motivo pelo qual fiz questão de lançar a observação correspondente, logo ao inaugurar este texto.
Como resultado dessa nova sistemática, a decisão que fixar alimentos provisórios sob a técnica da tutela provisória de urgência (Lei nº 5.478/68, art. 4º) não terá que se submeter ao regramento do cumprimento provisório estabelecido pelo art. 520 do CPC, excepcionando, com isso, a regra contida no art. 297, parágrafo único, do mesmo Código. Isso quer dizer que, mesmo que as decisões de alimentos desafiem recursos desprovidos de efeito suspensivo automático (arts. 1.012, § 1º, II, e 1.015, I, c/c o art. 1.019, I), serão cumpridas sempre e em qualquer hipótese, de forma definitiva, ainda que em algumas hipóteses o requerimento correspondente tenha que ser autuado em apartado (art. 531, § 1º).
Questão curiosa e que merece atenciosa reflexão a respeito diz respeito à possibilidade de o exequente-alimentado responder pelos eventuais prejuízos que a efetivação da tutela de urgência causar ao executado-alimentante, uma vez que não há “cumprimento provisório” desse tipo de decisão. Apesar de aparentemente soar contraditório, me parece que pode haver, sim, a responsabilização a que alude a regra do art. 302 do Código. Isso porque, mesmo inexistindo a possibilidade de haver seu “cumprimento provisório“, a decisão que estabelece alimentos provisórios continua sendo uma espécie de “tutela de urgência“, logo, dotada de provisoriedade e de aptidão a ser substituída pela “tutela definitiva” conferida pela sentença (art. 296), a qual pode inclusive vir a revogá-la. Não por outro motivo, o art. 297, parágrafo único, faz questão de ressalvar que a efetivação da tutela provisória observará as normas referentes ao cumprimento provisório da sentença, “no que couber“. Portanto, ocorrendo qualquer uma das hipóteses previstas nos incisos do art. 302, acredito que o exequente-alimentado possa vir a ser responsabilizado por eventuais danos causados pela efetivação da medida concedida a seu favor, desde que seja observada, por óbvio, a regra que impõe a irrepetibilidade dos alimentos recebidos (CC, art. 1.707) [2].
A definitividade da cobrança de toda e qualquer decisão que fixe alimentos permite, também, que o Juízo competente encaminhe os dados do executado-alimentando ao Cartório de Protesto de Títulos e Documentos (art. 528, § 1º). Essa possibilidade, que encampa uma novidade ao sistema, só pode ser levada a efeito depois de o exequente-alimentado ter provocado a atividade do Estado-juiz, por meio do requerimento de instauração do cumprimento da decisão e de ter havido o escoamento do tríduo legal para pagamento ou a rejeição da manifestação por parte do executado-alimentante, o que retira a possibilidade de tal pronunciamento ser protestado sem que o devedor tenha tido, antes, a possibilidade de cumprir a prestação a qual tenha sido obrigado. Mais do que isso, penso que o protesto não possa ser ordenado de ofício, como defende respeitável parcela da literatura [3], pois assim como toda e qualquer medida constritiva, esta também se encontra na esfera de disponibilidade da parte credora, que, por razões diversas, pode não ter interesse em sua implementação, assim como pode dela desistir a qualquer momento (art. 775). Basta imaginar que o executado-alimentante possa estar inadimplindo o pagamento em pecúnia da pensão, mas estar adimplente com outras obrigações alimentares in natura que dependam da higidez de seus cadastros perante órgãos de proteção ao crédito, que poderiam restar seriamente comprometidas com sua “negativação“, como o financiamento de despesas diversas em prol do alimentado por meio de cheque ou cartão de crédito, por exemplo. A suspensão desses pagamentos, por óbvio, pode não ser do interesse do credor.
Aparentemente, o que vem levando ao entendimento que defende a possibilidade de protesto de ofício é a interpretação literal do enunciado do art. 528, § 1º, segundo o qual “o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial“. Entretanto, é sabido que o legislador não costuma velar pela precisão terminológica nos textos normativos e que, por vezes, o verbo é empregado em tempo e modo diversos daqueles em que efetivamente deveriam ter sido. Tanto é assim que esse mesmo legislador utiliza o verbo “decretar” no § 3º do art. 528, no mesmo tempo, modo e tom imperativo em que emprega o verbo “mandar” no dispositivo em questão (§ 1º), mas nem por isso se entende que a prisão possa ser decretada de ofício [4]. De mais a mais, não são só as decisões proferidas “contra” a parte que deverão ser precedidas de sua oitiva (art. 9º), mas também aquelas proferidas a seu “favor“, sob pena de postura contrária inviabilizar o efetivo contraditório a que faz referência o art. 7º do Código.
Portanto, acredito que sempre e em qualquer hipótese o credor deverá ser ouvido previamente à decretação de qualquer medida constritiva, tenha ela por alvo a pessoa ou os bens do devedor.
Traçado esse breve panorama, resta saber como o cumprimento se operacionalizará na prática.
De forma muito mais simplificada e organizada do que aquela prevista no CPC/73, o CPC/2015 disciplina o cumprimento da decisão por coerção pessoal nos arts. 528/532 e por coerção patrimonial no art. 528, § 8º, c/c os arts. 523/527. Assim como era antigamente, trata-se de alternativa conferida ao exequente-alimentado, que, se optar pela segunda, não poderá requerer a prisão do executado, muito embora possa se valer da vantagem de levantar mensalmente a importância da prestação na hipótese de a penhora recair em dinheiro, mesmo na eventualidade de ter sido atribuído efeito suspensivo à impugnação apresentada pelo executado-alimentante, como, aliás, deixa claro o enunciado do art. 528, § 8º, do Código.
Em qualquer hipótese, o cumprimento da decisão poderá ser instaurado no juízo de seu próprio domicílio, no do atual domicílio do executado, no juízo do local onde se encontrem os bens sujeitos à execução ou no juízo do local onde deva ser executada a obrigação de fazer ou de não fazer, casos em que a remessa dos autos do processo será solicitada ao Juízo de origem (art. 528, § 9º, c/c o art. 516,
Não existe possibilidade de o juiz instaurar de ofício o procedimento, daí porque será necessário requerimento formulado pelo interessado nesse sentido, de resto imposto pelo art. 528, caput.
Questão que certamente gerará intensa discussão diz respeito ao número de prestações passíveis de serem cobradas pelo rito da coerção pessoal. Durante o sistema revogado, firmou-se o entendimento de que somente poderia ser executado pelo rito do então art. 733 do CPC/73 o débito referente aos três meses vencidos imediatamente antes da propositura da execução, além dos vincendos. Agora, no entanto, quer me parecer que tal limitação não mais exista. Explico. O novo procedimento executivo alimentar é um só, o que significa dizer que não mais existe a dualidade procedimental obrigatória prevista pelos revogados arts. 732 e 733 do CPC/73. O que existe é a possibilidade de o exequente-alimentado abrir mão da vantagem procedimental que a lei lhe assegura, para mover a execução sob o método de coerção pessoal, mas isso só ocorrerá se ele assim desejar. Para além disso, tal rito é muito mais célere do que aquele previsto para a efetivação das decisões que reconhecem a exigibilidade de créditos de outra natureza, de resto, justificado pela própria natureza da obrigação. Basta ver que, enquanto o art. 528, caput, prescreve o prazo de três dias para que o executado-alimentante adote alguma das alternativas por ele previstas, o art. 523, caput, confere 15 dias para tanto, valendo a lembrança de que ambos os prazos serão contados em dias úteis (art. 219, caput). Mas não há nenhuma prescrição normativa impondo que o débito executado sob o rito da coerção pessoal tenha que se limitar a um trimestre antecedente à instauração do procedimento. O que existe é a previsão legal dispondo que “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende até as 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo” (art. 528, § 7º), o que não significa dizer que a existência de débito referente a período superior obstaculize a abertura do procedimento. Observe: o débito que autoriza a prisão civil é que deve sofrer limitações, mas não o débito que possibilita o cumprimento da decisão. São coisas absolutamente distintas, que não podem ser confundidas, sob pena de o exequente-alimentado vir a ser significativamente prejudicado pela compulsoriedade do manejo de dois procedimentos distintos.
Logo, nada há que impeça o credor de dar início ao cumprimento da decisão alimentar pelo meio exclusivamente previsto para tanto com o objetivo de receber parcelas vencidas há mais de um trimestre, desde que, por óbvio, seu requerimento de prisão tenha por pretensão compelir o executado-alimentante a pagar “apenas” o débito referente ao trimestre anterior, acrescido das parcelas vincendas no momento do efetivo pagamento. Quanto ao débito restante, lhe restará requerer que o executado-alimentante seja compelido a pagar sob pena de constrição patrimonial, como lhe faculta o art. 530, segundo o qual, “não cumprida a obrigação, observar-se-á o disposto nos arts. 831 e seguintes” [5].
Se se parar pra pensar que o débito aglomerado nesse trimestre é justamente aquele que vem sendo considerado como atual e, por isso, indispensável à sobrevivência do credor, conclui-se com facilidade como essa técnica lhe pode ser muito útil.
Deve-se observar, ainda, o seguinte: longe de representar a única vantagem desse rito, a prisão civil é, como já assinalado, só mais uma dentre as diversas técnicas processuais diferenciadas previstas pelo legislador para o procedimento executivo alimentar. Mesmo sem ela, o exequente-alimentado poderá ser beneficiado com o exíguo prazo para manifestação do executado-alimentante, com o protesto do título, com a faculdade de instaurar o procedimento no Juízo de seu domicílio, com a possibilidade de cobrar a pensão estabelecida em tutela provisória e com o uso dos diversos outros métodos expropriatórios comentados neste ensaio, que decerto lhe proporcionarão uma posição jurídica de vantagem frente ao detentor de créditos de outra natureza.
No que concerne à exiguidade de prazo, inclusive, talvez algumas vozes possam se levantar contra o posicionamento aqui defendido, ao argumento de que o direito de defesa do executado-alimentante poderia restar prejudicado pelo fato de o art. 528, caput, lhe assegurar apenas três dias úteis para apresentar manifestação, sob a forma de justificativa, enquanto os arts. 523 e 525 lhes assegurariam o prazo de 30 dias úteis para apresentação de impugnação. No entanto, esse argumento seria facilmente rechaçado pela simples constatação de que se é a própria lei que confere o lapso de três dias para apresentação de argumentos voltados a impedir uma prisão civil, obviamente essa mesma lei entende que esse prazo também é suficiente para que o devedor exponha argumentos tencionados ao impedimento da constrição de seus bens, pois a liberdade pessoal é valor mais importante para o ordenamento jurídico do que o patrimônio. Isso, ao menos, em tese [6].
De mais a mais, as especificidades do procedimento executivo alimentar têm por finalidade proporcionar a facilitação do recebimento de crédito dotado de peculiaridades que justificam essa diferenciação de tratamento.
Longe de desrespeitar o sistema de precedentes instituído pelo CPC/2015 (art. 927, IV), o posicionamento aqui defendido o privilegia, pois o enunciado sumular é no sentido de que apenas a prisão civil se condiciona à limitação quantitativa acima mencionada, e não o procedimento executivo [7].
O entendimento ora sustentado ganha reforço quando se para pra pensar que a revogação dos arts. 16 a 18 da Lei nº 5.478/68 pelo art. 1.072, V, do CPC/2015 não foi à toa, já que era com base neles que o legislador meio que impunha uma ordem preferencial de medidas expropriatórias, a iniciar pelo desconto em folha, seguindo pela constrição de eventuais aluguéis de prédios ou de quaisquer outros rendimentos do devedor, para, apenas na hipótese dessas técnicas restarem infrutíferas, poder ter início a execução na forma dos arts. 732, 733 e 735 do CPC/73[8].
No novo sistema, essa gradação não mais se justifica [9].
Para além de poder requerer a prisão civil independentemente da observação de qualquer ordem de medidas constritivas, o exequente-alimentado tem o direito de requerer o desconto em folha de pagamento da importância da prestação alimentícia, na hipótese do executado-alimentante ser funcionário público, militar, diretor ou gerente de empresa ou empregado sujeito à legislação do trabalho (art. 529). Mais do que isso. O § 3º desse mesmo artigo lhe assegura que, “sem prejuízo do pagamento dos alimentos vincendos, o débito objeto de execução pode ser descontado dos rendimentos ou rendas do executado, de forma parcelada, nos termos do caput deste artigo, contanto que, somado à parcela devida, não ultrapasse cinquenta por cento de seus ganhos líquidos“.
Se for levado em consideração que a orientação jurisprudencial predominante à época do CPC revogado oscilava sobremaneira, pendendo a privilegiar o entendimento de que valor não poderia ultrapassar o equivalente a 30{76169b13dc8071a543622af38f43e06a70fe94f036afac6a80498da78c2dc5a6} desses rendimentos [10], a inovação revela-se bastante importante.
Caso não seja alcançado o cumprimento da prestação por nenhuma dessas modalidades, o exequente-alimentado ainda terá o direito de requerer a penhora de bens/ativos financeiros pertencentes ao executado-alimentante, devendo a execução se processar sob o rito da coerção patrimonial daí por diante (art. 530).
Por se tratar de procedimento subsequente ao módulo de conhecimento, não será exigida a citação do devedor em nenhuma dessas modalidades executivas, bastando que ele seja intimado para tanto. Tal intimação, porém, deverá ser pessoal, conforme exigido pelo art. 528, caput, e não na pessoa de seu advogado, na forma permitida para as outras modalidades de execução (art. 513, § 2º). Uma vez intimado, ele terá o tríduo legal para praticar as mesmas condutas que já lhe eram asseguradas pelo sistema anterior: pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo (art. 528, caput), lembrando que apenas argumentos especificamente ligados à impossibilidade de pagamento poderão ser deduzidos nessa peça [11] e que somente a comprovação de fato que gere a impossibilidade absoluta de pagar justificará o inadimplemento (art. 528, § 2º).
Permanecendo inerte o executado ou sendo rejeitada sua justificativa, a decisão judicial poderá ser encaminhada a protesto e sua prisão poderá ser decretada, desde que, em ambas as hipóteses, haja requerimento nesse sentido (art. 528, § 3º). Por outro lado, em sendo acolhida sua justificativa, não significa que o módulo executivo será extinto, pois o que acarreta sua extinção é o pagamento, sob qualquer modalidade. Portanto, eventual acolhimento da justificativa acarreta apenas a impossibilidade momentânea de decretação da prisão, mas não a paralisação ou extinção da execução, que deverá prosseguir com a adoção de outras técnicas expropriatórias [12].
É claro que o cumprimento da prisão não exime o executado do pagamento das prestações vencidas e vincendas, pois a pretensão do exequente é que aquele cumpra a prestação a que foi obrigado. Mas, uma vez paga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de prisão imediatamente (art. 528, §§ 5º e 6º), extinguindo o procedimento, quando for o caso.
Sob a égide do sistema revogado, firmou-se o entendimento segundo o qual o descumprimento do acordo homologado no curso de prévia execução ensejaria a prisão do executado, por não se constituir dívida pretérita, mas, sim, atual [13]. Tudo indica que esse posicionamento se manterá com a entrada em vigor do CPC/2015, razão pela qual, por questão de economia e efetividade processuais, talvez seja mais conveniente que as partes convencionem a suspensão do curso do processo pelo prazo necessário para o cumprimento da execução, na forma autorizada pelo art. 922, em vez de requererem a extinção da execução após a homologação do acordo (art. 924, III).
Cumprida a prestação, o procedimento será extinto e os autos arquivados. Mas, verificada a conduta procrastinatória do executado, o juiz deverá, se for o caso, dar ciência ao Ministério Público dos indícios da prática do crime de abandono material (art. 532).
2 Das Inovações Consideradas Negativas
Feitos os elogios e as reflexões necessárias, é chegada a hora das críticas.
Afora a louvável atitude de positivar aquilo que já representava o entendimento sumulado no Enunciado nº 309 do Superior Tribunal de Justiça, a opção legislativa a respeito de alguns pontos relativos à prisão civil talvez mereça mais reprovações que aprovações. Isto porque, desde a falta de definição sobre a possibilidade de o juiz decretar o segregamento de ofício até a ampliação do tempo dessa custódia em relação àquele prescrito pela Lei de Alimentos, uma série de pequenas incoerências pode comprometer significativamente a estrutura do novo sistema, dificultando sua implantação de modo uniforme, estável e coerente no campo prático.
Observe de início que o legislador estabeleceu o prazo prisional em meses, quando talvez devesse ter prestigiado a técnica de prazo em dias, tornando a medida menos drástica ao devedor. Isso porque a segregação em referência não possui natureza punitiva-penal, mas, sim, coercitiva-civil, o que, em tese, deveria atrair a aplicação da norma contida no art. 132 do Código Civil a respeito da contagem dos prazos, que, no particular, estabelece que “os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência” e que, salvo disposição em sentido contrário, “computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento” [14]. Porém, melhor seria se o legislador enunciasse expressamente que o prazo deveria ser contado na forma do art. 10 do Código Penal [15], para que o executado-alimentante não sofresse maiores prejuízos com essa contagem, sobretudo se for preso nos meses de 31 dias. Veja, por exemplo, o que aconteceria com um devedor de alimentos preso no dia 31 de julho, por três meses. Caso o prazo de prisão fosse contado na forma da lei civil e não houvesse pagamento, a soltura somente poderia ocorrer no dia 31 de outubro, somando um total de 93 dias de encarceramento. Já se fosse decretada a prisão por 90 dias e a contagem ocorresse na forma da lei penal, a prisão efetuada no mesmo dia 31 de julho geraria a soltura no dia 28 de outubro.
Sério? Permanecer três dias a mais encarcerado em uma penitenciária situada no Brasil?
A situação se agrava quando se constata que o legislador definiu que “a prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns“, quando, de repente, a criação de um regime específico fosse mais adequado, sobretudo pela incoerência de se aplicar um regramento voltado para a sanção de índole punitiva a uma medida de natureza coercitiva que, por lei, deve ser cumprida em estabelecimento propício ou em seção especial da cadeia pública, mas jamais na penitenciária, ambiente especificamente criado para os condenados à pena de reclusão em regime fechado, nos termos dos arts. 87 e 201 da Lei de Execução Penal, aplicada em caráter excepcional às execuções de alimentos [16]. Some-se a isso que parecem ter sido ignorados os substanciosos estudos desenvolvidos na seara do Direito Penal, voltados à busca de alternativas menos severas de cumprimento de pena até mesmo para os réus condenados pela prática de crimes hediondos, não raro proporcionando a edição de súmulas pelos Tribunais de Superposição no sentido de admitir, por exemplo, a adoção do regime prisional semiaberto a reincidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos [17], ou a progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo ou a ele equiparado [18].
Digna de aplausos, por isso, a sensibilidade da Ministra Nancy Andrighi no julgamento do HC 104.454/RJ, ainda nos idos de 2008, quando determinou que o cumprimento da prisão civil pelo devedor de alimentos deveria seguir “os moldes do regime fechado“, mas não o regime fechado propriamente dito, tornando coerente a execução da medida coercitiva com sua finalidade de forçar ao pagamento, e não de reabilitar e ressocializar o devedor de alimentos.
Para que esses e outros potenciais conflitos de interpretação fossem evitados talvez fosse mais sensato que o próprio legislador tomasse partido a respeito e impusesse que a prisão civil não deveria se submeter a nenhum regime penal de cumprimento, mas a algum estatuto jurídico próprio, ainda que em parâmetros semelhantes aos de alguns regimes penais, dada sua natureza coercitiva a distinguir por completo da modalidade de prisão-pena. Também seria mais coerente que a lei enunciasse expressamente que o prazo fosse fixado em dias e que a contagem devesse ser feita na forma prevista pelo art. 10 do Código Penal, dada a nítida carga segregatória de liberdade que a medida carrega.
De mais a mais, não seria de se estranhar a altamente paradoxal possibilidade de um devedor de alimentos cumprindo a prisão sob as regras do regime fechado passar a possuir, ao menos em tese, o direito à percepção do auxílio-reclusão previsto no art. 116 do Regulamento da Previdência Social (Decreto nº 3.048/99), pois o dispositivo legal emprega indistintamente o vocábulo “reclusão“, sem fazer qualquer referência ao crime ou à origem da medida privativa de liberdade, mas tão somente ao fato objetivo de haver segurado recolhido à prisão sob regime fechado ou semiaberto, o que poderia conduzir à absurda situação de o Estado acabar arcando com a dívida contraída pelo alimentante negligente, na medida em que os beneficiários da quantia são os dependentes do segurado, nos quais certamente se incluiria o credor promovente da execução de alimentos.
Sinceramente, não acredito que isso ocorrerá, pois o abuso de determinadas situações jurídicas tem limite. Mas não descartaria peremptoriamente a possibilidade de algum devedor de alimentos tentar abusar dessa posição para auferir proveito econômico. Como resultado, os anuários estatísticos do IBGE, que já indicam números nada módicos de concessão deste benefício, certamente iriam sofrer considerável aumento [19].
Outra inovação que talvez não tenha sido adequada e já vem causando dissenso na literatura diz respeito à inclusão do art. 533 no capítulo destinado ao cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos [20], devido às dúvidas que podem surgir a respeito do cabimento da prisão civil para o devedor de alimentos civis. Em outro artigo, tive a oportunidade de debater a respeito com Luiz Dellore, defendendo a aplicação da prisão exclusivamente ao devedor de alimentos legítimos, isto é, de direito de família, de resto baseado na distinção entre “dívida alimentar” e “dívida de caráter alimentar“. Aqui, o espaço é por demais restrito e não comportaria maiores discussões a respeito, razão pela qual prefiro remeter o leitor ao texto em questão [21].
De todos os apontamentos acima, porém, talvez as maiores críticas sejam direcionadas à não revogação expressa do art. 19 da Lei de Alimentos pelo art. 1.072, inciso V, do CPC/2015. É que, com a vigência simultânea dele e do art. 528, § 3º, do Código, a conhecida e criticada antinomia existente entre as regras prescritas pelos dois diplomas a respeito do prazo da prisão civil do devedor de alimentos continuará existindo no sistema. Isto porque, enquanto este artigo enuncia que “se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses“, aquele preceitua que “o juiz, para instrução da causa ou na execução da sentença ou do acordo, poderá tomar todas as providências necessárias para seu esclarecimento ou para o cumprimento do julgado ou do acordo, inclusive a decretação de prisão do devedor [por] até 60 (sessenta) dias“, rendendo ensejo a dúvidas não só sobre a possível vigência de dois prazos prisionais previstos como consequente normativo para uma mesma hipótese fática, como também a respeito da possibilidade de ser ordenada a prisão do executado pelo descumprimento de outros deveres que não o de propriamente pagar a dívida alimentar, como, por exemplo, o de prestar esclarecimento sobre algum ponto considerado duvidoso pelo juiz, o de se abster de criar inconvenientes à eventual penhora, na hipótese prevista pelo art. 530, ou de adotar conduta procrastinatória, na forma vedada pelo art. 532, dada a amplitude semântica de que este enunciado se reveste.
Não se questionam a importância e a necessidade da manutenção da prisão civil no ordenamento. Porém, o próprio local idealizado pelo legislador para o recolhimento desses devedores reclama a existência de estabelecimentos adequados, e, apenas em sua falta, o encaminhamento deles à cadeia pública, para o cumprimento da prisão civil em seção especial (LEP, art. 201) [22], daí porque estabelecer-se o regime fechado como único regime de cumprimento de uma prisão civil, definitivamente, não parece ser a melhor saída.
A Título de Encerramento
Esses são os pontos que, segundo penso, acarretarão desconforto. Obviamente, diversos outros que não foram aqui tratados existem. Agora, resta torcer para que os estudiosos se debrucem sobre essas e tantas outras inquietações e apresentem soluções para que o cumprimento da obrigação de prestar alimentos se desenvolva sem maiores percalços.
Referências
AMARAL, José Almir do. Aspectos da prisão civil. Ajuris, Porto Alegre, n. 50, 1990.
ASSIS, Araken de. Comentários ao Código de Processo Civil. LEJUR, v. 9, 1985, p. 496/498.
_____. Manual do processo de execução. 5. ed. São Paulo: RT, 1998.
CASTRO, Amílcar de. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. VII.
DELLORE, Luiz. O que acontece com o devedor de alimentos no novo CPC? Disponível em: <http://jota.info/o-que-acontece-com-o-devedor-de-alimentos-no-novo-cpc>. Acesso em: 10 jan. 2016.
______; RANGEL, Rafael Calmon. Sobre a prisão civil do devedor de alimentos no novo CPC. Revista IBDFAM, v. 10, jul./ago. 2015, p. 81/88.
HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Org.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
RANGEL, Rafael Calmon. Sobre a eficácia retroativa da sentença que minora alimentos. Caderno de Doutrina da Revista In Limine, jan./jun. 2014.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. v. 3.
THEODORO Jr., Humberto. Curso de direito processual civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 2.
[1] Aparentemente com esse pensar: HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Org.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 839.
[2] A respeito da irrepetibilidade dos alimentos, conferir: RANGEL, Rafael Calmon. Sobre a eficácia retroativa da sentença que minora alimentos. Caderno de Doutrina da Revista In Limine, jan./jun. 2014, p. 11-13.
[3] Entendendo que o protesto pode ser ordenado de ofício: DELLORE, Luiz. O que acontece com o devedor de alimentos no novo CPC? Disponível em: <http://jota.info/o-que-acontece-com-o-devedor-de-alimentos-no-novo-cpc>. Acesso em: 10 jan. 2016.
[4] A discussão em torno dessa possibilidade parece não ter mais cabimento. No sistema anterior, prevalecia o entendimento que defendia a necessidade de requerimento. Dentre vários clássicos da literatura: AMARAL, José Almir do. Aspectos da prisão civil. Ajuris, Porto Alegre, n. 50, 1990; ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 5. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 125; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. v. 3. p. 283/285.
[5] “Art. 831. A penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios.”
[6] No campo penal existe certa controvérsia a respeito. Dentre os diversos fatores comumente apontados para tanto, ressalta-se o fato de o legislador não considerar o homicídio simples um crime hediondo, enquanto reputa falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais como tal (Lei nº 8.072/90, art. 1º, VII-B), assim como o fato de o latrocínio, crime contra o patrimônio previsto, em tese, no art. 157, § 3º, do CP, possuir pena mínima cominada em abstrato oito anos superior àquela prevista teoricamente para o homicídio doloso, crime contra a vida previsto, em tese, no art. 121, § 2º, do mesmo Código, ao tempo em que ambos possuem 30 anos como pena máxima cominada em abstrato.
[7] STJ, Súmula nº 309: “O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”.
[8] Respeitável parcela da literatura defendia esse posicionamento durante a vigência do sistema revogado. Por exemplo: CASTRO, Amílcar de. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. VII. p. 162/163. Na jurisprudência também era possível verificar semelhante tendência. Por exemplo: STJ, REsp 137.149/RJ, DJ 09.11.98; RT 485/277; RT 471/305; RT 484/271.
[9] Mesmo no sistema revogado, expoentes da literatura jurídica sustentavam a inexistência dessa gradação. Com esse pensar, dentre outros: ASSIS, Araken de. Comentários ao Código de Processo Civil. LEJUR, v. 9, 1985, p. 496/498; THEODORO Jr., Humberto. Curso de direito processual civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 2. p. 268.
[10] REsp 997.515/RJ, DJe 26.10.2011; RHC 9.718/MG, DJ 18.09.00; HC 11.163/MG, DJ 12.06.00; e REsp 254.047/SP, DJ 25.09.00.
[11] Nesse sentido, dentre vários: STJ, HC 242.654/SP, DJe 26.03.2013.
[12] Preciso, nesse sentido, o seguinte julgado: REsp 1.185.040/SP, DJe 09.11.2015.
[13] STJ, AgRg no REsp 1.279.236/MG, DJe 05.03.2015; RHC 30.879/SP; HC 249.079/RJ; RHC 29.250/MT; HC 155.823/RJ.
[14] “Art. 132. Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento.
- 1º Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil.
- 2º Meado considera-se, em qualquer mês, o seu décimo quinto dia.
- 3º Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência.”
[15] “Art. 10. O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo. Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum.”
[16] STJ, HC 181.231/RO, DJe 14.04.2011.
[17] STJ, Súmula nº 269.
[18] STF, Súmula Vinculante nº 26.
[19] Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2013/05/AEPS_2012.pdf>.
[20] “Art. 533. Quando a indenização por ato ilícito incluir prestação de alimentos, caberá ao executado, a requerimento do exequente, constituir capital cuja renda assegure o pagamento do valor mensal da pensão. (…)”
[21] DELLORE, Luiz; RANGEL, Rafael Calmon. Sobre a prisão civil do devedor de alimentos no novo CPC. Revista IBDFAM, v. 10, jul./ago. 2015, p. 81/88.
[22] De acordo com o art. 103 da LEP, cada comarca terá pelo menos uma cadeia pública a fim de resguardar o interesse da administração da Justiça Criminal e a permanência do preso em local próximo ao seu meio social e familiar.