APLICAÇÃO DA PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE NO PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO
João Pedro de Paula Santos Guimarães
Aimberê Almeida Mansur
A prescrição é um instituto essencial no Direito Tributário brasileiro, estabelecendo um limite de tempo para que o Fisco possa cobrar judicialmente os créditos tributários. Prevista no artigo 174 do Código Tributário Nacional (CTN), ela define que, após a constituição definitiva do crédito, a Fazenda Pública tem o prazo de cinco anos para iniciar uma execução fiscal.
Esse mecanismo é de extrema importância para garantir a segurança jurídica nas relações entre o Estado e o contribuinte, ao impedir que a cobrança de tributos possa se estender indefinidamente no tempo. Dessa forma, além de proteger o contribuinte, o instituto impõe um dever de eficiência ao poder público, que deve agir de maneira diligente.
Tendo como objetivo justamente a eficiência e a estabilidade das relações, o instituto da prescrição tributária também passou a ser aplicado no curso dos processos judiciais, sendo denominada como prescrição intercorrente.
A prescrição intercorrente no curso do processo civil brasileiro teve suas raízes desenvolvidas a partir da necessidade de conferir maior celeridade e segurança jurídica às relações processuais, sobretudo em casos em que a parte credora, após o início da demanda, permanece inerte por longo período, sem impulsionar o processo.
Esse conceito foi consolidado na Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/1980), que, em seu artigo 40, estabeleceu a possibilidade de prescrição intercorrente nos casos em que, após a suspensão do processo por até um ano, o exequente não adota as providências necessárias para localização de bens penhoráveis do devedor. A lei permitiu, assim, que o prazo de prescrição voltasse a fluir, garantindo que o processo não se estendesse indefinidamente.
Posteriormente, com a promulgação da Constituição de 1988, a prescrição intercorrente passou a ser reconhecida como garantia constitucional pelo inciso LXXVIII, artigo 5º, verbis: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Com o Código de Processo Civil de 2015, esse entendimento foi reforçado e modernizado, proporcionando um sistema mais ágil e eficaz, para que a inércia das partes não prejudicasse a conclusão dos processos.
Ainda que não utilize a expressão “prescrição intercorrente” (e também não o seja assim denominado pela doutrina) o artigo 485 passou a determinar a extinção do processo caso o mesmo fique “parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes” e nas hipóteses em que “o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias”, “por não promover os atos e as diligências que lhe incumbir”.
Por sua vez, a prescrição intercorrente propriamente dita, aplicável especificamente aos procedimentos de execução, restou consolidada no artigo 921, §4º do CPC/2015, assegurando o seu reconhecimento de ofício pelo julgador após o transcurso do prazo de cinco anos quando constatada a (a) inércia do exequente/credor em localizar o devedor ou bens para a penhora; ou (b) a ocorrência de abandono processual, caracterizado pela ausência de impulsos oficiais válidos que deem prosseguimento ao curso do processo de execução com a finalidade de satisfação do crédito em cobrança.
Ocorre que muito embora o instituto esteja previsto há décadas na legislação processual, e a despeito da previsão constitucional, a aplicação da prescrição intercorrente aos processos administrativos tributários ainda é matéria controvertida, principalmente junto ao Superior Tribunal de Justiça.
De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a prescrição intercorrente não pode ser reconhecida nos processos administrativos de natureza tributária que visam à cobrança de tributos. Essa posição se fundamenta no artigo 5º da Lei 9.873/1999, que expressamente exclui a aplicação da prescrição intercorrente, prevista no artigo 1º da mesma lei, aos processos e procedimentos tributários. Além disso, o STJ aponta que não há, no ordenamento jurídico, qualquer norma que permita o reconhecimento desse tipo de prescrição no âmbito do processo administrativo fiscal, especialmente no Código Tributário Nacional (CTN).
Entendimento afronta princípios
Contudo, com a devida vênia, discordamos desse entendimento. A demora da União Federal, dos estados e municípios em julgar os processos administrativos fiscais sob a sua jurisdição afronta de forma direta os princípios da razoável duração do processo e da segurança jurídica, garantidos pela Constituição Federal por meio do artigo 5º, LXXVIII, cuja disposição é dotada de eficácia plena e aplicabilidade imediata, nos termos do artigo 5º § 1º do referido diploma. Ora, não é lícito, nem jurídico, que o contribuinte fique à mercê de uma discussão tributária, por inércia da administração, por mais de cinco, dez, 15 anos.
Além da questão jurídica, com o avanço tecnológico na gestão dos processos, especialmente com a implementação de sistemas eletrônicos e o processo digital, a justificativa operacional para a ausência de uma prescrição intercorrente nos procedimentos fiscais tornou-se inócua. No passado, a dificuldade em tramitar e acompanhar processos físicos justificava, até certo ponto, a demora na resolução de litígios tributários. No entanto, com as ferramentas atuais de automação e monitoramento, que permitem maior controle e transparência, tornou-se inaceitável a inércia prolongada por parte do Fisco, não só do ponto de vista jurídico, mas também material.
A eficiência que esses sistemas proporcionam elimina qualquer razão plausível para a indefinição de prazos, reforçando a necessidade de aplicação da prescrição intercorrente para garantir a segurança jurídica e a celeridade dos processos por parte do poder judiciário.
Posição do STF e a divergência do TJ-RJ
Embora não tenhamos ainda um pronunciamento específico do Supremo Tribunal Federal sobre a questão, em outros julgamentos, a corte superior reconheceu a importância do instituto, ainda que na via judicial.
No julgamento do Tema 390, no qual o STF declarou constitucional o artigo 40 da Lei 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais), o ministro Roberto Barroso, ao fundamentar seu voto, pontuou que:
“(…) o sistema jurídico, voltado à pacificação dos conflitos sociais, não pode conviver com a permanência, sem qualquer limite temporal, do poder persecutório do Estado em face dos indivíduos. Em outras palavras, a imprescritibilidade das relações jurídicas não é compatível como os princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, considerando-se a necessidade de que as demandas sejam solucionadas em um tempo razoável.”
Tais fundamentos em tudo se aplicam ao reconhecimento da prescrição intercorrente na via administrativa.
Embora a jurisprudência dos demais tribunais seja em sua maioria desfavorável, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) tem divergido desse posicionamento, afastando-se do entendimento do STJ e reconhecendo reiteradamente a prescrição intercorrente do processo administrativo fiscal, aplicando os mesmos fundamentos utilizados pelo ministro Barroso no Tema 390 e o disposto no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição.
A título exemplificativo, em recente julgamento ocorrido em março de 2024, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu a prescrição intercorrente nos autos Ação Declaratória nº 0152224-51.2019.8.19.0001, que envolvia autuações fiscais referentes à cobrança de ISS. No caso concreto, durante o trâmite do processo administrativo, o contribuinte interpôs o Recurso Voluntário em 25.11.2009, contudo, o mesmo só foi julgado pelo Conselho de Contribuintes em 25/10/2018, ou seja, nove anos após a sua interposição.
O desembargador relator proferiu seu voto afirmando que deve se admitir a ocorrência do transcurso do prazo prescricional intercorrente no processo administrativo fiscal, já que não se mostra razoável, em observância ao princípio da segurança jurídica, que a Fazenda Pública possa prorrogar o prazo da prescrição da cobrança tributária indefinidamente, com a procrastinação do processo administrativo e a violação do princípio da duração razoável do processo, seja na esfera judicial ou na administrativa, já que se trata de uma garantia constitucional prevista no artigo 5º, LXXVIII da Constituição.
Tal demora compromete a estabilidade das relações jurídicas e afronta o princípio da razoável duração do processo, o que torna indispensável a aplicação de limites temporais para o exercício da cobrança tributária.
Nessa linha, além da decisão proferida nos autos da Ação Declaratória nº 0152224-51.2019.8.19.0001, foram localizados outros oito acórdãos de diferentes Câmaras de Direito Público e Privado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que reconheceram a ocorrência da prescrição intercorrente.
Essas decisões consolidam o entendimento do tribunal sobre a matéria, pacificando a possibilidade de aplicação da prescrição intercorrente em processos administrativos fiscais. Com isso, o tribunal reforça a proteção aos princípios constitucionais da razoável duração do processo e da segurança jurídica, delimitando o poder de cobrança do Fisco quando há inércia prolongada na condução do processo.
O entendimento consolidado pelo TJ-RJ sobre a prescrição intercorrente nos processos administrativos fiscais parece começar a ganhar força em outros tribunais. Até recentemente, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) mantinha uma posição pacífica de não reconhecer a prescrição intercorrente em tais casos. No entanto, esse cenário começou a mudar com o julgamento do Recurso de Apelação nº 1004497-68.2020.4.01.3300, ocorrido em fevereiro de 2024, no qual a 8ª Turma do TRF-1 aplicou o instituto da prescrição intercorrente, sinalizando uma possível inflexão na sua jurisprudência.
Nesse julgamento, a relatora destacou que:
“Os processos administrativos fiscais não podem se arrastar indefinidamente, em afronta à Constituição. O Fisco não possui prazo ilimitado para decidir sobre recursos e contestações administrativas relacionadas a lançamentos tributários e, se o crédito não for formalmente constituído dentro do prazo de 5 (cinco) anos, deve ser reconhecida a prescrição intercorrente. Seria contraditório estabelecer prazos para processos administrativos em geral e não para os fiscais, o que violaria a própria Constituição”. E concluiu pela aplicação “da prescrição intercorrente, em respeito aos princípios da eficiência, segurança jurídica, razoável duração do processo, oficialidade e legalidade administrativa.”
Embora a votação tenha sido unânime, a desembargadora Maura Moraes Tayer fez uma ressalva em relação ao seu entendimento pessoal quanto ao reconhecimento da prescrição intercorrente, divergindo do posicionamento adotado pela turma. Isso demonstra que ainda se trata de um julgado isolado no âmbito do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), mas que pode dar início a uma virada jurisprudencial.
Conclusão
Assim, levando-se em consideração todos esses aspectos, percebe-se que a aplicação da prescrição intercorrente no âmbito do processo administrativo tributário reflete um movimento crescente do Poder Judiciário em garantir a eficiência, a razoável duração do processo e a segurança jurídica. O TJ-RJ tem sido pioneiro no reconhecimento da prescrição intercorrente em processos administrativos fiscais, trazendo uma interpretação que visa impedir que a inércia do Fisco perpetue a indefinição na cobrança de tributos.
Ainda que o Superior Tribunal de Justiça tenha uma posição mais restritiva sobre a matéria, outros tribunais, como o TRF-1, começam a sinalizar uma possível mudança de entendimento, promovendo uma proteção mais ampla aos contribuintes. O desenvolvimento dessa jurisprudência é um passo importante para equilibrar a relação entre o poder público e os contribuintes, reforçando a necessidade de limitação temporal para a cobrança de créditos tributários e assegurando que a administração pública atue de forma célere e eficiente.