ANOTAÇÕES SOBRE A DAÇÃO EM PAGAMENTO, A ASSUNÇÃO E A CESSÃO DE CRÉDITO E OS DIVERSOS NEGÓCIOS FIDUCIÁRIOS
Rogério Tadeu Romano
SUMÁRIO: I – A dação em pagamento; II – Delegação e novação; III – A promessa de terceiro; IV – A cedência do débito; V – Cessão de créditos e a sub-rogação; VI – A cessão fiduciária; VII – Propriedade fiduciária e alienação fiduciária em garantia; VIII – O negócio fiduciário; IX – O usufruto com fim de garantia; X – A venda com reserva de domínio; XI – Negócio jurídico indireto.
I – A DAÇÃO EM PAGAMENTO
Realmente a prestação como meio para pagamento serve ao credor para procurar satisfazer-se do crédito e, se tal ocorre, extingue a dívida. Pode tratar-se de coisa, direito ou serviço do devedor. A dívida permanece se o recebimento não ocorre. Não é o mesmo e outorga para o credor alienar a coisa ou o direito, ou cobrar a dívida de que é credor o devedor. Na dação pro solvendo, ou na cessão solvendi causa, a pretensão é de certo modo alcançada, até que o credor se desempenhe do que lhe cabe fazer, alienar ou cobrar, há condição suspensiva à exigibilidade; se o credor realizou o valor, dá-se a solução.
No direito das obrigações, ocorre a dação em pagamento (ou do latim: datio in solutum) quando o credor aceita que o devedor dê fim à relação de obrigação existente entre eles pela substituição do objeto da prestação, ou seja, o devedor realiza o pagamento na forma de algo que não estava originalmente na obrigação estabelecida, mas que a extingue da mesma forma, como explicou Silvio de Salvo Venosa (Direito civil. Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 11. ed. São Paulo: Atlas).
A dação é, portanto, uma forma de extinção obrigacional, e sua principal característica é a natureza diversa da nova prestação perante a anterior, podendo ocorrer, por exemplo, substituindo-se dinheiro por coisa (rem pro pecuni), uma coisa por outra (rem pro re) ou mesmo uma coisa por uma obrigação de fazer.
A dação em pagamento (datio in solutum) não deve ser confundida com a dação pro solvendo, que não extingue a obrigação, mas apenas facilita o seu cumprimento. A dação pro solvendo ocorre na dação de um crédito sem extinção da dívida originária, que, ao contrário, é conservada, suspensa ou enfraquecida. Havendo datio pro solvendo, a dívida primitiva só se extingue ao ser paga a nova.
O endosso ou a tradição do título, já posto em circulação, é dação in solutum.
Se é decretada a nulidade ou a anulação da dação em soluto, não houve extinção do crédito, inclusive se a anulação foi por erro (arts. 388 – 144).
Se há invalidação do negócio jurídico da dação em soluto, liberação não houve e o crédito resta incólume.
A dação in soluto pode ser objeto: a) de ação pauliana ou de fraude contra credores; b) de ação declaratória de ineficácia nos casos da falência.
É importante registrar que se, em virtude da dação em soluto, se procedeu a registro ou a cancelamento do registro, a decisão, que depois decretou a desconstituição do negócio jurídico da dação em soluto, é título hábil para se obter o cancelamento do registro, ou a retificação (novo registro com eficácia ex tunc).
Por sua vez, os defeitos fáticos do objeto não bastam para se destruir a liberação pela dação em soluto. A ação tem por fim a redibição ou a diminuição no preço, como se venda ou troca tivesse havido.
Se o direito não existia, ou foi decretada a nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico a cuja eficácia se atribua, há a ação de enriquecimento injustificado a favor do devedor que deu em solutio.
Na cessio in solutio, extingue-se o crédito imediatamente, pois que o credor acordou em receber o crédito em vez do pagamento.
Quando há cessão solvendi causa, não há liquidez da dívida do cedente, porque é preciso que se vá apurando o que foi cedido.
Se na ocasião de pagar, o devedor quer pagar com cheque, ou o credor recusa o cheque, e incorre em mora o devedor; ou o credor aceita o cheque, e não se pode pensar em mora: a responsabilidade pelo pagamento cessou, começa a responsabilidade pelo cheque, que nada tem com o negócio jurídico de que se irradiara a obrigação de pagar.
Trata-se de forma de pagamento especial.
Como ensinava Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, t. XXV, Bookseller, p. 45), a entrega de bens em solução é inconfundível com a entrega de bens como meio para se solver, pela qual apenas se procura chegar à satisfação do crédito, dando-se ao credor o bem com que obtenha aquilo com que se pague, total ou parcialmente. A liberação é protraída.
Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, v. III, 9ª ed., p. 196) distingue a datio in solutum da datio pro solvendo, que se verifica quando o devedor assume junto ao credor uma nova obrigação (emissão de um título cambial, por exemplo, em lugar do pagamento, ficando ajustado que a antiga dívida somente ficará extinta em virtude do pagamento da nova). Aqui, como se lê, a distinção relativamente à datio in solutum é precisa: em vez de sub-rogação de uma na outra, subsistem duas obrigações, e, quando o devedor satisfizer a segunda (que é a que lhe cumpre solver preferentemente), ficam extintas as duas.
É certo que, na doutrina, discute-se se o recebimento da coisa, em lugar do que se teria de receber, importar consentir: a) em dação ou cessão em soluto, ou b) em dação ou cessão solvendi, ou c) só em outorga do poder de vendere. Teixeira de Freitas (Esboço, art. 1.116) adotou a posição c. Endemann (Lehbruch, I, 8ª e 9ª ed., 806, nota 14) e C. Crome (System, II, 264, nota 21) preferiram a solução a. P. Oertmann (Das Recht der Schnuldverhältnisse, 261) e ainda G. Plank (Kommentar, II, 1, 481) entenderam que se trata de simples negócio auxiliar, de cuja eficácia depende a extinção da dívida. O Código Civil apresentou a solução a, mas distingue a entrega em lugar de pagamento, a dação meio de pagamento e a outorga de poder de venda, ou, em geral, de realizar o valor, ficando a decisão ao exame do que foi querido.
Se o preço foi determinado, porém não se sabe ao certo se o bem ou os bens entregues compreendem pertenças ou veículos, a questão tem ser resolvida consoante os usos e costumes. Aliás, Pontes de Miranda (ob. cit., p. 46) citou decisão do Supremo Tribunal Federal, 13 de julho de 1951, DJ de 20 de abril de 153, para a solução do caso.
Questão importante diz respeito a vício da coisa ou ainda a evicção.
Quanto aos vícios da coisa, necessário ler o art. 441 do Código Civil.
A norma do art. 441, caput, do referido Código traz-nos a conceituação da seguinte maneira: “A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que se destina, ou lhe diminuam o valor” (art. 441 do CCB-2002). No parágrafo único do mencionado artigo, pode-se observar a possibilidade de vício ou defeitos ocultos, quanto às doações onerosas.
O vício redibitório, como se vê, é compreendido tão somente pelo estado em que a coisa, objeto de contrato comutativo, se encontra. Essa coisa dá ao adquirente garantia de pleitear em juízo.
Na verdade, a garantia de pleitear em juízo, segundo nos demonstra Silvio Venosa (Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 6ª ed. São Paulo: Atlas, v. 2, 2006), “decorre da própria natureza do contrato. Contrato comutativo, […] porque o contrato aleatório é incompatível com essa modalidade de garantia“.
Importa lembrar que o assunto “vícios redibitórios” não se esgota na disposição do art. 441 do Código civil, estendendo-se, portanto, até a disposição do art. 446.
Devido a sua importância, o legislador reservou aos vícios redibitórios uma seção específica no Código Civil de 2002, encontrando-se, portanto, na Seção V, do Título V, Dos Contratos em Geral.
Portanto, o transmitente ou alienante que faça por título oneroso tem o dever e obrigação de “garantir a legitimidade, higidez e tranquilidade do direito que transfere“, como destacou Venosa (ob. cit., p. 546, 2006).
Neste sentido, Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 3º v., 2002) destaca que o alienante tem não só o dever “de entregar ao adquirente o bem alienado, mas também o de garantir-lhe o uso e gozo, defendendo-o de pretensões de terceiro quanto ao seu domínio“.
A responsabilidade por evicção poderá ser manuseada por instrumento contratual, e poderá ser excluída, diminuída, ou reforçada. A possibilidade de convenção das partes era tratada no antigo Código Civil no art.1.107, caput, atualmente disposta na norma do art. 448 do Código Civil de 2002, em que estabelece que podem “as partes, por cláusula expressa, reforçar, diminuir ou excluir a responsabilidade pela evicção” (art. 448 do CCB/2002). Portanto, a responsabilidade pela evicção “só poderá ser afastada se houver cláusula contratual expressa, determinando sua exclusão“, como ensinou Maria Helena Diniz (ob. cit., p. 127, 2002).
Um problema que pode haver é se houver evicção.
Ela suscitava, no direito romano, uma série de soluções. Dizia-se, de um lado, que a consequência seria a repristinação da primitiva obligatio, quer fosse parcial, quer fosse total a evicção. Mas, de outro lado, sustentava-se que a antiga obrigação, extinta pela datio, não se restabelecia, competindo ao credor evicto uma ação ex empto, pela qual era indenizado do dano sofrido.
O Código Civil de 1916 pronunciava-se pela primeira solução, enquanto que os demais sistemas, como o italiano, o uruguaio, o argentino, inclinavam-se pela segunda.
Se o devedor oferece coisa que não lhe pertence, a lei determina o restabelecimento da antiga obrigação, tornando sem efeito a quitação. Se o credor for evicto (perda da propriedade em virtude de sentença judicial ou ato administrativo de apreensão) da coisa recebida, a obrigação primitiva será restabelecida, ficando sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de terceiros de boa-fé (art. 359 do CC). O devedor responde por eventual vício redibitório (defeito oculto) da coisa entregue.
Por sua vez, o art. 358 do Código Civil determinava que: “Art. 358. Se for título de crédito a coisa dada em pagamento, a transferência importará em cessão“.
Na cessio in solutum, extingue-se o crédito imediatamente, pois que o credor acordou em receber o crédito em vez do pagamento. Tal instituto é inconfundível com o da cessio solvendi causa, pelo qual se cede o crédito ao credor, para que o cobre e fique, a título de pagamento, com o que for cobrado. Aqui, a dívida só se extingue quando se recebe o quanto e na medida em que for recebido, assumido, pelo credor, o dever de diligência no cobrar.
A entrega da letra de câmbio, ou nota promissória, criada pelo devedor, é assunção de nova obrigação em lugar do pagamento, e não dação em pagamento. E como disse Pontes de Miranda (ob. cit., p. 48): “Salvo cláusula expressa, que a faça ser solutum, e pro solvendo a assunção da obrigação. Se não se satisfaz o crédito, o crédito primitivo persiste, o que é de grande importância prática no tocante às garantias. Na dúvida, a assunção da dívida nova é pro solvendo e não in solutum“.
Assim o art. 358 do Código Civil não cogitou da assunção de dívida nova, mas, tão só, da cessio in solutum. Só há cessio solvendi causa se isso foi declarado. Na dúvida, se houve dação de título de crédito (não assunção da dívida em título de crédito), se há de entender in solutum, e não solvendi causa.
Assim se tem:
- Dação em soluto, sendo o objeto título de crédito (contra outrem), trata-se de título ao portador, ou de título endossável, ou de título de que se precise fazer cessão do direito incorporado, ou de título mero instrumento de prova;
- Promessa do devedor em título de crédito, ou assunção de dívida em simples documento;
- Datio pro solvendo de título de crédito (contra outrem).
A espécie a tem-se por dação in soluto, se houve transferência – qualquer que seja – e referência a pagamento. Na dúvida é in solutum.
A espécie B tem-se, na dúvida, como pro solvendo.
A dação de cheque, com endosso, ou pela tradição, se ao portador, é cessio in solutum. A dação de cheque, que o devedor assina, é dação in solutum, e não cessão in solutum.
Disse ainda Pontes de Miranda (ob. cit., p. 48 e 49):
Se alguém recebe cheque e dá quitação, sem nela aludir ao cheque, considerou solvida a dívida, a seu próprio risco. A responsabilidade do devedor, que o subscreveu e emitiu, é a de qualquer responsável por dívida chéquica.
Se, ao receber o cheque, assinado pelo devedor, o credor entrega ao devedor o título e esse é título que entra na classe dos títulos de que fala o art. 324 do Código Civil, presume-se o pagamento. Ao credor cabe provar, dentro dos sessenta dais, que não foi solvida a dívida (art. 324, parágrafo único), ou exercer, no tempo que a legislação sobre o cheque lhe dá, as ações pertinentes.
Se houve cessão (arts. 358 e 286 – 298), o devedor cedente é responsável ao credor cessionário pela existência do crédito ao tempo da cessão, ainda que se não haja responsabilizado por isso (art. 294), porém não pela solvência do devedor cedido, salvo estipulação em contrário (art. 296).
O pagamento com cheque de firma alheia é dação em soluto, portanto pro soluto, e não pro solvendo. Não é título de crédito para que se invoque o art. 358 do Código Civil.
Quanto à letra de câmbio, à nota promissória e à duplicata mercantil, o endosso é in solutum, e a emissão tem-se, na dúvida, como solvendi causa, se anterior, ou não, ao vencimento da dívida.
Todo o raciocínio que é exposto por Pontes de Miranda é de que não tenha havido novação.
II – DELEGAÇÃO E NOVAÇÃO
Discute-se a questão da delegação.
No direito romano, delegatio e delegare correspondem a quaisquer casos em que se procura fazer devedor alguém que não seja o delegante, abstraindo-se de qualquer que seja o fim da delegação, ainda que o delegado não seja devedor.
A delegação distingue-se da assinação, no sentido moderno, que é a ordem de prestar e não de prometer.
Instrumento importante de crédito e da sua circulação, o instituto da delegação, a que os romanos fizeram largo recurso e cujos princípios ainda hoje informam numerosas figuras jurídicas de transmissão de créditos ou de débitos, assume aspectos e funções diversas segundo os fins especiais a que tende e as relações sobre as quais se baseia.
Na sua forma mais simples, é a delegação uma ordem dada por uma pessoa a outra para fazer uma prestação ou para fazer uma promessa a um terceiro, de modo que a prestação ou a promessa considera-se feita por conta da primeira. São, portanto, necessárias sempre três pessoas na relação: um delegante, que dá a ordem de pagar ou prometer; um delegado, a quem a ordem se destina; e um delegatário, a quem a prestação ou a promessa é feita. Se a ordem é de pagar, há uma delegação de crédito, mas não há substancialmente diferenças para as duas espécies.
Na lição de Roberto de Ruggiero (Instituições de direito civil. 3ª ed. Tradução Dr. Ary dos Santos, v. III), a causa, que, em regra, está na base de tal ordem, é uma dupla relação de débito entre o delegante e delegado e entre delegado e delegatário.
Distingue-se ainda uma delegação ativa, quando um credor indique ao devedor um terceiro que deverá receber, isto é, substitua a si uma pessoa para que receba do devedor; e uma delegação passiva, quando um devedor se substitua por um outro pagar, isto é, ordene a um terceiro que pague ao credor. Ora, tanto numa como noutra hipótese, esta ordem ao terceiro de receber ou de pagar pode ser dada de modo que a substituição do novo credor ou do novo devedor seja plena e completa, isto é, importe extinção da primeira relação obrigatória e o nascimento de uma nova pela mudança de um dos sujeitos, ou então menos plena, por implicar simples acrescentamento de um novo sujeito ao originário, e contrapõe-se ao que chamam de delegação novativa ou perfeita, porque opera uma novação e porque só aquela que produz este efeito é considerada verdadeira e própria delegação.
A delegação novativa ativa, prevista no art. 1.267, nº 3 e seguintes do Código Civil italiano de 1865, em que o credor se faz substituir por uma outra pessoa para que esta receba do devedor, produz a liberação deste para com o primitivo credor (delegante), sendo necessário o consenso das três partes e a intenção concorde de novar (animus novandi).
A delegação novativa passiva, que era prevista nos arts. 1.267, nº 2, do Código Civil de 1865 na Itália e art. 1.255, na qual o devedor se faz substituir por um novo obrigado, também se verifica mediante o concurso da tríplice vontade do devedor originário (delegante), do novo (delegado) e do credor (delegatário), implicando liberação do primeiro devedor, cujo lugar é ocupado pelo segundo. A vontade do novo devedor destina-se a assumir a obrigação por conta do delegante; a do credor deve destinar-se, além da aceitação do novo devedor, a libertar o antigo.
A novação, diga-se, pode ser subjetiva ou objetiva, não se presume. O animus novandi não se presume. Deve entrar no mundo jurídico a vontade de novar (extinguir uma obrigação e criar outra). Nota-se que a parecença da novação objetiva com a dação em soluto é evidente não apenas porque ambas são modos de liberação e liberam sem ser com o objeto do pagamento: na novação objetiva, o devedor continua devedor, o que não ocorre com a dação em pagamento.
A novação subjetiva passiva dispensa a manifestação de vontade do devedor, em virtude de princípio de que as aplicações ao adimplemento, à assunção da dívida alheia e à novação, como explicou Pontes de Miranda (ob. cit., t. XXIII, p. 113), apenas exprimem espécies.
Não há, aí, sucessão particular no crédito, não há assunção de dívida alheia.
Por fim, dir-se-á que a novação (forma de extinção das obrigações sem pagamento e criação de outra) é inconfundível com o reconhecimento da dívida; pela novação, extingue-se; pelo reconhecimento, declara-se.
Por sua vez, a delegação simples ou imperfeita é aquela em que falta qualquer novação (entendida por uns como translação da obrigação e por outros como substituição dela). Se um novo devedor é delegado para pagar o débito do delegante e o credor o aceita, mas não libera o primeiro, o efeito é que um segundo devedor junta-se ao primeiro. Tudo ocorre na mesma relação jurídica, ao contrário da novação, em que há extinção da anterior.
Se a dívida é em título de crédito e o devedor faz outro, causal, e o entrega, há novação, quase sempre, salvo se o título que se entregou somente corresponde a juros. Pode ainda ocorrer dação em soluto pela assunção de nova dívida. Há, então, como revelou Pontes de Miranda (ob. cit., p. 51), uma promissio in solutum data, o que não tira o caráter real ou concreto da promessa e que se irradia o efeito, porém a dívida em relação a que se extingue foi objeto de contrato real.
Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, t. XXIII, ed. Bookseller, p. 422, § 2.858) chama de assunção unifigurativa de dívida, tomada de dívida, a de um ramo só ou de um galho, assunção em que a relação jurídica é entre terceiro e credor, do jeito que não mais se precisa de qualquer ato para que a substituição do devedor se dê.
Assunção unifigurativa da dívida é a assunção em virtude de contrato com o credor; bifigurativa, em virtude de contrato com o devedor.
Ainda Pontes de Miranda (ob. cit.) lembrou que o contrato de assunção de dívida concluído entre o terceiro e o credor tem eficácia liberatória. O credor não renuncia à dívida, mas libera o devedor.
No sistema jurídico brasileiro, não há por onde se exigir mais do que se exigiria à cessão de crédito.
Registre-se, a partir das ideias do Direito alemão, que a sentença proferida entre o devedor e o credor tem eficácia de coisa julgada material quanto ao assuntor, porque esse é sucessor do devedor, quer o contrato de assunção de dívida tenha sido entre o credor e o terceiro, quer entre este e o devedor, tendo-se dado o negócio jurídico unilateral do credor. Por sua vez, na assunção bifigurativa da dívida, sucessão só se dá após o negócio jurídico do credor; na assunção unifigurativa da dívida, com a conclusão do contrato entre o credor e o terceiro, se inicia.
Por outro lado, Pontes de Miranda (ob. cit., p. 424) afirmou que se diz bifigurativa a assunção da dívida entre o terceiro e o devedor porque é de mister que o credor admita a substituição.
O valor do crédito mais depende da aptidão do devedor a pagar, da sua solvabilidade, do que de qualquer outro elemento. Daí a importância da substituição do devedor.
Para Pontes de Miranda (ob. cit., p. 415), a assunção de dívida e instituto que não se pode confundir com a novação. Na novatio, há outra relação jurídica em que pode acontecer que o sujeito passivo não seja o mesmo da relação jurídica extinta. Na assunção de dívida, a relação jurídica persiste; só se lhe muda o sujeito passivo. Há sucessão singular na dívida.
Não só dívidas de prestações fungíveis podem ser objeto de assunção da dívida.
Essa assunção de dívida pode ser condicional ou a termo.
Observe-se que há assunção de patrimônio e assunção das dívidas.
Na aquisição de patrimônio, o adquirente obriga-se a solver as dívidas do alienante, como se fora o próprio devedor que as solvesse. A assunção das dívidas é então cumulativa, com a particularidade, em todo caso, de ser restrita às forças do patrimônio.
A responsabilidade do assuntor começa com a conclusão do contrato e não da transferência do ativo, de jeito que pode ser demandado antes da posse dos bens do patrimônio. O contrato de assunção do patrimônio ocorre não só quando se conclui contrato de transferência do patrimônio, que contém acordo de transmissão de cada bem, crédito, dívida, pretensão, obrigação, ação e exceção, em globo, como ainda se concluem muitos contratos relativos a cada elemento com a mesma importância prática do contrato único, como ensinou O. von Gierke (Schuldnachfolge und Haftung Festschrift für F. von Martitz, 67). Esse contrato pode ser condicional ou a prazo.
III – A PROMESSA DE TERCEIRO
Diversa era a promessa de terceiro, prevista no art. 1.272 do Código Civil italiano de 1945.
Quando, sem ser por ordem recebida, mas espontaneamente, um terceiro prometa ao credor de outra pessoa o que esta lhe deve, verifica-se a figura que, na Itália, era chamada de espromissione, a qual pode corresponder, de resto, a alguns dos tipos pelos quais se faz a cessão. Mas, como orientou Ruggiero (ob. cit., p. 141), também essa promessa espontânea do débito alheio não produz tecnicamente sucessão a título particular no débito, porque ou concorre com a aceitação da promessa por parte do credor a vontade de libertar o devedor, pelo qual o promitente se obriga, e dá-se a novação, que pode efetuar-se sem o consentimento do primeiro devedor (art. 1.270 do Código Civil italiano de 1865); ou falta essa vontade de o libertar e o efeito será a junção de um segundo devedor ao primeiro, que permanece obrigado, pelo menos subsidiariamente.
A simples indicação feita pelo devedor (indicação em pagamento ou consignação, assegnazione), de uma pessoa que deva pagar em seu lugar, não produz novação. Também não a produz a simples indicação feita pelo devedor de uma pessoa que deva pagar em seu lugar. É um contrato unilateral pelo qual o devedor dá ao próprio credor a faculdade de receber de um terceiro uma quantia para pagamento do que lhe é devido, ou pelo qual o credor autoriza o devedor a fazer a um terceiro o pagamento que ao primeiro é devido. Glucinski (Zur Lehre von der Assignation und delegation, 1877, p. 299) via a identificação com a consignação em pagamento.
IV – A CEDÊNCIA DO DÉBITO
Fala-se ainda em cedência do débito, cedência simples, cedência cumulativa e cedência novativa.
A cedência de débito, como expõe De Ruggiero (Accollo), é limitada apenas às mudanças do lado passivo das obrigações. A cedência é o ato de chamar a si um débito alheio, isto é, uma convenção entre o devedor e um terceiro, mediante a qual este toma sobre si o débito daquele. Este ato de tomar a responsabilidade de um débito alheio pode, porém, apresentar formas e aspectos diversos, conforme o terceiro tome inteiramente o lugar do primitivo devedor, libertando-o, mas deixando quanto ao resto imutável a obrigação originária; substitua-o com efeito liberatório, mas transformando-se a obrigação antiga numa nova; ou ainda se acrescente como segundo obrigado ao primeiro, que fica vinculado subsidiária ou solidariamente. Há quatro tipos de cedência:
- A cedência simples, na qual o cessionário do débito alheio obriga-se para com o devedor a pagar em seu lugar, mas em cujo acordo não toma parte o credor, que não perde, por isso, o seu devedor originário. O acordo entre os dois fará com que o cessionário se torne nas suas relações o devedor principal, sendo obrigado, em primeiro lugar, a satisfazer o credor, o qual poderá também contra ele se conhecer a convenção, mas subsidiariamente fica, todavia, obrigado também o primeiro, contra o qual o credor não pago poderá sempre agir;
- Cedência comutativa: na qual ao primeiro devedor acrescenta-se um segundo, ficando o novo e o originário solidariamente obrigados;
- Cedência novativa: que se dá mediante novação da primeira obrigação, isto é, a sua extinção e o nascimento de uma obrigação na qual um novo devedor toma o lugar do originário e fica liberto. Para surtir esse efeito, deve, com o acordo entre o primeiro e o segundo devedor, concorrer o consentimento do credor e uma correspondente vontade sua de novar, e a consequência será aqui, como em qualquer caso de novação, que, extinguindo-se a relação antiga, as suas exceções e os seus privilégios não se transferem para a nova relação;
- Cedência privativa, que se distingue tanto das duas primeiras formas na parte em que um só é obrigado, isto é, que toma para si o débito como da terceira, pois que, posto que havendo liberação do primitivo devedor, não se dá mediante novação, visto que a primitiva obrigação não se extingue e apenas há a substituição pessoal do antigo devedor pelo novo.
Desde a introdução do processo formular em Roma e da cessão do crédito por meio de procuração in rem suam, a liberação do devedor cedente opera-se com a contestação da lide.
V – CESSÃO DE CRÉDITOS E A SUB-ROGAÇÃO
Por outro lado, há cessão de crédito, que é um modo de transferência de créditos.
No Direito romano, não havia sucessão singular de créditos, ou em dívidas. Daí se ter lançado mão da novação, para a qual se exigia a colaboração do devedor (delegatio nominis). Depois, com a intensificação do comércio e o influxo do ius gentium, foi que se criou algo de transmissão sem cooperação do devedor, que era a procuratio in rem suam.
O procurator em rem suam era constituído para o processo, de modo que, estabelecida entre ele e o demandado a relação jurídica processual, a condenação que atingisse o demandado era para prestar ao outorgado, e este, por estar em juízo (Gaio, Inst. II, §§ 38 e 39, e IV, § 86; L. 3§ 5, D, de in rem verso, 15, 3). Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, t. XXIII, ed. Bookseller, p. 303) já dizia que se entendia que tal procurador judicial também podia tratar amigavelmente. Mas os inconvenientes eram grandes, como, por exemplo, o devedor podia prestar ao credor outorgante, o outorgante podia revogar e o outorgante ou o outorgado podia morrer.
A actio utilis viera obviar a esses inconvenientes, com a notificabilidade do devedor. No fim da evolução, que no direito romano se operara, teve-se apenas a sucessão singular no direito a exigir crédito alheio. A concepção romana do crédito ligado ao credor encontrou-se com a concepção germânica, a que repugnava essa dependência.
A cessão com a mudança subjetiva e a permanência objetiva é concepção pós-romana. Só o sucessor in universum ius quod defunctus habuit sucedia, no sentido hoje entendido para a sucessão singular nos créditos e nas dívidas.
No Direito germânico antigo, sustentou-se que era necessário o consentimento do devedor, na cessão de crédito para a sua transferibilidade, como entenderam H. Brunner (Forschungen, 602 e 603), assim como O. Stobbe (Handbuch des deutschen Privatrechts, III, 3ª ed., § 226).
No Direito germânico, empregou-se o mandato processual como meio para se transferir o crédito, inclusive, na Idade Média, com a cláusula “para ganho ou perda“, como ensinou Pontes de Miranda, à luz do ensinamento de Georg Buch.
No Direito alemão, a permissão da transferibilidade era diferente do assentimento ou do consentimento, com que os sistemas posteriores quiseram construir a cessão de crédito (assentimento ao negócio jurídico de cessão, ou o consentimento em negócio jurídico unilateral).
O expediente a que recorreram os romanos para tornar possível que quem tendo o crédito, sem extinguir ou novar a obrigação, o pudesse transferir para outra pessoa foi, na sua origem, tratado como instituto da representação processual.
Consiste, modernamente, numa convenção entre credor e terceiro, destinada a transmitir e, respectivamente, adquirir o crédito, e funda-se sobre uma justa causa, que é o fim econômico da transmissão.
São requisitos:
- Entre cedente e cessionário: o ato que transfere o direito de crédito é uma convenção entre o credor e o cessionário e, como tal, fica perfeito entre as partes, sem necessidade de formas especiais e solenes; pelo simples acordo daqueles, independentemente da adesão do devedor;
- Com relação a terceiros: é ela res inter alios para com terceiros;
- Em relação ao objeto: o princípio geral, que qualquer crédito ainda que a termo ou sujeito a condições, pode ser transferido mediante cessão, tem limites, ou na natureza do crédito, que não se preste a mudar de sujeito, ou em algumas proibições especiais da lei, que vedam a cessão de modo absoluto ou apenas relativamente.
O efeito da convenção é o de fazer entrar o cessionário no lugar do cedente, sem que em nada se altere a primitiva obrigação.
Com relação a terceiros, verificado o ato de cessão, o credor considera-se destituído, à face de todos, do seu direito e, em seu lugar, definitivamente investido no crédito o cessionário.
A cessão de crédito é negócio jurídico bilateral de transmissão de crédito entre o credor e outrem, no Direito brasileiro. A base dele pode ser um negócio jurídico, porém a cessão de crédito independe dele ou da sua existência.
O credor cede porque é titular do direito.
A cessão de crédito é negócio jurídico abstrato, uma vez que a cessão é abstrata, em si, não podendo ser nula por ilicitude do objeto. Se o negócio jurídico subjacente é nulo, cabe a repetição.
A cessão de crédito não está sujeita a forma especial. A esse respeito, tinha-se o art. 1.067 do Código Civil de 1916, que dizia:
Art. 1.067. Não vale, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se se não celebrar mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do art. 135 (art. 1.068). (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.01.1919)
Parágrafo único. O cessionário de crédito hipotecário tem, como o sub-rogado, o direito de fazer inscrever a seção à margem da inscrição principal.
Como ensinou Pontes de Miranda (ob. cit., t. XXIII, p. 308), não vale estava aí por ineficaz.
O crédito que passa ao cessionário é o mesmo crédito, a que apenas se mudou o sujeito. As pretensões que já existiam transferem-se, como bem assim as ações.
A pretensão futura pode ser cedida.
O cessionário adquire o crédito como sucessor do cedente, e não diretamente. A cessão de créditos futuros apenas exige que se haja caracterizado o que se cede, isto é, que, ao nascer o crédito, se saiba ao certo qual será o crédito cedido.
Por fim, há o pactum de non cedendo.
A cedibilidade pode ser pré-eliminada pelos contraentes ou pelo devedor em virtude do negócio jurídico unilateral. A incedibilidade pode ser restrita.
O devedor não pode impedir que o credor ceda o crédito. Todavia, pode o devedor pactuar de non cedendo. Essa não forma de cessibilidade pode ser restrita ao tempo. Esse pacto pode referir-se a dívida futura, a dívida a termo ou condicional.
O fiador pode convencionar com o credor ou com o credor e o devedor a incedibilidade do crédito.
O que não é personalíssimo vai com o crédito cedido.
O devedor pode opor ao novo credor as objeções e as exceções que contra o cedente existiam ao tempo de se concluir o negócio jurídico entre o credor e o terceiro.
Distingue-se da cessão de crédito da sub-rogação.
No direito das obrigações, o pagamento com sub-rogação é um instrumento jurídico utilizado para se efetuar o pagamento de uma dívida, substituindo-se o sujeito da obrigação, mas sem extingui-la, visto que a dívida será considerada extinta somente em face do antigo credor, mas permanecendo os direitos obrigacionais do novo titular do crédito.
O ato de sub-rogar é substituir o credor, de modo que o pagamento por sub-rogação assemelha-se a cessão de crédito por se tratar da pessoa do credor. Ocorre a sub-rogação quando a dívida de alguém é paga por um terceiro que adquire o crédito e satisfaz o credor, mas não extingue a dívida e nem libera o devedor, que passa a dever a este terceiro.
Por sua vez, o expediente a que os romanos recorriam para tornar possível que quem tendo o crédito, sem extinguir ou novar a obrigação, o pudesse transferir para outra pessoa foi, na origem, dado pela representação processual. No Direito moderno, há o instituto da cessão de créditos, que é o ato que transfere o direito de crédito numa convenção entre o credor e o cessionário e, como tal, fica perfeito entre as partes, sem necessidade de formas especiais, sem que haja, necessariamente, a intervenção do devedor. A transferência fica perfeita entre as partes pelo simples acordo entre elas e seja qual for a sua causa, desde que idônea, para justificar a aquisição. Para dar ao ato plena eficácia, mesmo para com terceiros, é, pois, necessário um meio que o torne público, e esse meio é dado pela intimação da cessão ao devedor ou de sua aceitação por parte deste último. Entre o cedente e o cessionário, o efeito da convenção é o de fazer entrar o cessionário no lugar do cedente sem que em nada se altere a primitiva obrigação. Não havendo nenhuma mudança objetiva na obrigação, resulta que com o crédito se transferem todos os seus acessórios, como as garantias pessoais. Diversa é a assunção de débitos que se dá entre os devedores, com a permissão do credor, mantendo-se a mesma obrigação.
Voltemos a sub-rogação.
O termo “sub-rogação” significa, no Direito, substituição. Nessa modalidade de pagamento, um terceiro, que não o próprio devedor, efetua o pagamento da obrigação. Nesse caso, a obrigação não se extingue, mas somente tem o seu credor originário substituído, passando automaticamente a este terceiro (sub-rogado) todas as garantias e direitos do primeiro. O devedor, que antes pagaria ao originário, deverá realizar o pagamento ao sub-rogado, sem prejuízo algum para si.
No ordenamento brasileiro, existem duas modalidades de sub-rogação: a legal e a convencional. A primeira a par do art. 346, I a III, do Código Civil, e, para que ocorra a sub-rogação, o terceiro opera de pleno direito nos casos taxativamente previstos pela lei, independentemente da manifestação de vontade de terceiros, e adquire os direitos do credor. Na sub-rogação convencional, existe o acordo de vontade (ou entre o credor e terceiro ou entre o devedor e o terceiro), algo contemporâneo ao pagamento e expressamente declarado, uma vez que a sub-rogação não se presume.
Se o terceiro solvens tem interesse jurídico, vai se sub-rogar nos direitos do credor primitivo, ou seja, vai adquirir todas as eventuais vantagens, privilégios, garantias e preferências do credor primitivo, além de, é óbvio, exigir o reembolso. Ex.: A deve cem reais a B com uma garantia de fiança ou hipoteca; se C pagar essa dívida, terá direito a cobrar os cem reais de A, mas só terá direito à garantia da fiança ou da hipoteca caso C possua interesse jurídico (art. 346, III).
Efeitos da sub-rogação: 1) satisfativo em relação ao credor primitivo. O credor primitivo vai se satisfazer com o pagamento feito pelo terceiro, mas a obrigação permanece para o devedor; a sub-rogação não extingue a dívida; 2) translativo: o novo credor vai receber todas as vantagens e direitos do credor primitivo, desde que o pagamento tenha sido feito por sub-rogação (art. 349).
Seja como for, tanto a sub-rogação como a cessão de crédito se distinguem da novação, que é forma de extinção da obrigação.
VI – A CESSÃO FIDUCIÁRIA
Ensinou Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, t. XXIII, § 2.826, Bookseller, p. 323) que a transferência fiduciária, por cessão ou por transferência da propriedade, só o é porque fica sujeita a fim, que não é o da transmissão mesma e implica a reversão, ipso iure, ou o dever do fiduciário de retrotransmitir. Uma das espécies é a transferência fiduciária para a segurança.
Conforme o direito que se transfere fiduciariamente, ou há cessão de direito ou transferência de propriedade, ou de direito real limitado (como é o caso do direito enfitêutico).
A cessão fiduciária é espécie de transmissão fiduciária, como o é a transferência fiduciária da propriedade. Ao cedente, como ao transferente da propriedade fiduciária, fica direito contra o cessionário, ainda em caso de concurso, se não se trata de cessão de segurança, isto é, cessão pela qual se transfere ao cessionário o crédito para se pagar, se não for até certo termo ou condição solvida alguma dívida. A cessão de segurança não pode ser revogada; não assim, a que se faz somente no interesse do cedente (cessão para cobrança, em que a transferência apenas serve à outorga do poder de cobrança), como disse Pontes de Miranda (ob. cit., t. XXIII, p. 323).
A cessão para cobrança contém cessão (transferência de crédito) e outorga de poder de cobrar, de modo que deixa de ser com causa a transferência desde o momento em que se extingue, ainda em virtude de revogação, o poder outorgado. Revogada a outorga do poder, fica sem causa a aquisição da propriedade pelo cessionário, podendo o cedente exigir restituição (retrotransferência). O devedor, devido à natureza abstrata da cessão (segundo Pontes de Miranda, na obra citada, p. 324), somente pode deixar de pagar ao cessionário se, ao ser notificado da cessão, ou dar-se por ciente, lhe foi comunicada a fidúcia.
A cessão fiduciária para segurança opera-se como as demais cessões de crédito, desde que se contrai, ainda que se não haja notificado o devedor; ou este dela não tenha ciência. Não há referência à eficácia, não à existência ou à validade da cessão. Por essa razão, os comerciantes e industriais podem e costumam descontar nos bancos e casas bancárias, ou com particulares, os créditos contabilizados, cedendo-os fiduciariamente para a segurança dos seus empréstimos sem terem notificado o devedor.
Na cessão fiduciária para segurança, o cessionário pode cobrar o crédito quando já exigível, no seu interesse (pois que lhe foi garantido com a cessão) e no do credor cedente, que se libera e tem direito a receber o excesso sobre o seu débito. Ainda na lição de Pontes de Miranda, ao se tornar exigível o crédito cedido, tem o cessionário uma autorização de cobrar. Enneccurus e Lehmann (Lehrbruch, II, 31ª a 35ª ed., 526, nota 6) viram nesse plus mandato, e não autorização.
A respeito da cessão fiduciária para segurança, só há retrotransferência (reversão automática, como se dá com a propriedade resolúvel) se a cessão fiduciária foi sob condição resolutiva de ser solvida a dívida pelo cedente.
A doutrina, com base em Pontes de Miranda (ob. cit., t. XXIII, Bookseller, p. 325), fala numa cessão fiduciária de crédito para cobrança. Essa cessão tem por baixo a outorga de poder e normalmente não se tem de retrotransferir o crédito, porque, com o recebimento, o cessionário torna-se do que recebeu devedor ao cedente. Não é o mesmo entregar-se somente para cobrança, como se há outorga de poder para receber, sem ser de mandato, porque, aí, verdadeiramente, não há cessão; o crédito continua sendo do outorgante; tudo se passa no interesse dele, de modo que o devedor pode compensar contra o crédito, que se cobra, o crédito contra outorgado. Tal outorgado não pode ceder o crédito; não é o credor.
Quando uma empresa vendedora ou prestadora de serviços aliena uma mercadoria ou realiza algum serviço e aceita o pagamento a prazo, ela origina um crédito a receber, também chamado de direito creditório. Esse direito creditório é considerado um bem móvel, de acordo com a definição do Código Civil (art. 83), e pode ser cedido (i) em definitivo a terceiros, operação comumente realizada com fundos de investimentos em direitos creditórios ou empresas de fomento mercantil, ou (ii) em garantia, a qualquer pessoa jurídica ou física.
A cessão fiduciária é uma espécie de negócio fiduciário. Diferencia-se, quanto ao objeto, da alienação fiduciária, pois tem créditos como objeto e não bens. Sua disciplina encontra-se nos arts. 18 a 20 da Lei nº 9.514/1997.
A cessão fiduciária é negócio jurídico visto com os seguintes requisitos:
- a) bilateralidade, pois cria obrigações para ambas as partes, tanto para o fiduciário quanto para o fiduciante; b) onerosidade, pois há a reciprocidade de ônus e vantagens para os contratantes, em razão das obrigações assumidas pelas partes e, por outro lado, beneficia a ambos, proporcionando instrumento creditício ao alienante e assecuratório ao adquirente; c) por depender, para sua existência, de uma obrigação principal que deve ser garantida, possui caráter assessório; d) formalidade, pois, requer sempre, para constituir-se, instrumento escrito, público ou particular, devidamente registrado no Registro de Títulos e Documentos do domicilio do devedor; e e) indivisibilidade, porque o pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração, correspondente à garantia, ainda que esta compreenda vários bens, exceto disposição expressa no título ou na quitação.
Os direitos e pretensões fiduciariamente transmitidos em garantia do crédito não são simples direitos auxiliares, apesar de serem direitos de garantia, nem o fiduciante transmitiu o direito nem há ação do cessionário contra o cedente para haver o que foi dado em fidúcia para a segurança.
Os direitos auxiliares são os que asseguram ou facilitam a realização ou exercício do direito, direitos que se transferem, com o crédito cedido, ao cessionário, salvo cláusula em contrário do contrato de cessão de crédito. O direito de penhor e as fianças são direitos auxiliares.
A cessão fiduciária exerce uma função de garantia de crédito. Seu objeto é um direito creditório e realiza-se por meio da transmissão do domínio creditório, enquanto manter a dívida garantida.
O devedor-cedente transfere ao credor-cessionário a titularidade de recebíveis imobiliários, até a liquidação da dívida. Dessa forma, o credor-cessionário passa a receber os créditos cedidos diretamente dos devedores e, após deduzidas as despesas de cobrança e administração, credita o produto da operação para o devedor-cedente na operação que originou a cessão fiduciária, até a sua liquidação.
Consiste na alienação, na transferência a outrem de posição contratual; enfim na transmissão, para outra pessoa, dos direitos e deveres que lhe competem.
Disse Fábio Ulhoa (Curso de direito comercial: direito de empresa. 7. ed. São Paulo: Saraiva, v. 3, 2007):
A cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditório é negócio jurídico que visa a constituição de direito real em garantia consistente na titularidade fiduciária de créditos cedidos pelo autor da garantia. Sendo esta, a sua função no sistema normativo nacional e estando disposta a sua previsão legal, nos arts. 286 a 303 do Código Civil.
A principal aplicação da cessão fiduciária é garantir fundos para que uma empresa possa reestruturar-se e recuperar-se de crises, e, ao mesmo tempo, não prejudicar o credor, oferecendo a este meios para que não perca completamente seus investimentos, gerando obrigação para que a dívida seja paga pelo devedor, de uma forma ou de outra, independentemente de a empresa conseguir sua recuperação judicial.
Ao julgar o Recurso Especial nº 1.263.500/ES, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão unânime, entendeu que os créditos garantidos por cessão fiduciária não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, justamente em virtude da regra do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005.
Em síntese, na matéria, tem-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça naquele julgamento:
Se, por um lado, a disciplina legal da cessão fiduciária de título de crédito coloca os bancos em situação extremamente privilegiada em relação aos demais credores, até mesmo aos titulares de garantia real (cujo bem pode ser considerado indispensável à atividade empresarial), e dificulta a recuperação da empresa, por outro, não se pode desconsiderar que a forte expectativa de retorno do capital decorrente deste tipo de garantia permite a concessão de financiamentos com menor taxa de risco e, portanto, induz à diminuição do spread bancário, o que beneficia a atividade empresarial e o sistema financeiro nacional como um todo.
Em face da regra do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005, devem, pois, ser excluídos dos efeitos da recuperação judicial os créditos de titularidade do recorrente que possuem garantia de cessão fiduciária.
Por outro lado, há decisão da Quarta Turma do STJ:
Direito empresarial. Sujeição dos créditos cedidos fiduciariamente aos efeitos da recuperação judicial. Não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial os créditos representados por títulos cedidos fiduciariamente como garantia de contrato de abertura de crédito na forma do art. 66-B, § 3º, da Lei nº 4.728/1965. A Lei nº 11.101/2005 estabelece, como regra geral, que estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos (art. 49, caput). Todavia, há alguns créditos que, embora anteriores ao pedido de recuperação judicial, não se sujeitam aos seus efeitos. Segundo o § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis não se submete aos efeitos da recuperação judicial. Ademais, de acordo com o art. 83 do CC/2002, consideram-se móveis, para os efeitos legais, os direitos pessoais de caráter patrimonial e as respectivas ações. O § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, após estabelecer a regra de que o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis “não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial“, estabelece que “prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial”. Isso, contudo, não permite inferir que, não sendo o título de crédito “coisa corpórea“, à respectiva cessão fiduciária não se aplicaria a regra da exclusão do titular de direito fiduciário do regime de recuperação. Com efeito, a explicitação contida na oração “prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa” tem como escopo deixar claro que, no caso de bens corpóreos, estes poderão ser retomados pelo credor para a execução da garantia, salvo em se tratando de bens de capital essenciais à atividade empresarial, hipótese em que a lei concede o prazo de cento e oitenta dias durante o qual é vedada a sua retirada do estabelecimento do devedor. Assim, tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusulas de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Portanto, em face da regra do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/2005, devem ser excluídos dos efeitos da recuperação judicial os créditos que possuem garantia de cessão fiduciária. (REsp 1.263.500/ES, Relª Min. Maria Isabel Gallotti, J. 05.02.2013)
O art. 66-B, § 4º, da Lei nº 4.728/1965, com a redação dada pela Lei nº 10.931/2004, assim dispõe que o contrato de cessão fiduciária em garantia opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida, seguindo-se o art. 19, o qual defere ao credor o direito de posse do título, a qual pode ser conservada e recuperada “inclusive contra o próprio cedente” (inciso I), bem como o direito de “receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente” (inciso IV), outorgando-lhe ainda o uso de todas as ações e instrumentos, judiciais e extrajudiciais, para receber os créditos cedidos (inciso III).
Parte expressiva da doutrina especializada e acórdãos de alguns Tribunais de Justiça (Rio de Janeiro e Paraná) têm considerado aplicável à cessão fiduciária de crédito a disciplina do § 5º do art. 49 da LFR, relativa ao penhor sobre títulos de crédito.
Mediante a cessão fiduciária de direitos creditórios, juntamente com a transferência da propriedade resolúvel de coisa móvel fungível (cédula de crédito bancário), o devedor cede seus recebíveis a uma instituição financeira a qual recebe o pagamento diretamente do terceiro-devedor. Em suma, é uma forma de financiamento com plena garantia em que a propriedade é transferida para a órbita do domínio do credor para cumprimento da obrigação contraída.
Os contratos de cessão fiduciária de direitos creditórios deverão ser levados a registro no Cartório de Registro de Títulos e Documentos.
Aponto decisão do STJ na matéria:
Agravo interno no recurso especial. Processual civil (CPC/1973). Crédito garantido por cessão fiduciária. Negativa de prestação jurisdicional. Não ocorrência. Registro do contrato de cessão fiduciária em garantia. Prescindibilidade. Precedentes. 1. O registro não se consubstancia como requisito de existência ou validade da cessão fiduciária de créditos. 2. Não apresentação pela parte agravante de argumentos novos capazes de infirmar os fundamentos que alicerçaram a decisão agravada. 3. Agravo interno desprovido. (AgInt-REsp 1459664/SP, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, J. 03.10.2017, DJe 19.10.2017)
Veja-se a lei.
A falência do devedor-cedente não alcança a cessão fiduciária. No caso de direitos de crédito, o credor-cessionário pode recuperar os ativos da massa falida via ação de restituição, nos termos do art. 20 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997:
Na hipótese de falência do devedor cedente e se não tiver havido a tradição dos títulos representativos dos créditos cedidos fiduciariamente, ficará assegurada ao cessionário fiduciário a restituição na forma da legislação pertinente.
Nesta espécie de cessão, o credor de créditos imobiliários (p. ex., um incorporador), a fim de garantir um empréstimo tomado ou uma dívida que possua, transfere a titularidade de referidos créditos a um terceiro (p. ex., uma instituição financeira).
Desse modo, o terceiro garantido (chamado de cessionário) passa a ter o direito de possuir os títulos (p. ex., contratos) que representam os créditos cedidos, podendo, inclusive, receber os pagamentos respectivos diretamente de seus devedores (adquirentes dos imóveis negociados).
Trajano de Miranda Valverde (Sociedade por ações, I, 194) escreveu, à época, que não tínhamos a transferência de ações nominativas em garantia. Temos, no entanto: a) cessão fiduciária das ações nominativas, com a condição de resolutividade, que pode constar do livro de transferência e deve constar se se quer se opere ipso iure a reversão; b) a cessão fiduciária das ações nominativas, incondicional, com a obrigação, sob condição suspensiva, se algum fato houver (pagamento da dívida do fiduciante, se se trata de cessão fiduciária de segurança); c) autorização para ceder; d) a procuração para ceder.
Já no caso da transmissão fiduciária da propriedade móvel, inclusive no caso de títulos ao portador, e de títulos endossáveis, o fiduciário passa a ser dono do bem móvel ou imóvel, mas tem que voltar o fiduciante à propriedade, ou em virtude de resolução da propriedade ipso iure, ou porque ocorreu a condição suspensiva para o nascimento da obrigação de restituir.
VII – PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA E ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA
Na lição de Pontes de Miranda (ob. cit., t. XXIII, p. 327), “o fim de que se tem com a fidúcia exprime-se na condição, que se concebe, fazendo resolúvel a propriedade, ou suspensa à obrigação de restituir”.
O fiduciário é proprietário em relação a todos, inclusive o fiduciante. Qualquer direito do fiduciante no concurso de credores ou na falência do fiduciário é ligado ao que constitui a fidúcia, e não ao que constitui o direito de propriedade, como no concurso de credores ou na falência do fiduciante. A transferência fiduciária da propriedade não é cripto-penhor.
A transferência fiduciária de propriedade tanto pode concernir a bens corpóreos quanto a bens incorpóreos suscetíveis de direitos reais.
Na transmissão fiduciária, o fiduciário é possuidor em seu próprio nome, não é possuidor imediato, tendo posse própria o fiduciante.
A transmissão da propriedade para segurança consiste em o devedor transmitir ao credor a propriedade da coisa, mas convencionando que o credor, solvida a dívida, a restitua. Tal restituição ou se opera ipso iure, ou é conteúdo de obrigação do fiduciário. No Direito romano, afirma-se que só havia a transmissão incondicional. A propriedade fiduciária resolúvel é de origem germânica, como afirmou H. Brunner, citado por Pontes de Miranda (ob. cit., t. XXIII, p. 329). No Direito romano, a fidúcia pura era a fiducia cum amico contracta; a propriedade impura, fiducia cum creditore contracta, sem que a propriedade fosse resolúvel. Hoje, tanto na transmissão fiduciária pura quanto na impura, ainda que não se trate de fiducia cum creditore contracta, pode haver a resolutividade da propriedade. O direito expectativo do fiduciante é, na transmissão fiduciária da propriedade com reversão, ipso iure, direito expectativo à propriedade; na transmissão fiduciária da propriedade sem reversão ipso iure, à restituição (obrigação do fiduciário).
Na transmissão fiduciária da propriedade mobiliária, inclusive dos títulos endossáveis e ao portador, para segurança, ou: a) se concebe a propriedade sob a condição resolutiva da solução da dívida (paga a dívida, reverte a propriedade, automaticamente), ou b) se concebe incondicionalmente a propriedade, mas ligada à obrigação, para o credor de retrotransmitir a propriedade, se for pago, obrigação que está sujeita, portanto, à condição suspensiva da solução da dívida.
Se a transmissão fiduciária nenhum acordo contém sobre a posse é fato e perante o alter.
Destaco ainda julgamento do STJ:
Direito civil processual civil. Recurso especial. Ação de cobrança. Despesas condominiais. Imóvel objeto de alienação fiduciária. Responsabilidade do credor fiduciário. Solidariedade. Ausência. Verbas de sucumbência. 1. Ação de cobrança de despesas condominiais. 2. Ação ajuizada em 05.05.2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 26.08.2016. Julgamento: CPC/1973. 3. O propósito recursal é definir se há responsabilidade solidária do credor fiduciário e dos devedores fiduciantes quanto: i) ao pagamento das despesas condominiais que recaem sobre imóvel objeto de garantia fiduciária; e ii) ao pagamento das verbas de sucumbência. 4. O art. 27, § 8º da Lei nº 9.514/1997 prevê expressamente que responde o fiduciante pelo pagamento dos impostos, taxas, contribuições condominiais e quaisquer outros encargos que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, cuja posse tenha sido transferida para o fiduciário, nos termos deste artigo, até a data em que o fiduciário vier a ser imitido na posse. 5. Ademais, o art. 1.368-B do CC/2002 veio, de forma harmônica, complementar o disposto no art. 27, § 8º, da Lei nº 9.514/1997, ao dispor que o credor fiduciário que se tornar proprietário pleno do bem, por efeito de realização da garantia, mediante consolidação da propriedade, adjudicação, dação ou outra forma pela qual lhe tenha sido transmitida a propriedade plena, passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia, a partir da data em que vier a ser imitido na posse direta do bem. 6. Aparentemente, com a interpretação literal dos mencionados dispositivos legais, chega-se à conclusão de que o legislador procurou proteger os interesses do credor fiduciário, que tem a propriedade resolúvel como mero direito real de garantia voltado à satisfação de um crédito. 7. Dessume-se que, de fato, a responsabilidade do credor fiduciário pelo pagamento das despesas condominiais dá-se quando da consolidação de sua propriedade plena quanto ao bem dado em garantia, ou seja, quando de sua imissão na posse do imóvel, nos termos do art. 27, § 8º, da Lei nº 9.514/1997 e do art. 1.368-B do CC/2002. A sua legitimidade para figurar no polo passivo da ação resume-se, portanto, à condição de estar imitido na posse do bem. 8. Na espécie, não reconhecida pelas instâncias de origem a consolidação da propriedade plena em favor do Itaú Unibanco S.A, não há que se falar em responsabilidade solidária deste com os devedores fiduciários quanto ao adimplemento das despesas condominiais em aberto. 9. Por fim, reconhecida, na hipótese, a ausência de solidariedade do credor fiduciário pelo pagamento das despesas condominiais, não há que se falar em condenação solidária do recorrente ao pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios. 10. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 1731735/SP, (2014/0139688-0), 3ª T., Relª Min. Nancy Andrighi (1118), DJ 13.11.2018, DJe 22.11.2018)
VIII – O NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
Gaio não enumerava a fidúcia entre as obrigações “re“.
O que era a fidúcia?
De início observa-se a experiência no Direito romano.
Era uma convenção em virtude da qual uma das partes, o fiduciário, recebia de outra, o fiduciante, uma coisa, através das formalidades da mancipatio, ou da in iure cessio, e assumia a obrigação de lhe dar uma certa destinação ou restituí-la ao fiduciante. Era um contrato de ius civile.
Ensinou Ebert Chamoun (Instituições de direito civil, 1968, p. 343) que a fidúcia tinha as mais variadas aplicações. Com respeito às pessoas, podia ser empregada para transferir a um terceiro a propriedade de um escravo com a obrigação de o libertar; para vender a mulher a um terceiro com a obrigação de a libertar, a fim de fugir à tutela de seus agnados (coemptio fiduciária) ou para afastá-la da manus do marido, na coemptio e no usus.
Com relação às coisas, podia ser usada para dar ao credor uma garantia real, transferindo-lhe o devedor a propriedade de uma coisa com a obrigação de a restituir quando a dívida fosse paga (era a fidúcia cum creditore pignores iure) e para colocar a coisa em lugar seguro, confiando-a a um terceiro, que melhor a protegesse e que devia, enfim, restituí-la: era a fidúcia cum amico.
A fidúcia cum creditore desempenhava, no Direito romano, a mais importante espécie da fidúcia, dada a sua associação com os direitos reais de garantia, como lecionou Ebert Chamoun (ob. cit.): a fidúcia cum amicu assemelha-se ao depósito e ao comodato, mas dele difere por acarretar a transferência da propriedade da coisa, que o fiduciante quer ver em maior segurança.
Se o fiduciante recupera a posse da coisa alienada, pode usucapi-la ainda que seja imóvel, no prazo de um ano, dispensando a boa-fé. Era um tipo especial de usucapião chamado de usureceptio fiduciae. Mas, para evitar os seus efeitos, costumava o fiduciário dar a coisa em locação ou em precário ao fiduciante, colocando-o, assim, em situação de não poder usucapir.
A obrigação do fiduciário nascia do pactum fiduciae que acompanhava o ato de transferência do domínio, mas que com ele não se confundia. Formavam ambos os atos um único negócio.
A ação que era ajuizada era a actio fiduciae. Com ela podia o fiduciante obter restituição da coisa e sancionar toda violação do pactum fiduciae. Era, a princípio, in factum, para depois ser in ius e de boa-fé. Era considerada uma ação infamante, opondo-se à actio fiduciae contraria, a favor do fiduciário, para obter, por exemplo, a entrega da coisa que fora dada em locação ou precário (pacto pelo qual uma das partes concedida gratuitamente a posse de uma coisa ou o exercício de um direito a outra, precarista, que se obrigava a restituir a coisa ou cessar o exercício do direito quando assim o entendesse o concedente, sendo que, no direito pós-clássico, é que o precário se tornou um contrato sancionado por uma actio praescriptis verbis, e antes o direito do concedente de obter a restituição da coisa podia fazer-se por meio do interdictum de praecario).
A fidúcia deixa de existir por volta do século V d.C. Comporta dois tipos de ações: actio fiduciae directa e actio fiduciae contraria.
A fidúcia eclipsou-se, como ensinou Ebert Chamoun (ob. cit., p. 244) no direito romano-helênico, com o desaparecimento da mancipatio e da iure cessio.
Modernamente temos o negócio fiduciário:
Messina (Negozi fiduciari, in Scritti Giuridici, I, nº 19, p. 71) apresentou 3 (três) construções doutrinárias com relação ao negócio fiduciário.
A construção romana, pela qual o negócio fiduciário (que encontra o seu precedente histórico na fiducia romana) se caracteriza, segundo Regelsberger – pela desproporção entre a finalidade a atingir e o meio empregado para isso e decorre da conjugação de um negócio jurídico de eficácia real (transferência plena e irrevogável da propriedade ou de outro direito) com um negócio de eficácia puramente obrigatória (correspondente ao pactum fiduciae, em virtude do qual o fiduciário se obriga a usar da forma convencionada o direito que adquiriu, restituindo-o, mais tarde, ao fiduciante, ou transferindo-o a terceiro), dentro de uma concepção dualista do negócio fiduciário do tipo romano, ou pela qual o negócio fiduciário se distingue pelo poder de abuso que corresponde à existência de uma simples confiança pessoal do adquirente de que este não fará uso do poder jurídico a ele transferido que esteja em contraste com as finalidades econômicas para os quais foi transmitido esse poder.
Há, para o negócio fiduciário, uma construção germânica, segundo a qual, na linha de Schultze, em negócio dessa natureza, o fiduciário adquire ou um direito de propriedade resolúvel, ou um direito real limitado sobre a coisa do fiduciante, ou, então, em se tratando de direito de crédito, obtém direito cujo conteúdo é limitado pela lei em conformidade com o escopo visado pelas partes.
Houve a construção devida a Dernburg, como ensinou o Ministro Moreira Alves (A retrovenda, p. 7), em virtude da qual, no negócio fiduciário, distinguem-se nitidamente a relação externa entre o fiduciário e terceiros e a relação interna entre o fiduciário e o fiduciante; naquela; o fiduciário surge como proprietário de uma coisa ou como titular de um direito de crédito, dispondo, perante os terceiros, das faculdades que formam o conteúdo desses direitos; nesta, o fiduciário aparece como simples mandatário do fiduciante.
Parte-se do princípio de que quem aliena não grava, uma vez que aquele que grava em garantia comece a expor o bem à alienação, se a garantia consiste em subordinar ao seu fim o valor do bem. Para a extração do valor, tem-se que alienar.
No direito anglo-saxônico, há a mortage of personal property, que não é, propriamente, penhor, mas venda, a título de garantia.
O Direito inglês lançou mão de três técnicas: a) a condição resolutiva; b) a transferência de retrovenda (negócio jurídico indireto); c) a condição suspensiva.
Nas duas primeiras espécies, o bem entra no patrimônio do adquirente; na terceira, se não for paga, ao vencimento da dívida. Na equity property, o devedor conservaria a propriedade.
Estar-se-ia diante de uma alienação ou gravame.
A transmissão de propriedade em garantia (transmissão da segurança) contém a transmissão da propriedade mais o acordo de não poder o adquirente dispor da propriedade do bem e de ter de restituí-lo ao se solver ou se extinguir por outro modo a dívida. A actio fiducie com infâmia para o demandado protegia o transmitente, em caso de violação da fidúcia pelo adquirente, como explicou Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, t. XX, §§ 2.413, 2, 2.567, 2).
A transmissão da propriedade para segurança consiste em o devedor transmitir ao credor a propriedade da coisa, mas convencionando que o credor, solvida a dívida, a restitua. Tal restituição ou se opera ipso iure, ou é conteúdo da obrigação do fiduciário. No Direito romano, só havia a transmissão incondicional. A propriedade fiduciária resolúvel é de origem germânica, como explicou H. Bruner (Forschngen zur geschichte des deutschen un französischen Rechtes, 620). No Direito romano, a fidúcia pura era a fiducia cum creditore contracta, sem que a propriedade fosse resolúvel. Hoje, tanto na transmissão fiduciária pura quanto na impura, ainda que não se trate de fiducia cum creditore contracta, pode haver a resolutividade da propriedade. O direito expectativo do fiduciante é, na transmissão fiduciária da propriedade com reversão ipso iure, direito expectativo à propriedade; na transmissão fiduciária da propriedade sem reversão ipso iure, à restituição (obrigação do fiduciário).
Na transmissão fiduciária da propriedade mobiliária, inclusive de títulos endossáveis e ao portador, para segurança, ou: a) se concebe a propriedade sob a condição resolutiva da solução da dívida (paga a dívida, reverte a propriedade, automaticamente), ou b) se concebe incondicionalmente a propriedade, mas ligada à obrigação, para o credor, de retrotransmitir a propriedade, se for pago, obrigação que está sujeita, portanto, à condição suspensiva da solução da dívida.
A transmissão em garantia pode ser apenas da posse, o que se passa sempre que se transfere ao credor a posse do bem sem que se hajam satisfeitos os requisitos para a constituição do penhor. Assim o credor não se torna titular do direito real de penhor; apenas se garante com a posse, nascendo-lhe, com o acordo de garantia, exceção contra as ações possessórias do dono do bem entregue.
O acordo de transmissão é abstrato. Disse Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, t. 21, Bookseller, p. 380) que, no sistema jurídico brasileiro, se aparece a cláusula em segurança, o que de mais grave pode acontecer é transformar-se a propriedade em propriedade resolúvel.
Fala-se que o inconveniente maior da transmissão da propriedade em segurança é dar-se mais com ela do que precisaria dar; transfere-se o domínio, ou domínio e posse, onde bastaria gravar-se. Subjacente está o acordo de segurança, segundo o qual o adquirente tem de retrotransferir a propriedade ao alienante, extinta a dívida que com a transmissão se garantiu.
Mas atente-se para esta observação de Pontes de Miranda (ob. cit., t. 21, p. 381):
Quanto à alienação pelo adquirente, é possível, sem que se hajam de invocar as regras jurídicas sobre o penhor (O. Warneyer, Kommentar, II, 461). No plano do direito das obrigações, responde ele pelas violações do pacto. No plano do direito das coisas, é ele dono e, como dono, pode transferir o que tem. Proprietário ele o é, como qualquer outro.
Assim a obrigação de restituir, logo após ser solvida integralmente a dívida, existe e é pessoal.
Entende-se que a relação entre o transferente e o adquirente é relação jurídica de fidúcia, pessoal. Por ele, está sujeito, pessoalmente, à restrição ao poder de dispor e ao dever do retrotransferir.
Se, ao alienar o bem cuja propriedade se transferiu em garantia, o adquirente-transferente fez pacto com o terceiro em que se alude ao que entre ele e o fiduciante existe, o terceiro, desta forma, vincula-se ao transmitente e ao fiduciante.
A transmissão da propriedade em segurança não é acessória do crédito garantido. Pode-se transmitir o crédito, que se garantiu, sem se transmitir à propriedade.
A tradição jurídica no Direito brasileiro é da proibição do pacto comissório.
O pacto comissório vem a ser a cláusula inserida no contrato pela qual os contraentes anuem que a venda se desfaça, caso o comprador deixe de cumprir suas obrigações no prazo estipulado.
Diz-se de cláusula cuja inexecução anula o ato que a contém.
É a transferência da posse de um bem móvel ou imóvel do devedor ao credor para garantir o cumprimento de uma obrigação.
O art. 1.365 do Código Civil de 1916 proibia o pacto de ficar o credor com o bem dado em garantia pignoratícia, anticrética ou hipotecária, se a dívida não fosse paga no vencimento.
Observa-se, no Direito alemão, Martin Wolf (Lehbuch, III, 27ª a 32ª ed., 617), seguido por Karl Kober. No sentido contrário: Plank (Kommentar, III, 4ª ed., 1205), entre outros.
Ensinou Pontes de Miranda (ob. cit., t. 21, p. 383):
Raciocinemos. Quem é outorgado em pacto de transmissão em segurança não poderia ficar subordinado a ratio legis dessa regra jurídica porque já é adquirente. O que a lei proíbe é que ao outorgado da segurança se dê o direito formativo gerador ou o direito expectativo, ou a pretensão a adquirir o bem sobre o que recai o direito real de garantia. Mas o outorgado em pacto de transmissão em segurança já é o proprietário, não se poderia negar tornar-se aquilo que ele já é.
Aplicar-se a regra jurídica do art. 765 do Código de 1916 ao outorgado em pacto de transmissão em segurança seria negar a alguém poder continuar de ser o que já é, posto que seja com o dever e a obrigação previstos no Código Civil, art. 1.364, quanto à alienação do bem, detração do crédito e entrega do saldo eventual ao devedor. Aliás, para o Ministro Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, 3ª ed., p. 146), por via do Decreto-Lei nº 911/1969 e ainda da Lei nº 4.728/1965, é ilícito o pacto comissório, estipulado ab initio ou ex intervallo, na alienação fiduciária em garantia, que somente se prova por escrito, em instrumento público ou particular.
Pensemos na alienação fiduciária em garantia. Para Luiz Augusto Beck da Silva, a alienação fiduciária (Alienação fiduciária em garantia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 49) é:
Negócio jurídico, bilateral, oneroso, acessório (o principal é o contrato de mútuo ou de financiamento, seguindo-lhe o de alienação fiduciária) e formal (escrito público ou particular), através do qual uma das partes da relação, o credor, adquire o domínio resolúvel e a posse indireta de bem móvel durável, infungível, inconsumível e alienável, recebido em garantia de financiamento efetuado pelo alienante ou devedor, possuidor direto e depositário da coisa com todas as responsabilidades e encargos que lhe são inerentes.
Não é indispensável que se celebrem simultaneamente o contrato principal (de que resulta o crédito a ser garantido) e o contrato de alienação fiduciária em garantia, que pode surgir depois de já existente o crédito sem a garantia da propriedade fiduciária.
Como os negócios jurídicos em geral, os contratos de alienação fiduciária em garantia submetem-se aos planos da existência, validade e eficácia.
Entende-se que pacto comissório é a possibilidade de o credor ficar com o bem dado em garantia, quando ocorre a inadimplência do devedor em relação à obrigação principal do contrato. O Código Civil de 2002, repetindo a regra disposta no Código Civil de 1916, proíbe a existência do pacto comissório nos contratos que envolvam garantia real, tal como o de alienação fiduciária de coisas móveis.
Além disso, para Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, “essa proibição alcança o sub-rogado, de modo que também o coobrigado pagante da dívida está obrigado à venda de excussão sub-rogada e a prestar contas ao devedor avalizado ou afiançado” (Garantia fiduciária. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 502).
O § 6º do art. 1º do Decreto-Lei nº 911/1969, que deu nova redação ao art. 66 da Lei nº 4.728/1965, respeitando a redação dada pela Lei nº 4.728/1965, dispõe que: “É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no seu vencimento“.
Ademais, os arts. 1.364, 1.365 e 1.428 do Código Civil/2002 também dispõem que, no caso de inadimplemento do devedor-fiduciário, o credor fica obrigado a vender o bem, não podendo adquirir a coisa dada em garantia ao cumprimento da obrigação principal.
Inclusive, o pacto comissório já vinha sendo tratado desta forma desde o Código Civil de 1916, conforme se verifica no art. 765.
A ideia da proibição é justamente proteger o devedor da eventual pressão do credor para ficar com o bem por um preço muito abaixo do valor de mercado. Nesse sentido, são os esclarecimentos de Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe: “[…] a proibição do pacto comissório tem por finalidade evitar que o devedor por qualquer modo ficasse coagido e, sob a pressão da necessidade, fosse levado a convencionar o abandono do bem ao credor por quantia irrisória” (ob. cit.).
O art. 66, § 2º, da Lei nº 4.728, em seu texto originário, dizia que “o instrumento de alienação fiduciária transfere o domínio da coisa alienada, independentemente da sua tradição, continuando o devedor a possuí-la em nome do adquirente, segundo as condições do contrato, e com as responsabilidades do depositário“.
Haveria um constituto possessorio ex lege?
Para Clóvis Beviláqua (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, v. III, 1930, p. 21), a cláusula constituti não se presume: deve ser expressa ou resultar de cláusula expressa.
No caso, como salientou o Ministro Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, 3ª ed., p. 69), não há um constituto possessorio presumido por determinação legal, quando a lei não o presume expressamente. Não há constituto possessorio ex lege para o caso. A lei criou um novo caso de traditio ficta, ocorrendo a transmissão da posse por força de determinação legal (ob. cit., p. 75). Mas, diferentemente do sistema francês, o simples contrato não transfere a propriedade. Será necessário o registro no Cartório competente. Antes do registro, o contrato de alienação fiduciária em garantia é apenas título de constituição da propriedade fiduciária, que ainda não nasceu. Antes disso, inexiste para o credor tal garantia real. A propriedade fiduciária irá se constituir com o registro próprio.
O Ministro Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, 3ª ed., p. 97) ensinou que a alienação fiduciária em garantia é contrato, mas contrato que não é obrigatório, situando-se, em contrário, no plano do direitos das coisas, enquadrando-se como negócio jurídico dispositivo. Será, para tanto, necessário para sua constituição o registro.
Ainda para o Ministro Moreira Alves, “não há que se falar em causa fiduciae, figura atípica, e que, não obstante, a controvérsia a que tem dado margem (refere-se à opinião de G. Deiana, in Rivista di Diritto Civile, v. XXX, 1938), vem servindo a doutrina para justificar a validade do negócio jurídico fiduciário em sistemas causalistas, como, por exemplo, o italiano“.
Prosseguiu o Ministro Moreira Alves ao ensinar que a simples circunstância de a alienação fiduciária em garantia ser um contrato típico repete a possibilidade de apresentar, como elemento causal, uma causa atípica, própria do negócio jurídico atípico, que é o negócio fiduciário. E a alienação fiduciária em garantia, como já demonstrado na introdução desta obra, não só por sua tipicidade, mas também pela sua estrutura, não se enquadra nos negócios jurídicos fiduciários propriamente ditos, diferenciando-se, de outra parte, dos negócios fiduciários do tipo germânico.
Aliás, Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, v. III, § 5.483, 3, Borsói) entende que a transmissão fiduciária é independente do crédito, não sendo, portanto, acessória. Ao contrário, entendeu o Ministro Moreira Alves, em se tratando de alienação fiduciária em garantia. Para o ministro, a tese de Pontes de Miranda é correta para os casos em que há realmente negócio fiduciário, e não para o instituto que foi introduzido no Brasil pela Lei nº 4.728.
Diga-se isso porque a alienação fiduciária em garantia (contrato que serve de título à propriedade fiduciária), com direito real de propriedade fiduciária (em que se fala no fenômeno da elasticidade da propriedade), há aplicação da propriedade em garantia. Aqui se tem um exemplo de transmissão da propriedade em segurança.
Para o Ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 40), a alienação fiduciária em garantia, com a estrutura que recebeu no direito brasileiro, aproxima-se do chattel mortgage.
O chattel mortgage (hipoteca mobiliária) prende-se, no fundo, ao penhor de propriedade conhecido no antigo direito dos povos germânicos.
Os autores, como Hazeltine, acentuavam que o direito medieval inglês somente conheceu o penhor de coisas móveis em que ao credor (pledge pawn) se transferia apenas a posse. Foi no moderno direito anglo-saxônico que se desenvolveu uma espécie de garantia mobiliária, o chattel mortgage.
O chattel mortage é forma de garantia que, com relação às coisas móveis, assemelha-se ao mortgage clássico sobre imóveis, em que se transferia a propriedade do imóvel, sob condição resolutiva (o pagamento do débito), ao credor.
Aliás, Ferrara Junior, citado pelo Ministro Moreira Alves, em sua obra, analisando-o em face do Direito italiano, observou:
Segundo o nosso Direito, essa não seria, em rigor, uma verdadeira hipoteca, mas o é segundo o Direito inglês, enquanto se trata de mortgage. O devedor transfere ao credor a propriedade (legal property) sobre determinadas coisas móveis, conservando-lhes a posse, sob a condição resolutiva de pagamento de uma certa soma de dinheiro (mortgage of personal chattels). Trata-se, portanto, de uma alienação fiduciária, sob condição resolutiva, mas a prática modificou e torceu o instituto o aproximando da hipoteca. (L’hipoteca mobiliare ed insieme in contributo alla teoria della publicità, 1935, nº 119, p. 334)
À vista do tratamento legal que lhe foi dado, Hazeltine (citado pelo Ministro Moreira Alves naquela obra) afirmou que “o mortgage sobre móveis é, assim, segundo o direito hodierno, uma hipoteca com direito de venda sobre o objeto empenhado“.
Como disse o ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 44), salientam os autores que, no mortgage (inclusive no relativo a móveis), há o desdobramento da propriedade admitido no Direito anglo-saxônico. Com efeito, ao constituir-se o mortgage, o devedor transfere ao credor a propriedade substancial ou equitativa, protegida pelo equity. Assim, portanto, o que é característico do direito anglo-saxônico – credor e devedor têm direitos de propriedade diversos sobre a mesma coisa. Daí o motivo por que o devedor pode, mediante o chattel mortgage, dar a mesma coisa em garantia, sucessivamente, a vários credores estabelecendo-se, assim, uma série de graus determinados pela data de inscrição de cada mortgage no registro próprio.
Diverso é o trust receipt utilizado para permitir o financiamento da compra de mercadorias (bens de consumo, matéria prima, produtos semifaturados) com a participação, além do vendedor do comprador, de um terceiro; o financiador, que, em geral, é a entidade financiadora.
Nessa operação, a mercadoria passa, diretamente, da propriedade do vendedor para a do financiador que a entrega ao comprador (beneficiário do financiamento), recebendo deste um documento (trust receipt) no qual, por via de regra, declara-se que o comprador possui, em nome do financiador (que pode verificar o uso a ser feito com a coisa, retomando a qualquer tempo), a mercadoria adquirida, para, com o produto da venda, ser pago o valor do financiamento.
Explicou o Ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 36 e 37) que o instituto do trust receipt é possivelmente originário dos Estados Unidos da América do Norte, onde é mais utilizado que na Inglaterra; o trust receipt – ainda denominado letter of trust, letter of hypothecation, ou letter of lien – não tem forma estereotipada, variando o seu conteúdo em função das características do contrato celebrado, entre o financiador e o comprador. O trust receipt, naqueles países, veio a facilitar a obtenção de financiamento mediante a constituição de garantia real eficaz para o financiador.
Mas há diferenças fundamentais entre o trust receipt e a alienação fiduciária em garantia:
- a) o fim precípuo do trust receipt é permitir ao devedor que venda a mercadoria, diretamente ou em nome do financiador (que geralmente estipula o preço mínimo de venda), a terceiro a fim de obter os recursos necessários para saldar seu débito. Na alienação fiduciária em garantia, essa venda – que deve ser realizada pelo credor, caso a dívida não seja paga – é vedada ao devedor, que, se a fizer, responderá por estelionato;
- b) no trust receipt, ao contrário do que ocorre na alienação fiduciária em garantia, o banco pode recuperar as mercadorias em poder, em trust (em confiança), do devedor, por força da clausula (o banco pode, a qualquer tempo, cancelar este trust e tomar posse das ditas mercadorias).
Na alienação fiduciária em garantia, sua garantia, a propriedade fiduciária, no entendimento do Ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 130), não é propriedade plena, mas, sim, propriedade limitadíssima, não só pelo fato de ser resolúvel, como também, e principalmente, pelas restrições que sofre seu titular, o credor que a recebeu em garantia. Aliás, entendeu o Ministro Moreira Alves, que alienada fiduciariamente a coisa ao credor, este se torna proprietário resolúvel dela. Não tendo a posse direta da coisa, uma vez que é possuidor indireto, não há para o adquirente deveres em face do alienante. Em sendo titular do domínio restrito, dispõe o adquirente (credor) das ações reais que tutelam a propriedade sobre coisas. Salvo convenção em contrário, com a transmissão, mortis causa ou inter vivos, do crédito do adquirente, transfere-se, ainda, para o novo credor a propriedade fiduciária. Ocorre, dessa forma, a condicio iuris a que está sujeita a resolubilidade da propriedade fiduciária se, no vencimento do débito, houver seu pagamento pelo devedor, ou, no caso de terceiro garante, por este. A propriedade fiduciária é limitada pela sua resolubilidade e pelas limitações que seu conteúdo sofre, em virtude do escopo de garantia. Essa resolubilidade é limitada pelo cumprimento da obrigação do devedor para com o credor. Com o cumprimento da obrigação pelo devedor, ou se for o caso, por terceiro alienante, verifica-se a resolubilidade a que estava subordinada a propriedade fiduciária. Assim, se for satisfeito o crédito, extingue-se o desdobramento da posse (direta e indireta) retomando o alienante à sua posição de possuidor pleno da coisa, ao invés de ter apenas – como ocorria pendente condicione iuris – a posse direta. Essa condição é real e opera de forma retroativa. Se a dívida não for paga, a lei indica as alternativas ao credor como a execução, busca e apreensão, tendo a faculdade de vender a coisa, sendo válido o pacto Marciano (consiste na permissão para que o credor adquira o bem dado em garantia, condicionada à avaliação do seu valor de mercado de forma independente por um terceiro à época do vencimento da dívida garantida).
Entende-se que a propriedade fiduciária é uma propriedade limitada pela lei para atender ao escopo da garantia para o qual foi criada. Enquanto esse escopo perdura, a lei atua como elemento de compreensão sobre o conteúdo do domínio atribuído ao credor; deixando de ser necessária a garantia, cessa a pressão, e, automaticamente, a propriedade volta à sua plenitude anterior. O credor pendente condicione iuris (antes da venda da coisa alienada fiduciariamente) é titular de domínio bastante restrito, que é a propriedade fiduciária. No instante em que não pago o débito pelo devedor, aliena o credor a coisa a terceiro, este adquire o domínio pleno sobre ela. A propriedade fiduciária, como explicou o Ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 167), é, durante toda a sua existência, limitada pela resolubilidade e pelas restrições que sofre seu conteúdo, em virtude do escopo de garantia. Esse escopo cessa em duas situações: ou pela ocorrência da condictio iuris (extinção da obrigação ou renúncia do credor à garantia, ainda que se deem posteriormente ao vencimento do débito), ou pela venda da coisa a terceiro, para pagar-se. É a elasticidade do domínio, porquanto esse direito real, por ação de pressão externa, tem suas faculdades jurídicas reduzidas, mas, no instante em que o elemento compressor desaparece, ele volta a apresentar o seu conteúdo com amplitude originária.
Não se penhora, em execução contra o alienante, bem na posse direta do alienante, em via de contrato de alienação fiduciária em garantia. Isso porque o bem não passa a ser dele. É do proprietário fiduciário.
No REsp 910.207, a Segunda Turma do STJ entendeu ser possível a incidência de penhora sobre os direitos do executado no contrato de alienação fiduciária, ainda que futuro o crédito. O recurso era da Fazenda Nacional contra um devedor.
No caso, a Fazenda recorreu de decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), a qual considerou imprescindível, quando se trata de constrição dos direitos do devedor fiduciante, a anuência do credor fiduciário, pois, muito embora seja proprietário resolúvel e possuidor indireto, dispõe o credor das ações que tutelam a propriedade de coisas móveis.
No recurso, a Fazenda alegou ser possível a penhora sobre os direitos do devedor fiduciante oriundos do contrato de alienação fiduciária, independentemente do consentimento do credor fiduciário.
Segundo o relator, Ministro Castro Meira, não é viável a penhora sobre bens garantidos por alienação fiduciária, já que não pertencem ao devedor-executado, que é apenas possuidor, com responsabilidade de depositário, mas à instituição financeira que realizou o negócio jurídico de financiamento. Entretanto, é possível recair a constrição executiva sobre os direitos detidos pelo executado no respectivo contrato.
O devedor fiduciante possui direito expectativo (para alguns, expectativa de direito) à futura reversão do bem alienado, em caso de pagamento da totalidade da dívida, ou à parte do valor já quitado, em caso de mora e excussão por parte do credor, que é passível de penhora, nos termos do art. 11, VIII, da Lei das Execuções Fiscais, que permite a constrição de direitos e ações, afirmou.
No Boletim Eletrônico do IRIB (Alienação fiduciária. Imóvel gravado com usufruto – 17.04.2014), encontra-se excelente questão:
Pergunta: É possível a alienação fiduciária de imóvel gravado com usufruto?
Resposta: Ademar Fioranelli assim explicou acerca da possibilidade de alienação fiduciária de imóvel gravado com usufruto:
“[…] nada há a impedir que o nu-proprietário e o usufrutuário, no mesmo ato jurídico, alienem fiduciariamente a terceiro a propriedade resolúvel, já que o não pagamento da dívida pecuniária garantida pelo imóvel transmitido fiduciariamente, após o procedimento previsto no art. 26 e seus parágrafos da Lei nº 9.514, de 20.11.1997, resultará na consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, sem que a natureza do instituto do usufruto seja afetada, com o cancelamento subsequente do usufruto antes constituído.
Por outro lado, se e quando paga a dívida e seus encargos (art. 25), a propriedade retorna ao status jurídico anterior, nu-propriedade e usufrutuário com seus direitos restabelecidos, resolvida a propriedade fiduciária, com o cancelamento da alienação fiduciária à vista do termo de quitação (§ 2º do art. 25).” (FIORANELLI, Ademar. Usufruto e bem de família – Estudos de direito registral imobiliário. São Paulo: Quinta Editorial, 2013. p. 70)
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a alienação fiduciária em garantia é negócio jurídico das instituições financeiras, para tanto legitimadas ativamente, que, em função do débito não pago, podem ajuizar ação de busca e apreensão, de caráter satisfativo. Para tanto:
Processo civil. Recurso especial. Alienação fiduciária em garantia celebrada entre pessoa jurídica e pessoa natural. Regime jurídico do Código Civil. Busca e apreensão de bem móvel prevista no Decreto-Lei nº 911/1969, com redação dada pela Lei nº 10.931/2004. Ilegitimidade ativa ad causam.
- Há regime jurídico dúplice a disciplinar a propriedade fiduciária de bens móveis: (i) o preconizado pelo Código Civil (arts. 1.361 a 1.368), que se refere a bens móveis infungíveis, quando o credor fiduciário for pessoa natural ou jurídica; e (ii) o estabelecido no art. 66-B da Lei nº 4.728/1965 (acrescentado pela Lei nº 10.931/2004) e no Decreto-Lei nº 911/1969, relativo a bens móveis fungíveis e infungíveis, quando o credor fiduciário for instituição financeira.
- A medida de busca e apreensão prevista no Decreto-Lei nº 911/1969 consubstancia processo autônomo, de caráter satisfativo e de cognição sumária, que ostenta rito célere e específico com vistas à concessão de maiores garantias aos credores, estimulando, assim, o crédito e o fortalecimento do mercado produtivo.
- O art. 8º-A do referido Decreto, incluído pela Lei nº 10.931/2004, determina que tal procedimento judicial especial aplique-se exclusivamente às seguintes hipóteses: (i) operações do mercado financeiro e de capitais; e (ii) garantia de débitos fiscais ou previdenciários. Em outras palavras, é vedada a utilização do rito processual da busca e apreensão, tal qual disciplinado pelo Decreto-Lei nº 911/1969, ao credor fiduciário que não revista a condição de instituição financeira lato sensu ou de pessoa jurídica de direito público titular de créditos fiscais e previdenciários.
- No caso concreto, verifica-se do instrumento contratual (fl. 12) a inexistência de entidade financeira como agente financiador. Outrossim, a recorrente intentou a presente demanda em nome próprio pleiteando direito próprio, o que aponta inequivocamente para a sua ilegitimidade ativa para o aforamento da demanda de busca e apreensão prevista no Decreto-Lei nº 911/1969.
- Recurso especial não provido. (REsp 1.101.375/RS, (2008/0240416-2), Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Recorrente: Lojas Becker Ltda., Advogado: Diego da Silva Fontoura, Recorrido: Lurdes Taborda, Advogado: Sem representação nos autos)
No citado recurso especial, trago à colação a argumentação trazida pelo ministro relator:
No que tange à legitimidade para pactuação da alienação fiduciária, verifica-se que, na gênese do instituto, predominava o entendimento de que apenas as instituições financeiras eram autorizadas a receber a propriedade fiduciária de bens móveis corpóreos como garantia, sob o fundamento de que sua introdução no direito pátrio deu-se por meio de lei especial disciplinadora do mercado de capitais (Lei nº 4.728/1965).
O Decreto-Lei nº 911/1969 alterou a redação do art. 66 da referida lei e também instituiu a tutela jurisdicional atinente às relações intersubjetivas decorrentes da criação do novel negócio jurídico, mormente ante o objetivo constante da exposição de motivos, qual seja: “Dar maiores garantias às operações feitas pelas financeiras, assegurando o andamento rápido dos processos, sem prejuízo da defesa, em ação própria, dos legítimos interesses dos devedores“.
E, consoante lição do renomado Ministro Moreira Alves, o Decreto-Lei nº 911/1969, “ao disciplinar a ação de busca e apreensão, restringiu de tal forma a defesa do réu que tornou evidente a inaplicabilidade do instituto nas relações entre particulares“, uma vez que tais medidas coibitivas do direito de defesa quebrou “[…] o equilíbrio entre os interesses do credor e do devedor, dando-se tal prevalência àquele que, para não se chegar à iniquidade, facilitando-se, inclusive, a usura, é mister se interprete restritivamente o termo credor utilizado genericamente, no referido decreto-lei“. (MOREIRA ALVES, José Carlos. Op. cit., p. 101-102)
Nessa linha de entendimento, é forçoso concluir que esse diploma legal preservou como sujeito ativo da alienação fiduciária o credor fiduciário, o qual, segundo o magistério de Cristiano Chaves de Farias,
[…] tratava-se da pessoa jurídica concedente do empréstimo, sendo esta instituição financeira também conhecida como credor, adquirente ou possuidor indireto. Invariavelmente, na forma de sociedade anônima, privada ou de economia mista, autorizada pelo Banco Central, ou administradoras de consórcios regularmente constituídas. (FARIAS, Cristiano Chaves de. Direitos reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 381)
No mesmo sentido, Márcio Calil de Assumpção:
Exatamente pelos contornos céleres e eficientes do Decreto-Lei nº 911/1969, e diante do entendimento pretoriano no sentido de que a alienação fiduciária poderia gerar desigualdades entre credores e devedores, se aplicada a quaisquer pessoas físicas e/ou jurídicas indiscriminadamente, acabou por ficar essa garantia restringida no âmbito do mercado financeiro e de capitais, mercado esse submetido à fiscalização do Poder Público. (ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de. Ação de busca e apreensão: alienação fiduciária. São Paulo: Atlas, 2006. p. 163)
Inicialmente, tinha-se a alienação fiduciária em garantia para bens móveis (fungíveis ou não). Mesmo com relação a veículos automotores, a propriedade fiduciária constitui-se com o registro no Registro de Títulos e Documentos, independentemente de anotação que, para fins probatórios, deverá constar do Certificado de Registro em órgão de trânsito próprio. Observe-se que o art. 66, § 3º, da Lei nº 4.728/1965 permitia que as coisas fungíveis pudessem ser objeto de alienação fiduciária em garantia. Coisas que não constituem corpus certum podem ser alienadas fiduciariamente. Os imóveis por destinação podem ser objeto de alienação fiduciária em garantia, numa forma de mobilização por declaração de vontade expressa ou implícita. Os imóveis por acessão podem ser objeto de alienação fiduciária como, por exemplo, as máquinas industriais, que sejam presas ao solo? Essas máquinas somente poderão ser objeto de alienação fiduciária em garantia se, embora presas ao solo, possam dele ser destacadas sem destruição, modificação, fratura ou dano, porque, nesse caso, não serão elas imóveis por acessão física, mas imóveis por destinação que, quando da celebração do contrato de alienação fiduciária, se mobilizaram, como disse o Ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 126). A favor da alienação de móveis presos ao solo, mas destacáveis, manifestou-se Felix Alonso (A alienação fiduciária em garantia. Revista da Universidade de São Paulo, v. LXII, nº 22, p. 428).
Os navios e as aeronaves podem ser objeto de alienação fiduciária em garantia. No que concerne aos navios, para a aquisição de propriedade, é mister o registro do título aquisitivo no Tribunal Marítimo ou na Capitania dos Portos conforme a tonelagem (arts. 76 e 80 da Lei nº 2.180/1954). O contrato de alienação fiduciária em garantia para que a propriedade fiduciária se constitua deve ser registrado nesses registros especiais, e não no Registro de Títulos e Documentos, como se lê do RE 73.555/PE, de 20 de maio de 1973, Relator Ministro Thompson Flores, RTJ 68/765.
Disse a respeito do registro de propriedade fiduciária com relação a bem móvel o Ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 80):
Com efeito, se a propriedade fiduciária (a semelhança do que se dá com a hipoteca), é inequivocamente um direito real, e se o direito real, por sua natureza, é oponível contra terceiros, atribuindo a seu titular a faculdade de sequela, não é possível pretender-se a existência de propriedade fiduciária como direito real antes do registro que lhe outorga o atributo da oponibilidade erga omnes. Antes do registro, o contrato da alienação fiduciária em garantia é apenas título de constituição da propriedade fiduciária, que ainda não nasceu; porquanto seu nascimento depende do competente registro deste título. E, não se havendo constituído, ainda, a propriedade fiduciária, inexiste, para o credor, garantia real, o que implica a possibilidade de que terceiro com quem, posteriormente venha a celebrar contrato de alienação fiduciária com relação às mesmas coisas móveis, se torne proprietário fiduciário delas se registrar esse título posterior antes que o faça o primeiro credor.
Há recente decisão do Supremo Tribunal Federal na matéria, como informou o site do STF, em 21 de outubro de 2015:
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu não ser obrigatória a realização de registro público dos contratos de alienação fiduciária em garantia de veículos automotores pelas serventias extrajudiciais de registro de títulos e documentos. A decisão unânime ocorreu durante a sessão realizada nesta quarta-feira (21) em que os ministros analisaram as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIns) nºs 4227, 4333 e o Recurso Extraordinário (RE) nº 611639, com repercussão geral reconhecida.
Para o relator da matéria, Ministro Marco Aurélio, no caso, o simples pacto entre as partes “é perfeitamente existente, válido e eficaz” sem que seja necessário qualquer registro, “o qual constitui mera exigência de eficácia do título contra terceiros“. Segundo ele, embora o exercício em caráter privado da atividade notarial e de registro esteja previsto no art. 236 da Constituição Federal, “não há conceito constitucional fixo e estático de registro público“. “Ao inverso, compete à lei ordinária a regulação das atividades registrais“, afirmou.
Em princípio, conforme o Ministro Marco Aurélio, o legislador pode definir os atos jurídicos sujeitos a registro nas serventias extrajudiciais, em especial quando, após analisar o custo benefício, verifica-se que a transcrição do título não apresenta “segurança adicional suficiente ao ato para compensar a burocracia e os ônus impostos às partes sujeitas ao cumprimento da obrigação“. De acordo com ele, é evidente a necessidade de conferir publicidade ao contrato de alienação fiduciária em garantia de automóveis para que o ato tenha eficácia contra terceiros.
“Como no pacto a tradição é ficta e a posse do bem continua com o devedor, uma política pública adequada recomenda a criação de meios conducentes a alertar eventuais compradores sobre o real proprietário do bem, evitando fraudes, de um lado, e assegurando o direito de oposição da garantia contra todos, de outro“, ressaltou.
A Lei nº 6.404/1976, Lei das Sociedades Anônimas, permitia a alienação fiduciária quanto às ações. Com relação ao direito de voto, o art. 113 é claro:
Art. 113. O penhor da ação não impede o acionista de exercer o direito de voto; será lícito, todavia, estabelecer, no contrato, que o acionista não poderá, sem consentimento do credor pignoratício, votar em certas deliberações.
Parágrafo único. O credor garantido por alienação fiduciária da ação não poderá exercer o direito de voto; o devedor somente poderá exercê-lo nos termos do contrato.
Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, v. III, § 5.485, p. 360), à luz do art. 66 da Lei nº 4.728/1965, admitia que as ações fossem alienadas fiduciariamente. No mesmo sentido o voto do Ministro Aliomar Baleeiro, no RE 60.699-GB. Em termos de direito positivo, o art. 40 da Lei nº 6.404, no mesmo sentido do art. 100 da mesma lei, admite expressamente tal forma de alienação fiduciária quanto a ações. Veja-se o art. 40:
Art. 40. O usufruto, o fideicomisso, a alienação fiduciária em garantia e quaisquer cláusulas ou ônus que gravarem a ação deverão ser averbados:
I – se nominativa, no livro de “Registro de Ações Nominativas“;
II – se endossável, no livro de “Registro de Ações Endossáveis” e no certificado da ação;
III – se escritural, nos livros da instituição financeira, que os anotará no extrato da conta de depósito fornecido ao acionista;
II – se escritural, nos livros da instituição financeira, que os anotará no extrato da conta de depósito fornecida ao acionista. (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997)
Parágrafo único. Mediante averbação nos termos deste artigo, a promessa de venda da ação e o direito de preferência à sua aquisição são oponíveis a terceiros.
O Ministro José Carlos Moreira Alves (ob. cit., p. 134) ensinava que, “no que concerne aos direitos e ações que se consideram móveis por força do art. 48 do Código Civil, não podem eles ser objeto de alienação fiduciária em garantia. Poderão sê-o propriamente por cessão fiduciária (propriamente dita a que resulta de verdadeiro negócio fiduciário), ou, quando for o caso de cessão fiduciária“. Segundo o art. 83 do Código Civil de 2002, consideram-se móveis para os efeitos legais “os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações“.
O Ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 134) entendia que:
Por isso, se é de admitir-se a garantia fiduciária com relação às ações o que permite o art. 40 da mencionada lei – ações nominativas, endossáveis e escriturais – e não às do portador, para cuja emissão se teria de recorrer ao Decreto-Lei nº 911/1969 (inclusivamente, ao § 3º do art. 66 da Lei nº 4.728/1965, na redação dada por ele, o qual admite coisa fungível como objeto de alienação fiduciária em garantia), o qual, como demonstramos não se aplica aos títulos de crédito aos títulos de participação em geral. Ademais, igualmente em virtude da Lei nº 6.404/1976, podem ser objeto de alienação fiduciária em garantia às debêntures, as partes beneficiárias.
Quanto aos demais títulos de crédito, porém, o Ministro Moreira Alves manteve sua posição de que, por força do art. 44 do Código Civil de 1916, não podem eles ser sujeito de alienação fiduciária em garantia. Poderão sê-lo de cessão fiduciária propriamente dita (a que resulta da verdadeiro negócio fiduciário, ou, quando for o caso, da cessão fiduciária a que aludem os arts. 22 e 34 da Lei nº 4.864, de 29 de novembro de 1965, e o art. 43 do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966). Na matéria, é importante a leitura do livro Da cessão de crédito, p. 75 e seguintes, da lavra de Gondin Neto.
O fiduciário deverá ou não, na qualidade de proprietário das ações, participar de acordo de acionistas, seja do acordo vigente por sucessão, assim como em aditamentos ou celebração de um novo.
Segundo Modesto Carvalhosa (Acordo de Acionistas), embora o usufrutuário e o fideicomissário sejam, via de regra, participantes do acordo de acionistas, não caberá a mesma participação ao fiduciário, de modo que, no tocante às deliberações no âmbito do acordo de acionistas, serão aplicadas eventuais restrições estabelecidas pelas partes ao fiduciante no contrato de alienação fiduciária (aplicando-se, também para esse caso, o art. 113 da Lei nº 6.404/1976).
O “credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis” não se submete, pois, aos efeitos da recuperação judicial. Trata-se de expressa disposição legal.
Diversas são as debêntures.
Na alienação de debêntures (título representativo de dívida da sociedade, com garantia real, flutuante ou quirografária), é fundamental a presença do agente fiduciário, que funcionará como um representante. O investidor (credor) possui direito sobre coisa móvel que pode dar em garantia.
A Lei das S.A. prevê que, para todos os casos de emissão pública de debêntures, obrigatoriamente, deverá haver a nomeação do agente fiduciário. A função dessa figura jurídica, que teve por modelo a figura do trustee adequado à nossa prática jurídica, é a de dar proteção eficiente aos direitos e interesses dos debenturistas, exercendo uma fiscalização permanente e atenta, cabendo-lhe a responsabilidade da administração de bens de terceiros, independente da emissora e dos demais interessados na distribuição das debêntures, não conflitando, no exercício de suas funções, com os direitos e interesses que deva proteger.
Para tanto, o agente fiduciário deverá elaborar relatório e colocá-lo, pelo menos anualmente, à disposição dos debenturistas, dentro do prazo previsto na legislação ou na escritura de emissão, informando os fatos relevantes ocorridos durante o exercício, relativos à execução das obrigações assumidas pela emitente, aos bens garantidores das debêntures e à constituição e aplicação do fundo de amortização, se houver.
Deste relatório deverá constar, ainda, declaração do agente sobre sua aptidão para continuar no exercício da função.
Deverá notificar aos debenturistas, no prazo estabelecido na legislação ou na escritura de emissão, qualquer inadimplente, pela emitente, de obrigações assumidas na escritura de emissão.
Para isso, o agente fiduciário poderá usar de qualquer ação para proteger direitos ou defender interesses dos debenturistas, sendo-lhe especialmente facultado, no caso de inadimplemento da emitente.
Daí o papel importante desse agente.
A partir da edição da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, passou a ser possível, no Brasil, a utilização da alienação fiduciária de bens imóveis, para garantia de débitos civis.
Por óbvio, para os bens imóveis, a propriedade fiduciária somente se constitui com a inscrição no Cartório de Imóveis competente, sob pena de nulidade do registro.
O art. 113 da Lei nº 6.404, de 1976, estabelece que o credor garantido pela propriedade fiduciária da ação de Sociedade Anônima não poderá exercer direito de voto; em contrapartida, o devedor fiduciário poderá exercê-lo nos termos do contrato.
Discute-se com relação à propriedade fiduciária envolvendo máquinas fixadas.
No REsp 251.427, a Terceira Turma entendeu que maquinários móveis fixados artificialmente ao solo não podem ser considerados bens imóveis para efeitos de alienação fiduciária. Com essa decisão, a Turma proveu recurso de um banco que movia ação de busca e apreensão contra uma empresa madeireira da cidade de Marabá (PA).
Para o relator do caso, Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, a questão abrange o artigo do Código Civil que trata dos bens tidos como imóveis por acessão intelectual, ou seja, aqueles que por vontade do proprietário passam de móveis a imóveis para evitar que sejam separados deste. Por isso, a imobilização realizada pela madeireira não seria definitiva, já que pode ser a qualquer tempo mobilizada, por mera declaração de vontade, retornando a sua anterior condição de coisa móvel. Assim sendo, as máquinas de uma indústria, se destacadas do solo, voltarão a ser móveis. Consequentemente, não há nenhuma restrição de as máquinas da madeireira serem objeto de alienação.
Segundo Fernando Dias (Breve consideração acerca da alienação fiduciária de bens imóveis no mercado recessivo – Migalhas, 16.07.2011), na alienação fiduciária de bens imóveis, normalmente utilizada no mercado imobiliário, embora não exclusiva, o adquirente do bem transfere a sua propriedade ao agente financeiro, pelo período que durar o financiamento. O termo de quitação da dívida, conforme previsto expressamente no art. 25, § 2º, da Lei nº 9.514/97, poderá ser levado diretamente ao Registro Imobiliário, a fim de cancelar a alienação fiduciária e consolidar, de forma plena, a propriedade do bem na pessoa do adquirente.
Acentuou o Ministro Moreira Alves (ob. cit., p. 90): como ocorre com os contratos que são títulos de aquisição dos direitos reais de garantia, é a alienação fiduciária contrato acessório daquele de que decorre o crédito que a propriedade fiduciária visa a garantir. Mas é certo que Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, v. III, Bolsói, § 281, 2, 160) entendeu que a transmissão fiduciária é independentemente do crédito, não sendo, portanto, acessória. Para o Ministro Moreira Alves, essa tese seria correta para os casos em que há realmente negócio fiduciário, e não para o instituto introduzido em nosso sistema jurídico pela Lei nº 4.728.
A alienação fiduciária de bem imóvel passou a ser expressamente admitida como garantia de quaisquer obrigações por força do disposto em seu art. 51.
Essa espécie de garantia prevista na Lei do SFI, já bem difundida no mercado, é a propriedade fiduciária do bem imóvel. O crédito gerado a partir de contratos garantidos por alienação fiduciária também pode ser cedido a um terceiro. É o caso, ainda, do incorporador que, em garantia do financiamento tomado, cede à instituição financeira o crédito que mantém perante o adquirente do imóvel incorporado.
Aqui, contudo, o cessionário (no caso a instituição financeira) recebe todos os direitos e obrigações inerentes à propriedade fiduciária, e não só o direito aos títulos e seus respectivos créditos, como ocorre na cessão fiduciária de direitos creditórios anteriormente mencionada.
Disse ainda Fernando Dias (ob. cit.) com relação ao instituto:
A Lei nº 9.514, ao regular a alienação fiduciária de bens imóveis, traz uma grande novidade no tocante à superveniência de débito, após a execução do bem, algo ainda desconhecido, mesmo para quem já vem utilizando o instituto. Consolidada a propriedade com o credor, face a inadimplência do devedor, o mesmo fica vinculado a, no prazo de 30 dias, realizar a venda do imóvel, através de leilão público (a legislação brasileira segue a tradição de vedar a cláusula comissiva). Com o fruto da venda, o credor quita o débito e restitui, ao devedor, o restante.
Não havendo lance que alcance o valor do bem, sendo este livremente fixado pelas partes no contrato de alienação fiduciária, sem prejuízo de possível revisão por grave distorção, o credor deverá proceder uma segunda oferta pública, nos quinze dias seguintes. Neste segundo leilão, será aceito o maior lance ofertado, desde que igual ou superior ao valor da dívida. Não há mais referência ao preço do imóvel, bastando que o interesse do credor seja satisfeito.
Mas a maior novidade está na hipótese de não se alcançar, sequer, o valor da dívida, no segundo leilão. Enquanto que, pelo sistema tradicional, o devedor continuava obrigado pelo saldo remanescente, a Lei nº 9.514/1997, no art. 27, §§ 5º e 6º, prevê, diferentemente, que o débito estará automaticamente quitado e o imóvel continuará no patrimônio do credor. Em suma, caso se enfrente situação de considerável recessão, com deflação nos preços dos imóveis, o débito se resolverá pela adjudicação da garantia, sendo o credor obrigado a realizar os prejuízos daí advindos.
Mas dúvidas persistem entre os estudiosos e no mercado.
Como alertaram Renan B. Martins e João Paulo M. Rossi (A alienação fiduciária de imóveis em garantia de operações financeiras – Os riscos à luz do art. 27, § 5º, da Lei nº 9.514/1997, Migalhas, 3. 2. 18):
Ainda, por mais que se falasse na aplicabilidade da norma 9.514/1997 em relação aos contratos bancários de qualquer natureza, há que se observar a aplicação do art. 39, II, que autoriza a utilização supletiva do Decreto-Lei nº 70/1966, o qual, em seu art. 32, § 2º, autoriza, após realizado o segundo leilão e, não sendo o valor do lance superior ao valor da dívida, a cobrar o valor remanescente de seu crédito pela via executiva:
Lei nº 9.514/1997:
Art. 39. Às operações de financiamento imobiliário em geral a que se refere esta lei:
[…]
II – Aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966.
Decreto nº 70/1966:
Art. 32. Não acudindo o devedor à purgação do débito, o agente fiduciário estará de pleno direito autorizado a publicar editais e a efetuar no decurso dos 15 (quinze) dias imediatos, o primeiro público leilão do imóvel hipotecado.
[…]
- 2º Se o maior lance do segundo público leilão for inferior àquela soma, serão pagas inicialmente as despesas componentes da mesma soma, e a diferença entregue ao credor, que poderá cobrar do devedor, por via executiva, o valor remanescente de seu crédito, sem nenhum direito de retenção ou indenização sobre o imóvel alienado.
Não obstante, ainda em 2014, o legislador, visando solucionar tal celeuma, editou a Lei nº 13.043/2014, que, dentre outras medidas, conferiu nova redação ao art. 1.367 do Código Civil, estabelecendo que as disposições gerais previstas no Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial do Código Civil serão aplicadas à alienação fiduciária e à propriedade fiduciária, facultando, assim, ao credor, cobrar o saldo residual da dívida caso o produto obtido com a venda não seja suficiente para quitá-la.
Como explicou Garcia Rossi (Recentes alterações na alienação fiduciária de imóveis, Migalhas. 19 fev. 2015), pela análise da alteração trazida pela Lei nº 13.043/2014 ao art. 1.367 do Código Civil e tendo em vista que a alienação fiduciária de imóvel é um instituto regulado por “legislação especial pertinente“, qual seja, a Lei nº 9.514/1997, é necessário alertar para o fato de que, conforme estipulado pelo próprio artigo, esta alteração não teria o condão de se sobrepor às regras previstas pela legislação específica.
E ainda explicou Garcia Rossi (ob. cit.):
Logo, esta alteração não surtiu seu desejado efeito, por entrar em conflito com o conceito da quitação recíproca, tal como previsto na Lei nº 9.514/1997, de acordo com o qual a dívida extingue-se após a realização do segundo leilão, seja com a venda do imóvel (§ 4º), seja com o insucesso do leilão e a consequente transferência do imóvel ao credor (§ 5º).
Veja-se entendimento do Superior Tribunal de Justiça na matéria:
Agravo em recurso especial. Execução. Leilão de imóvel dado em garantia parcial de dívida. Preço, em segunda praça, insuficiente para quitar a dívida por inteiro. Prosseguimento da execução. Inaplicabilidade do art. 27, § 5º, da Lei nº 9.514/1997. Fundamentos do acórdão recorrido não impugnados. Incidência da Súmula nº 283/STF. Agravo improvido. (STJ, AgREsp 818.237/SP, (2015/0298116-0), decisão monocrática Min. Marco Aurélio Bellizze, J. 02.02.2016, DJ 17.02.2016)
Destaque-se que o primeiro projeto apresentado sob o nº 6.525/2013, de autoria do Deputado Carlos Bezerra (PMDB), pretende acrescentar ao art. 27 da Lei nº 9.514/1997 o § 9º, dotado da seguinte redação:
A extinção da dívida e a exoneração do devedor da respectiva obrigação, previstas nos §§ 4º e 5º, deste artigo, aplica-se tão somente às operações de financiamento imobiliário, não se estendendo, em hipótese alguma, a qualquer outra modalidade de financiamento na qual se utilize contratualmente da alienação fiduciária em garantia.
Por sua vez, no projeto de nº 4.714/2016, de mesma autoria, apenso ao projeto acima mencionado, além de alterar o teor do § 5º do art. 27, pretende o acréscimo de parágrafo visando ressalvar a aplicabilidade do perdão da dívida às operações de financiamento não habitacional, bem como de autofinanciamento promovidas por grupos de consórcio. Vejamos: “No caso de financiamento de imóvel habitacional, se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ao superior ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º“.
Por sua vez, ter-se-ia, no projeto, no § 8º: “As disposições dos §§ 5º e 6º deste artigo não se aplicam ao financiamento não habitacional e às de autofinanciamento realizados por grupos de consórcios”.
A matéria, portanto, com relação ao mercado financeiro, ainda é controvertida.
Que falar da aquisição do bem na alienação fiduciária em garantia?
A Quarta Turma, no julgamento do REsp 881.270, apreciou uma questão em que uma pessoa que detinha a posse de um automóvel sem a ciência da financeira pretendia ver reconhecido o usucapião sobre o bem. A Turma pacificou o entendimento de que a transferência a terceiro de veículo gravado como propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), é ato de clandestinidade incapaz de motivar a posse (art. 1.208 do Código Civil de 2002), sendo, por isso, impossível a aquisição do bem por usucapião.
Com relação ao veículo com defeito financiado, já decidiu o STJ, no REsp 1.014.547, que a instituição financeira não é responsável pela qualidade do produto adquirido por livre escolha do consumidor mediante financiamento bancário. Com esse entendimento, a Quarta Turma reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) que condenou um banco em processo envolvendo a compra de um automóvel.
IX – O USUFRUTO COM FIM DE GARANTIA
A noção de garantia é estranha ao usufruto. Se a quem tem direito real de garantia outorgou-se uso e fruição sobre o imóvel, o instituto que se configura é o da anticrese. A anticrese é transmissível entre vivos e a causa de morte; o usufruto não o é.
Para Pontes de Miranda (ob. cit., p. 283), fala-se no usufruto com fim de garantia (usufruto de segurança).
O usufruto fiduciário não é um usufruto sucessivo.
O usufruto sucessivo é o usufruto posterior a outro usufruto. Admitido que a outorga de usufruto se possa fazer com cláusula sucessiva (termo ou condição), o usufruto sucessivo é o usufruto que somente se inicia com o advento da condição ou termo depois de ter extinguido usufruto que o precedia.
Trata-se de um usufruto sob condição inicial ou sob termo inicial, se outro usufruto há. O usufruto que há, como ensinou Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, v. XII, p. 209), ou usufruto precedente, tem de extinguir-se para que possa iniciar-se outro.
A constituição de usufruto por parte de nu-proprietário, como por parte do dono do prédio enfitêutico, é constituição a termo inicial ou condição inicial que se estabelece com a extinção do usufruto ou da enfiteuse.
O usufruto fiduciário não oferece qualquer particularidade em relação às outras fidúcias. A propriedade, finda a fiduciação, consolida-se.
Pode haver fidúcia, sem haver garantia ou segurança, como pode haver garantia ou segurança, sem haver fidúcia. O que é essencial ao usufruto de segurança, como revelou Pontes de Miranda, é que haja a causa solvendi. O usufruto com que se solveu, o usufruto pelo qual se deu em soluto, não é usufruto de segurança: foi apenas o objeto da datio in solutum.
A dação em pagamento (datio in solutum) não deve ser confundida com a dação pro solvendo, que não extingue a obrigação, mas apenas facilita o seu cumprimento. A dação pro solvendo ocorre na dação de um crédito sem extinção da dívida originária, que, ao contrário, é conservada, suspensa ou enfraquecida. Havendo datio pro solvendo, a dívida primitiva só se extingue ao ser paga a nova.
Trata-se de forma de pagamento especial em que se dá coisa diversa do dinheiro para cumprimento da obrigação.
Se foi dado em soluto usufruto, a morte prematura do usufrutuário importa em que o valor dado foi inferior ao débito, mas não há pensar-se em haver resto da dívida. A dação em soluto extinguirá a dívida. Se foi dado usufruto, em segurança, a morte prematura deixa o devedor a dever o resto. Isto é, o que não foi solvido pelo exercício do usufruto.
O usufruto fiduciário e o usufruto com fim de garantia não são inconfiguráveis.
No ensinamento de Pontes de Miranda (ob. cit.), o usufruto fiduciário não oferece qualquer particularidade em relação às outras fidúcias, mas não é usufruto sucessivo. A propriedade, finda a fiduciação, consolida-se. É o que os alemães chamavam de fenômeno de elasticidade da propriedade, como expôs o Ministro Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia).
- Plank (Kommentar, III, 600; Schneider, entre outros) esteve contra o usufruto com fins de garantia.
Pontes de Miranda, na linha de Goldmann, K. Kober, entendeu o instituto perfeitamente construível no Direito brasileiro e no Direito alemão. Pode ser combinado ou não com a hipoteca – ainda que se trate de garantia sobre o imóvel em que se já se tem a anticrese.
Ou na constituição do usufruto: a) se determina que ele termina com a extinção da dívida que ele garante, ou se lhe deu outro prazo; b) maior; ou c) menor, e então ele subsiste ou acaba antes de se extinguir a dívida.
O usufruto de segurança tem implícito termo final, que é o da data da solução do débito. Dívida solvida, extinto o usufruto de segurança. Ou se deu valor ao tempo do exercício, de modo que a cada período corresponde prestação periódica, ou parcela da dívida; ou se fez o valor do uso e da fruição dependente de aplicação de algum critério estimativo.
O usufrutuário de segurança não pode executar a dívida enquanto está no exercício do usufruto. Está a pagar-se do crédito. Se o dono do bem dado em usufruto de segurança turba ou esbulha a posse do usufrutuário da segurança, ou lhe ofende o direito real de usufruto, competem-lhe as ações adequadas. A ação de turbação – manutenção (mandamental), a de esbulho-reintegração (executiva) e a de natureza preventiva (mandamental e preventiva).
O negócio jurídico básico não influi no usufruto de segurança se não lhe imprimiu, por meio do ato de constituição, alguma cláusula que seja compatível com o direito real de usufruto.
Não são atingidos com a constituição do usufruto de segurança os direitos dos credores preferentes por direito real de garantia. Como disse Pontes de Miranda, nem tal constituição impede que os créditos posteriores, por direito real, exerçam pretensões oriundas da insolvência do devedor.
A constituição fiduciária do usufruto pode ocorrer no mesmo caso em que ocorre a transmissão fiduciária do domínio, como afirmou Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, v. XIX, ed. Bookseller, p. 285). Extingue-se ele quando se extinguiria a propriedade para o dono fiduciário, se fosse caso de domínio.
O usufruto de segurança extingue-se: pela morte do usufrutuário; pelo termo de sua duração; pela cessação da causa em que se origina; pela consolidação, a partir da data do cancelamento; pela prescrição da ação do usufrutuário; pela culpa do usufrutuário, quando aliena, deteriora ou deixa arruinarem-se os bens.
A morte do usufrutuário extingue o usufruto de segurança.
X – A VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO
São distintas a transmissão da propriedade em segurança e a venda com domínio reservado.
Na transmissão da propriedade em segurança, o domínio passa ao outorgado; na venda com reserva de domínio, não. Nesta, a propriedade ainda não foi adquirida; está suspensa a aquisição. O que passou ao outorgado não é domínio, nem passou apenas o direito da obrigação; passou o direito ao uso e à posse, passou direito expectativo. É isso o que se penhora. A coisa vai a leilão, é penhorada, porque está na esfera do dono e na esfera jurídica do outorgado da venda com reserva de domínio. A venda com reserva de domínio é venda, com entrega da coisa e direito expectativo à aquisição.
A expectativa de direito consiste em um direito que se encontra na iminência de ocorrer, mas que não produz os efeitos do direito adquirido, pois não foram cumpridos todos os requisitos exigidos por lei. A pessoa tem apenas uma expectativa de ocorrer. Nesses casos, as novas regras podem incidir. É um direito sujeito à condição.
Já o direito expectado é aquele que já preencheu todos os requisitos para sua aquisição, mas, por discricionariedade, ainda não foi exercido.
Na compra com reserva de domínio, com o advento da condição, não mais se exige qualquer ato ou manifestação de vontade do vendedor. Por isso mesmo, não se transferiu a propriedade, o bem é do vendedor e sujeita-se à falência deste, mas se entenda que o comprador, em tal espécie, já tem algo de execução do contrato de compra e venda e certa eficácia do acordo de transmissão, como ensinou Pontes de Miranda (ob. cit., t. 21, p. 385).
Quando o vendedor da coisa móvel se reserva a propriedade até se lhe pagar o preço, ou todo o preço, o que se há de entender é que o acordo transmissão é sob condição suspensiva. Mas, se há a transmissão da propriedade em segurança e se atribui ao adquirente a posse imediata, tem ele a propriedade e posse.
A transmissão da propriedade mobiliária válida e eficaz persiste, ainda que o pacto subjacente (de segurança) não o seja.
Mas, se para o que tem de garantir dívida sua ou de outrem há conveniência em que lhe fique a posse imediata, os caminhos que tem, conforme ensinou Pontes de Miranda (ob. cit., v. 21, p. 389), são os de empenhar sem transmissão da posse imediata, e o de transferir a propriedade sem a posse imediata. Nesse caso, a transmissão da propriedade é em segurança, mas incondicional (no plano do direito das coisas, porque só aí é que se pode falar em transmissão da propriedade). O credor é obrigado a retransferir a propriedade do bem ao ver solvida a dívida, ou extinta por outra causa (condição suspensiva). Na propriedade resolúvel, a reversão é automática: a pretensão é a ação de restituição são reais.
No que concerne à transmissão de propriedade mobiliária, Pontes de Miranda (ob. cit., t. 21, p. 390) advertiu que todo acordo de transmissão trata-se de propriedade sobre bens móveis, é negócio abstrato. A transmissão poderia ser de propriedade resolúvel, com a condição (resolutiva) do pagamento da dívida, mas, em tal espécie, não haveria a transmissão da propriedade em segurança.
Como negócio jurídico, nos direitos das obrigações, incidem as causas de nulidade e anulabilidade do Código Civil, incidindo, outrossim, as causas de ineficácia e invalidade que já ocorriam na falência.
XI – NEGÓCIO JURÍDICO INDIRETO
Diferente do negócio fiduciário, segundo a construção romana ou a de Dernburg, é o negócio jurídico indireto em sentido estrito, como ensinou o Ministro Moreira Alves (A retrovenda, 2ª ed., p. 8). Este se dá quando as partes recorrem a um negócio jurídico típico, sujeitando-o à sua disciplina formal e substancial para alcançar um fim prático ulterior (o escopo da garantia que é motivo, e não a causa), o qual não é normalmente atingido por meio desse negócio.
No negócio jurídico indireto, em sentido estrito, as partes querem que ele produza todas as suas consequências jurídicas, mas para atingirem escopo que não se coaduna a essas consequências, não havendo, entretanto, como ocorre no negócio jurídico (segundo a construção romana ou a devida por Dernburg), questão de plus ou de minus entre as finalidades jurídica e econômica. No negócio fiduciário, sua finalidade é mais restrita do que a do negócio jurídico adotado, ao passo que, como revelou o Ministro Moreira Alves, o negócio jurídico indireto em sentido estrito, é ela apenas diferente.
O negócio fiduciário caracteriza-se principalmente pelo fato de que a relação negocial eleita pelas partes extrapola, em seus efeitos, aqueles desejados por elas. Isso tudo acontece com a consciência de ambas as partes de que existe esse excesso no negócio escolhido para a realização de suas vontades.
Veja-se o negócio jurídico indireto.
Na lição do Ministro José Carlos Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, 4ª ed., p. 5), o negócio se diz indireto quando as partes recorrem a um negócio jurídico típico, sujeitando-se à sua disciplina formal e substancial, para alcançar um fim prático ulterior (o escopo de garantia, que é motivo, e não causa), o qual não é o normalmente atingido por meio desse negócio. Tal é o caso da retrovenda.
Assim, a compra e venda tem como causa a troca de coisa por dinheiro, e, como escopo último (motivo) qualquer utilização da coisa pelo comprador como proprietário; já a compra e venda com o fim de garantia (negócio jurídico indireto) é uma compra e venda (negócio jurídico típico) em que a causa é a desta (troca da coisa por dinheiro), mas em que o escopo último (motivo) não é aquele a que normalmente se visa quando se celebra uma compra e venda (qualquer utilização da coisa pelo comprador como proprietário), mas o de a coisa adquirida servir ao seu proprietário como garantia do pagamento do crédito.
Há negócio jurídico indireto, segundo a maioria dos doutrinadores, quando se procura alcançar o escopo ulterior (a garantia) pela aposição de cláusula compatível com a estrutura substancial do negócio jurídico típico utilizado (por exemplo, uma condição resolutiva), ou, então, nos casos em que for possível, quando há o uso puro e simples do negócio jurídico utilizado, sem a aposição de qualquer cláusula que manifeste, em sua estrutura jurídica, o escopo da garantia a que ele se destina. Não se trata de negócio jurídico simulado.
Mas disse Cariota-Ferrara (El negocio jurídico, p. 273) que,
se o fim perseguido num caso concreto fica puramente como psicológico, ainda que seja comum a ambas as partes, não se pode falar em negócio jurídico indireto, inclusive se este consiste num fim estranho ao negócio utilizado. Ter-se-ão, portanto, as consequências próprias de cada negócio jurídico realizado por este ou por aquele motivo.
Ensinou o Ministro Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, 3ª ed., p. 3) que “o que é certo, portanto, é que, a partir, precipuamente, do século XIX, se tem sentido, cada vez mais, a necessidade da criação de novas garantias reais para a proteção do direito de crédito“. Isso porque as existentes nos sistemas jurídicos de origem romana – a hipoteca, o penhor e a anticrese – não mais satisfazem a uma sociedade industrializada, nem mesmo nas relações creditícias entre pessoas físicas.
Apesar de já se utilizar do pacto de reserva de domínio que, por meio da propriedade, garante o vendedor e possibilita o comprador de usar, imediatamente, da coisa, surgiram, no último quartel do século XIX, graças ao trabalho de juristas germânicos, secundados por italianos, as figuras do negócio jurídico fiduciário e do negócio jurídico indireto. Veio, com Regelsberger, o ponto de partida para a formulação moderna da teoria do negócio fiduciário. Em 1878, Kohler distinguia negócio jurídico indireto – negócio encoberto – do negócio jurídico simulado.
O negócio jurídico fiduciário e o negócio jurídico indireto são meios indiretos de garantia do crédito.