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ANÁLISE DA LEGITIMIDADE PASSIVA DO AGENTE PÚBLICO, EM AÇÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR DANO, NOS TRIBUNAIS ESTADUAIS CATARINENSE E GAÚCHO

ANÁLISE DA LEGITIMIDADE PASSIVA DO AGENTE PÚBLICO, EM AÇÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR DANO, NOS TRIBUNAIS ESTADUAIS CATARINENSE E GAÚCHO

Luiz Fernando Calegari

SUMÁRIO: Introdução; 1. A responsabilidade civil do Estado; 1.1 A possibilidade de responsabilização pessoal do agente estatal – Divergências doutrinárias; 2. Análise da jurisprudência brasileira; 2.1 Do precedente oriundo do STF; 2.2 Do precedente emanado pelo STJ; 3. Análise dos reflexos dos diferentes precedentes no entendimento dos tribunais estaduais de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho científico se prestará, de início, a realizar uma análise acerca da divergência doutrinária existente sobre a matéria de responsabilidade civil do Estado, mais especificamente no tocante à legitimidade do agente público para figurar no polo passivo de ação indenizatória ajuizada pelo terceiro prejudicado.

Assim, poderá se observar em que medida tal divergência fundamenta o dissídio jurisprudencial existente entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), uma vez que cada uma das mais altas Cortes brasileiras possui precedentes que operam em sentido diametralmente opostos. Daí, mais especificamente, o objeto do trabalho se pautará no exame minucioso das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, e em qual proporção a divergência de precedentes já citada pode estar causando insegurança jurídica sobre a matéria.

Desde logo, o presente artigo será dividido em três capítulos. O primeiro capítulo observará especificamente a teoria no que tange à responsabilização civil do Estado. O segundo capítulo se pautará em uma análise mais detida dos precedentes abertos pelo STF (RE 327.904) e STJ (REsp 1.325.862/PR). E, por fim, o terceiro capítulo examinará em que medida tais precedentes podem vir a estar causando julgamentos divergentes nos tribunais e, por conseguinte, insegurança jurídica ao jurisdicionado.

Ao final, tentar-se-á observar se a diferença de entendimentos entre STF e STJ efetivamente causa a insegurança jurídica acerca da matéria, e em que medida isso pode ter contribuído para que o STF reconhecesse a repercussão geral dela por meio do Recurso Extraordinário (RE) nº 1027633 – cujo julgamento está marcado para agosto de 2019 -, buscando-se verificar, ainda, caso constatada a insegurança jurídica mencionada, se tal iniciativa da Suprema Corte pode vir a contribuir para solver o problema. Para alcançar o desiderato científico proposto, o presente trabalho utilizar-se-á de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, buscando aprofundar-se na análise das decisões proferidas pelos Tribunais e, mais detidamente, na argumentação utilizada para sua fundamentação.

Assim, o objeto deste trabalho cientifico se pautará especificamente na análise dos fundamentos adotados nas decisões judiciais, e se tais fundamentos sofrem influência clara dos precedentes das Cortes superiores, analisando em que medida isto contribuiu para o reconhecimento da repercussão geral sobre a matéria e até que ponto a decisão a ser proferida pelo STF poderá vir a dirimir a insegurança jurídica eventualmente encontrada.

1 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Entende-se por responsabilidade civil do Estado como a obrigatoriedade, de origem patrimonial e extracontratual, que lhe é pertinente de realizar a reparação econômica dos danos causados à esfera de outrem e que sejam imputados ao próprio Estado, uma vez que decorrem de comportamentos caracterizados como unilaterais, podendo ser tanto comissivos quanto omissivos, sejam eles materiais ou jurídicos (Bandeira de Mello, 2010); tal responsabilidade está presente sempre que os danos são causados pelos agentes públicos, mas somente quando estes atuam em nome do próprio Estado (Alexandrino; Paulo, 2010).

Vale destacar que a Constituição Federal de 1988 assim dispõe, em seu art. 37, acerca da responsabilidade civil da Administração Pública:

  • 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Assim, da mesma forma que qualquer outro sujeito de direitos, a Administração Pública também pode ocupar o posto de causador de prejuízos a terceiros, o que faz surgir a sua obrigação de recompor os danos oriundos de sua ação, ou mesmo de sua abstenção, lesiva (Bandeira de Mello, 2010). Destarte, genericamente, a responsabilização civil do Estado consiste no seu dever de ressarcimento recompondo os prejuízos causados, por suas ações e/ou omissões, a terceiros. Nesta senda, há a responsabilização por danos materiais, abrangendo danos emergentes e lucros cessantes; há, também, a responsabilização por danos morais, destinada a atenuar o sofrimento moral causado ao terceiro lesado. Assim, em termos gerais, a responsabilização civil do Estado deriva de condutas próprias, ou, em outras palavras, condutas praticadas por agentes públicos responsáveis por manifestar a vontade estatal, não se excluindo, contudo, a possibilidade de responsabilização da Administração Pública por condutas alheias (Lei Federal nº 10.744/2003) (Justen Filho, 2006).

1.1 A possibilidade de responsabilização pessoal do agente estatal – Divergências doutrinárias

Como visto, a controvérsia paira sob a possibilidade de o agente público ser incluído no polo passivo diretamente pelo terceiro que sofreu o prejuízo ou, longe disso, a necessidade de o terceiro lesado ajuizar demanda indenizatória unicamente em face do Estado, mesmo que o dano tenha sido causado pelo agente público.

Isto porque o § 6º do art. 37 da Constituição Federal não é claro quanto a tal matéria – se, por um lado, o dispositivo legal assegura o direito de regresso ao Estado contra o agente causador do dano, por outro não limita expressamente que a demanda a ser ajuizada pelo terceiro prejudicado não possa incluir no polo passivo, desde logo, o próprio agente causador do dano. Isso fomenta entendimentos doutrinários dissonantes.

Antes de se adentrar no exame específico de tais divergências, faz-se preciso ressaltar que, majoritariamente, entende-se que a Constituição Federal consagrou como regra a teoria da responsabilização objetiva do Estado pelos danos causados a terceiros, aplicando-se a teoria subjetiva somente quando eventualmente se tiver que auferir a responsabilidade do agente público (Bacellar Filho, p. 2006).

Tal esclarecimento introdutório se fez necessário porquanto a disposição é também utilizada como forma de justificar o posicionamento de uma ou outra vertente doutrinária, como se verá a partir de agora.

Segundo uma primeira corrente doutrinária, consonante ensinamento de Bacelar Filho (2006), a Constituição Federal consolidou a aplicação da teoria objetiva nas relações jurídico-administrativas, de tal sorte que o elemento subjetivo detém tão somente aplicação em uma eventual tentativa de o Estado ajuizar a referida ação regressiva.

Dessa forma, ainda segundo o autor, após a vítima do dano restar indenizada (aplicando-se a teoria objetiva), admite-se que o próprio Estado possa buscar o ressarcimento desde que comprove que o agente público agiu com dolo ou culpa (quando exsurge a aplicação, então, da teoria subjetiva). Por conta disso, o terceiro lesado deveria, obrigatoriamente, buscar a reparação em face da própria Administração Pública – relação através da qual não se admitiria nem litisconsórcio, nem solidariedade -, e o agente somente responderia no caso de ajuizamento, pelo Estado, de ação regressiva com vistas a comprovar o seu dolo ou culpa.

Por outro lado, em sentido diametralmente oposto a este, há quem entenda que a Constituição Federal, ao enfrentar o tema da responsabilização civil do Estado, não pode ser interpretada de forma a restringir a possibilidade de o terceiro lesado vir a buscar a indenização em face da Administração Pública, ou, ainda frente ao agente causador do dano – aventando-se a possibilidade, também, de se indicar ambos (Administração Pública e agente público) para formarem o polo passivo da ação indenizatória.

Consonante ensinamento de Bandeira de Mello (2010), a escolha de acionar judicialmente tão somente a Administração Pública, ou apenas o agente público ou, ainda, se de acionar ambos, compete exclusivamente ao próprio vitimado. Aduz ainda o autor que o sujeito que não atende às obrigações por ele contraídas, ou mesmo os deveres a que estava obrigado legalmente a cumprir, deve sofrer a consequente responsabilização, uma vez que atua ilicitamente aquele que viola direito e causa dano a outro.

Vale dizer que o Código Civil brasileiro, por meio de seus arts. 186 e 927, preceitua que o agente capaz deve ser responsabilizado pelos seus atos – regramento que não se limita ao direito civil, mas que permeia a Teoria Geral do Direito como um todo, ainda que estejam encartados em diploma normativo aplicado mais especificamente às relações privadas.

Destarte, a aplicação dos preceitos civilistas a outros ramos, como a casos que necessitam de aplicação também do direito administrativo, é cogente, sendo que tal aplicação somente seria inviabilizada caso houvesse, neste último ramo, disposição que expressamente previsse a impossibilidade de ajuizamento de ação, pelo terceiro lesado, em face do agente causador do dano – como tal disposição não existe, é forçoso concluir que os agentes públicos devem responder com o próprio patrimônio, perante o agravado, se tiverem causado prejuízo atuando através de conduta contrária ao Direito (Bandeira de Mello, 2010).

A divergência de entendimentos ora debatida acaba refletindo-se, também, na prática. Isto porque, conforme se analisará a partir de agora, os tribunais brasileiros – das mais variadas instâncias – acabam por adotar os diferentes entendimentos para solucionar casos absolutamente semelhantes.

2 ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

Até aqui foi realizada uma breve análise doutrinária acerca das divergências que permeiam o tema da responsabilização civil do Estado por danos causados aos cidadãos. Isto ocorreu para que se forme um entendimento inicial sobre os fundamentos utilizados por cada uma das vertentes, tendo em vista que ambas acabam por interferir no entendimento proferido pelos tribunais brasileiros.

Sendo assim, agora, de forma mais específica, far-se-á uma análise acerca das decisões proferidas pelos tribunais estaduais sobre o tema, e de que forma as decisões são afetadas pelo posicionamento adotado pelas instâncias superiores, sempre se utilizando das fundamentações doutrinárias anteriormente debatidas.

Isto porque o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possuem precedentes que se posicionam em lados completamente opostos no que diz respeito a tal matéria, e o fazem de forma bem fundamentada, uma vez que, além dos posicionamentos dos próprios juízes, desembargadores e ministros brasileiros, ainda buscam amparo na doutrina do País para dar solidez ao seu posicionamento. 

2.1 Do precedente oriundo do STF

O STF, por meio do posicionamento emanado pelo então Ministro Carlos Ayres Britto, através do Recurso Extraordinário nº 327.904, em 2006, consolidou o entendimento de que o agente público causador de danos a terceiro não possui legitimidade para figurar no polo passivo da já aludida ação.

Ao se examinar o conteúdo do voto proferido pelo relator, quando este realizou o exame acerca do § 6º do art. 37 da Constituição Federal, percebe-se que, como dito alhures, ele utilizou a já mencionada fundamentação acerca das teorias objetiva e subjetiva no que diz respeito à responsabilização civil do Estado e, assim, chegou à conclusão da impossibilidade de ajuizamento de ação, pelo terceiro prejudicado, diretamente em face do agente público causador do dano. Veja-se, pois:

[…] a conclusão a que chego é única: somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns.

Quanto à questão da ação regressiva, uma coisa é assegurar ao ente público (ou quem lhe faça as vezes) o direito de se ressarcir perante o servidor praticante de ato lesivo a outrem, nos casos de dolo ou culpa; coisa bem diferente é querer imputar à pessoa física do próprio agente estatal, de forma direta e imediata, a responsabilidade civil pelo suposto dano a terceiros.

Nota-se, desde logo, que o posicionamento adotado pelo então ministro se dava no sentido de limitar as hipóteses de ajuizamento da ação indenizatória por atos praticados pela Administração Pública. O voto do relator contou, ainda, com argumentação acerca do princípio da impessoalidade ao afirmar que a ação de ressarcimento deveria ser movida somente contra a Fazenda Pública ou a pessoa jurídica privada prestadora de serviços públicos, e não diretamente em face do agente causador do dano.

O Relator, Ministro Carlos Ayres Brito, ainda nomeou o regramento normativo exposto no dispositivo constitucional supramencionado como “dupla garantia“, nos seguintes termos:

Vê-se, então, que o § 6º do art. 37 da Constituição Federal consagra uma dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente, perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular.

Ademais, percebe-se também que o posicionamento adotado vai ao encontro do entendimento doutrinário já analisado no sentido de que a Carta Magna somente tratou de analisar a responsabilidade civil do Estado sob o prisma de duas teorias diferentes (objetiva e subjetiva), não abrindo a possibilidade de o terceiro lesado poder escolher em face de quem gostaria de litigar, mas, em sentido inverso, determinando que o lesado somente poderia demandar frente à Administração Pública, cabendo apenas a esta o direito de se ver ressarcida, comprovado o dolo ou a culpa, pelo agente causador do dano.

Tal decisão passou a servir de embasamento para outras decisões proferidas pelo próprio STF ao analisar casos semelhantes. Por exemplo, o julgamento, pela Segunda Turma, em março de 2016, do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 908.331/RS, cujo relator foi o Ministro Dias Tóffoli.

Além disso, em agosto de 2016, o mesmo precedente foi utilizado também pelo Ministro Luís Roberto Barroso, relator do Segundo Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 593.525/DF, julgado pela Primeira Turma. Indo mais a fundo, o relator expressamente assentou, mencionando o voto do então Ministro Carlos Ayres Brito, que a Carta Magna brasileira consagrou tanto a garantia de o particular processar o Poder Público pelos danos causados por agentes públicos, quanto outra garantia exclusivamente em favor do próprio agente público, que somente pode responder perante a pessoa jurídica estatal à qual esteja vinculado.

Veja-se, portanto, que tanto a Primeira quanto a Segunda Turma do STF filiaram-se ao posicionamento adotado pelo então Ministro Ayres Britto, de tal forma que, em tese, perante a Suprema Corte, a matéria parecia estar pacificada no sentido de entender não ser possível o ajuizamento de ação indenizatória pelo terceiro lesado, buscando a reparação civil, diretamente em face do agente público.

2.2 Do precedente emanado pelo STJ

Apesar de o STF ter consolidado o entendimento acima mencionado, uma nova decisão, proferida agora por ministro do STJ, inflamou novamente o debate, uma vez que proferida em sentido oposto ao adotado pela Suprema Corte.

Em precedente aberto pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, por meio do julgamento do REsp 1.325.862/PR, no qual era relator, aventou-se a possibilidade de a ação ser proposta diretamente contra o agente público causador do dano. Extrai-se de seu voto:

Com o devido respeito ao entendimento diverso, penso que a melhor solução está mesmo com os antigos, em franquear ao particular a possibilidade de ajuizar a ação diretamente contra o servidor, suposto causador do dano, contra o Estado ou contra ambos, se assim desejar.

Justificando o seu posicionamento também através de novos argumentos, continuou o relator:

Assim, a avaliação quanto ao ajuizamento da ação contra o servidor público ou contra o Estado deve ser decisão do suposto lesado. Se, por um lado, o particular abre mão do sistema de responsabilidade objetiva do Estado, por outro também não se sujeita ao regime de precatórios, os quais, como é de cursivo conhecimento, não são rigorosamente adimplidos em algumas unidades da Federação.

Nota-se, portanto, que o entendimento proferido pelo ministro do STJ – cujo teor não gerou divergências perante os demais ministros que compunham o julgamento – correu em sentido absolutamente contrário ao entendimento adotado pelo STF.

Ou seja, no que diz respeito ao instituto oriundo do direito civil em si, não havia dúvidas de que aquele que foi prejudicado por dano causado por outrem deveria, sim, ser indenizado, conforme preceituam os arts. 186 e 927 do Código Civil brasileiro. A discrepância de entendimentos, no entanto, residia tão somente na possibilidade (ou não) de o lesado se ver ressarcido diretamente pelo agente causador do dano. Vale salientar ainda que o posicionamento acima mencionado trata-se de um precedente aberto pela Corte, mas não era entendimento unânime no próprio STJ, existindo ministros que seguiam a mesma linha de entendimento do STF, a exemplo do que pode ser visto na Decisão Monocrática no Recurso Especial nº 1.485.663/BA.

Como se verá a partir de agora, a divergência de precedentes emanados pelas mais altas Cortes brasileiras refletiu-se nitidamente nos julgamentos proferidos pelas instâncias inferiores.

3 ANÁLISE DOS REFLEXOS DOS DIFERENTES PRECEDENTES NO ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS ESTADUAIS DE SANTA CATARINA E DO RIO GRANDE DO SUL

Examina-se, agora, a possibilidade de os diferentes precedentes influenciarem as decisões dos Tribunais de Justiça de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul -, o que pode fazer surgir a insegurança jurídica no que diz respeito à matéria. Ao realizar a pesquisa jurisprudencial sobre a matéria, pôde-se perceber que os tribunais estaduais reconhecem a existência de divergência de entendimento entre STF e STJ, mas, ao invés de buscarem a pacificação da matéria, utilizam como base ora um dos precedentes, ora outro, para fundamentar o entendimento que, pessoalmente, consideram mais adequado – evidência da ocorrência de insegurança jurídica, portanto.

Por meio do voto proferido pelo Relator da Apelação Cível nº 2013.071832-7, Desembargador Eládio Torret Rocha, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, esse reconhecimento de divergências doutrinárias e jurisprudenciais fica claro, assim como também resta nítido o fato de o julgador poder se filiar a uma ou a outra corrente de pensamento. Extrai-se de seu voto:

Inobstante sobre o tema da legitimação para figurar no polo passivo da ação de responsabilidade por ato estatal gravite acentuada controvérsia no plano jurisprudencial e doutrinário – a endossar, aliás, ambas as teses antepostas pelos litigantes em suas manifestações -, penso, com estribo no que me parece a mais adequada exegese constitucional aplicada ao caso subjacente, que razão assiste ao apelante. […]

A resposta à indagação, como deduzido anteriormente, ainda não restou assentada de forma definitiva tanto na expressão doutrinária da ciência administrativista quanto na experiência jurisprudencial das Cortes Superiores do nosso País.

Nota-se que o próprio julgador reconheceu que ambos os entendimentos doutrinários – seja pela possibilidade ou pela impossibilidade de o lesado demandar diretamente em face do agente causador do dano – podem ser utilizados para fundamentar diferentes teses. Ou seja, se a matéria não está pacificada (nem doutrinariamente, nem perante as mais altas Cortes), e cabe ao juiz ou ao desembargador, de acordo com seu próprio entendimento, emanar a decisão que mais se coadunar com seu posicionamento particular – destaca-se que o próprio desembargador relator do processo acima referenciado deixa claro que aplicará a tese que “mais lhe parece adequada“.

Desta forma, o desembargador relator profere a decisão filiando-se ao entendimento que mais lhe parece correto, de tal sorte que afirma que, na sua opinião, a melhor interpretação constitucional é ampliativa e dirigida em favor do próprio administrado, não estando voltada a restringir-lhe o direito de ação, nem podendo relegar a responsabilização do agente público para o distante e hipotético campo da ação regressiva.

Vê-se, portanto, que, reconhecendo a existência de divergências entre as duas correntes de posicionamento, o relator entendeu que o mais apropriado seria a possibilidade de ajuizamento da decisão diretamente em face do agente público causador do dano – a divergência é tão nítida que tal decisão acabou por reformar o entendimento proferido pelo juízo singular, que havia entendido pela ilegitimidade.

Outra decisão no mesmo sentido foi proferida na Apelação Cível nº 2011.066031-2, cujo relator, Desembargador Artur Jenichen Filho, posicionou-se afirmando que a responsabilidade objetiva do Estado não exclui a hipótese de o administrado demandar diretamente em face do agente público causador do dano, sendo que, nesse caso, há de se aplicar a cláusula geral da responsabilidade subjetiva.

Nessa mesma esteira, há entendimento proferido em decisão oriunda do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Nos autos do Recurso Inominado julgado no Processo nº 0005719-79.2014.8.21.9000, a relatora, Dra. Marta Borges Ortiz, novamente citando o precedente oriundo do STJ, reconheceu a legitimidade do agente público causador do dano para integrar o polo passivo da demanda, asseverando que estava configurada a legitimidade “do réu que responde diretamente pelo prejuízo causado à autora, ainda que a conduta valorada decorra do exercício da função de agente de trânsito“. Não se trata, pois, de entendimento isolado, tendo em vista que o mesmo posicionamento pode ser observado em diversas decisões proferidas agora no ano de 2018, como a Apelação Cível nº 70073604423 e a Apelação Cível nº 70074122573.

Veja-se que foram destacadas diversas decisões oriundas do TJSC e do TJRS que operam no sentido de adotar o posicionamento oriundo do STJ, possibilitando ao jurisdicionado que ajuíze ação diretamente em face do agente público causador do dano. Como visto, reconhecendo a existência de divergência jurisprudencial, os julgadores optavam por filiar-se a tal vertente unicamente por conta de seu próprio posicionamento particular; todavia, também adotando posicionamentos pessoais, outros julgadores dos mesmos TJSC e TJRS proferem decisões bem fundamentadas, mas em sentido diametralmente oposto.

Por exemplo, a decisão emanada quando julgada a Apelação Cível nº 70077212207 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Através de excerto extraído do voto do relator, Desembargador Eugênio Fachini Neto, percebe-se claramente que foi adotado o precedente oriundo do STF, inclusive sendo citado o sistema de “dupla garantia“, assim denominado pelo então Ministro Ayres Brito:

Nas hipóteses regidas por esse dispositivo constitucional, o ente público ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, como é o caso, responde direta e objetivamente pelos danos causados por seus agentes. Estes, porém, só responderão perante aqueles órgãos, na via regressiva, caso tenham agido com dolo ou culpa. É o chamado sistema da dupla garantia.

Ou seja, em um mesmo Tribunal (TJ-RS), observam-se duas decisões que operam em sentidos absolutamente opostos, a depender exclusivamente do entendimento adotado pelo julgador do caso em concreto. Outras decisões no mesmo sentido (ilegitimidade do agente público), também proferidas pelo TJRS, podem ser examinadas nos autos da Apelação Cível nº 70077452688, da Apelação Cível nº 70075682765, da Apelação Cível nº 70077065894 e da Apelação Cível nº 70076790708.

Analisando, agora, outras decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, percebe-se que a adoção dos diferentes posicionamentos também é recorrente. Por exemplo, no corpo do acórdão proferido, em 2018, nos autos da Apelação Cível nº 0026185-21.2013.8.24.0020, o Desembargador Relator Paulo Henrique Moritz Martins da Silva citou expressamente o sistema de “dupla garantia“. O mesmo posicionamento pode ser observado na Apelação Cível nº 2013.022141-5 e a Apelação Cível nº 2012.017618-6.

Percebe-se, portanto, que, no âmago dos Tribunais de Justiça catarinense e gaúcho, é possível que se encontrem decisões em sentidos totalmente opostos, sempre fazendo referência aos precedentes emanados pelo STF e pelo STJ, o que traz a insegurança jurídica às decisões proferidas, tendo em vista que casos idênticos acabam por receber tratamento completamente diferenciado.

CONCLUSÃO

Ante o que foi exposto, foi possível notar que a diferença de entendimento acerca da mesma matéria existente nas mais altas Cortes do país tornou-se um problema em potencial para a segurança jurídica das decisões. Um reflexo disso foi o fato de o STF ter reconhecido a repercussão geral da matéria através do RE 1027633. O legislador brasileiro somente definiu a repercussão geral a partir da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/2015), quando ficou estabelecido que, de acordo com seu art. 1.035, § 1º, a repercussão geral pode ser reconhecida quando houver questão relevante do ponto de vista jurídico, econômico, político ou social que ultrapasse os interesses subjetivos do processo.

 No presente caso, o reconhecimento da repercussão geral sobre a matéria é um claro reflexo de relevância jurídica, tendo em vista que não são poucas as decisões oriundas dos mesmos Tribunais que, ao invés de trazer a segurança ao jurisdicionado, dependem sempre do entendimento particular do Magistrado.

Se a legislação não foi clara ao tornar possível ou impossível o ajuizamento de ação indenizatória diretamente em face do agente causador do dano, faz-se necessário, agora, que a mais alta Corte brasileira fixe o entendimento que deverá ser seguido por todos os Tribunais pátrios, minimizando a possibilidade de que haja julgamentos totalmente diferentes quando a análise recair sobre casos idênticos.

Acertada, portanto, a decisão do STF ao reconhecer a repercussão geral da matéria, sendo que, em não havendo qualquer medida legislativa para solver o problema, cabe ao próprio STF a responsabilidade pela pacificação da matéria, o que poderá fazer com que as decisões a serem proferidas a partir daí, por todos os Tribunais, sejam uniformes e tragam a segurança necessária às relações jurídicas.

REFERÊNCIAS

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______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Código Civil. Brasília. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 10 ago. 2018.

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______. Recurso Extraordinário nº 327.904-1/SP. Relator Ministro Carlos Ayres Britto. DJ 08.09.2006.

______. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 1027633/SP. Relator Ministro Marco Aurélio. DJe 21.11.2017.

______. Segundo Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 593.525/DF. Relator Ministro Roberto Barroso. DJe 10.10.2016.

STJ. Acórdão no Recurso Especial nº 1.325.862/PR (2011/0252719-0). Relator Ministro Luis Felipe Salomão. DJe 10.12.2013.

______. Decisão Monocrática no Recurso Especial nº 1.485.663/BA (2013/0298952-4). Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. DJe 30.11.2017.

TJSC. Apelação Cível nº 2012.017618-6, da Capital. Rel. Des. José Volpato de Souza. J. 29.08.2013.

______. Apelação Cível nº 2013.071832-7, de Blumenau. Quarta Câmara de Direito Civil. Relator Desembargador Eládio Torret Rocha. J. 03.07.2014.

______. Apelação Cível nº 2013.022141-5, de Caçador. Quarta Câmara de Direito Civil. Relator Desembargador Joel Figueira Júnior. J. 07.05.2015.

______. Apelação Cível nº 2011.066031-2, de Santo Amaro da Imperatriz. Primeira Câmara de Direito Civil. Relator Desembargador Artur Jenichen Filho. J. 11.06.2015.

______. Apelação Cível nº 0026185-21.2013.8.24.0020, de Criciúma. Primeira Câmara de Direito Público. Relator Desembargador Paulo Henrique Moritz Martins da Silva. J. 19.06.2018.

TJRS. Recurso Inominado nº 0005719-79.2014.8.21.9000. Primeira Turma Recursal Cível. Relatora Desembargadora Marta Borges Ortiz. DJ 18.09.2014.

______. Apelação Cível nº 70073604423. Décima Primeira Câmara Cível. Relator Desembargador Guinter Spode. DJ 13.06.2018.

______. Apelação Cível nº 70074122573. Décima Câmara Cível. Relator Desembargador Paulo Roberto Lessa Franz. DJ 11.05.2018.

______. Apelação Cível nº 70077212207. Nona Câmara Cível. Relator Eugênio Fachini Neto. DJ 11.07.2018.

______. Apelação Cível nº 70075682765. Nona Câmara Cível. Relator Desembargador Carlos Eduardo Richinitti. DJ 04.06.2018.

______. Apelação Cível nº 70076790708. Décima Segunda Câmara Cível. Relator Desembargador Umberto Guaspari Sudbrack. DJ 14.05.2018.

______. Apelação Cível nº 70077452688. Nona Câmara Cível. Relator Desembargador Tasso Caubi Soares Delabary. DJ 13.06.2018.

______. Apelação Cível nº 70077065894. Sexta Câmara Cível. Relator Desembargador Niwton Carpes da Silva. DJ 24.05.2018.