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ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA: PRINCIPAIS ESPÉCIES E SUAS PARTICULARIDADES

Giovanny Pereira Pinheiro

Washington Luís Batista Barbosa

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA – CONCEITO E EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

A alienação fiduciária em garantia estabelece uma propriedade resolúvel em nome do credor ficando o devedor, em regra[1], na posse da coisa dada em garantia. Uma vez quitada a obrigação pelo devedor, a propriedade consolida-se em seu nome. Por outro lado, caso inadimplida a obrigação, a lei prevê mecanismos para a satisfação do crédito inadimplido.

A esse respeito, confira-se a doutrina de Fábio Ulhoa:

“Por esse contrato, cujas raízes se encontram no direito romano (Restiffe Neto, 1975:1), o credor (fiduciário) se torna titular da propriedade resolúvel da coisa e seu possuidor indireto, enquanto o devedor (fiduciante) é investido na condição de possuidor direto e depositário (CC, arts. 1.361, § 2º, e 1.363). Cumprida a obrigação que esse tem perante aquele, opera-se a resolução da propriedade: o sujeito que era devedor passa a ser o proprietário pleno e único possuidor da coisa, e o que era credor deixa de titularizar qualquer direito real sobre ela. Não cumprida a obrigação, porém, tem o credor instrumentos ágeis e eficazes para ver satisfeito seu crédito. Sendo o proprietário e possuidor indireto do bem objeto da alienação fiduciária em garantia, o credor pode, nas condições da lei, obter a consolidação da propriedade, vendê-lo e pagar-se com o produto da venda”[2].

A introdução da alienação fiduciária em garantia, no direito brasileiro, se deu por meio da lei 4.728, de 14 de julho de 1965, a qual disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento. Posteriormente, o decreto-lei 911, de 1º de outubro de 1969 aperfeiçoou a definição e a aplicabilidade do instituto, instituindo, inclusive, a prisão do devedor, por ficção legal ao depositário fiel.

Mais tarde essa prisão foi julgada inconstitucional pelo STF, com base na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), cuja adesão pelo Brasil se deu em 1992, haja vista o caráter supralegal do referido diploma normativo internacional[3].

Referido entendimento culminou na edição da sumula vinculante 25 que dispõe que é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. Atualmente, portanto, a prisão civil do depositário infiel encontra-se superada nas cortes de justiça de todo o país.

Feito esse breve parêntese acerca da atual impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, conclui-se que inicialmente a legislação previa a aplicação da alienação fiduciária tão somente para bens móveis.

Após aproximadamente 30 anos, a lei 9.514, de 20 de novembro de 1997[4] finalmente instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel, dispondo em seu artigo 22, que a alienação fiduciária regulada por esta lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

Referido diploma legal, em seu artigo 17, também elevou a alienação fiduciária de coisa imóvel ao patamar de direito real.

Outra importante inovação trazida pela lei 9.514/97, foi a desmistificação de quem poderia ser parte nesse contrato. Isso porque, a lei 4.728/65 deixava dúvidas acerca do seu campo de aplicação, havendo posicionamentos divergentes na doutrina acerca da aplicação da alienação fiduciária em garantia apenas para as instituições bancárias. Por todos, defendendo a aplicação apenas às instituições bancárias, Flávio Tartuce:

“Do ponto de vista da incidência das normas, frise-se que todas as leis especiais referentes à propriedade fiduciária de bens móveis, contidas na lei 4.728/65 e no decreto-lei 911/96, são aplicáveis apenas às instituições financeiras e pessoas jurídicas equiparadas, caso das empresas de consórcio, e, portanto, as demais pessoas físicas ou jurídicas não podem celebrar alienação fiduciária em garantia. De qualquer modo, o Código Civil de 2002 possibilita a qualquer pessoa física ou jurídica a celebração de negócio jurídico pelo qual se dá em garantia certo bem móvel e infungível como propriedade fiduciária. Assim, a codificação tem incidência para as alienações fiduciárias de bens móveis celebradas por outras pessoas, que não as instituições financeiras (…)

Constata-se que a compreensão do instituto passa por uma interação necessária entre os citados comandos legais, a par da ideia de diálogo das fontes. A respeito dessa integração legislativa, é claro o art. 1.368- A do CC/02, incluído pela lei 10.931/04, ao prever que as demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária não previstas pela codificação submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais. Enuncia, ainda, o comando que somente se aplicam as disposições do CC/02 naquilo que não for incompatível com a legislação especial. Em suma, a codificação privada tem caráter subsidiário em relação à tipologia do instituto”[5].

Em sentido contrário, Maria Helena Diniz, Caio Mário da Silva Pereira e José Carlos Moreira Alves, todos citados por Fábio Ulhoa Coelho, defendem a generalização da alienação fiduciária em garantia. Confira-se:

“Concluindo, a alienação fiduciária em garantia não é um negócio exclusivo de instituição financeira, por não se enquadrar sua estrutura no conceito do art. 17 da LRB. A sua natureza, como a de todo e qualquer contrato de garantia, é meramente instrumental, de negócio- meio. Dessa forma, pode estar associada a qualquer tipo de mútuo, bancário ou não. Em suma, a função econômica da alienação fiduciária em garantia não está abrangida pela atividade de coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, essência da atividade bancária. Em decorrência, pode ser proprietário fiduciário qualquer pessoa física ou jurídica. Confirma-o a circunstância de o Código Civil, ao dispor as normas gerais do instituto (art. 1.368-A), não exigir do credor fiduciário o atendimento à condição de ser uma instituição financeira[6].”

Portanto, a lei 9.514/97 caminhou bem ao definir seu campo de aplicação de forma categórica, dispondo, em seu artigo 22 parágrafo primeiro, que a alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no Sistema Financeiro Imobiliário.

Posteriormente, a lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (“Código Civil“)10, em seus artigos 1.361 e seguintes, incluiu, no campo dos direitos reais, a propriedade fiduciária. Com base nesta propriedade, portanto, é que se constitui o contrato de alienação fiduciária em garantia.

Verificadas as principais legislações que tratam do tema, passa-se à avaliação dos bens passíveis de alienação fiduciária, bem como das peculiaridades acerca do desdobramento da posse em cada espécie de alienação fiduciária aqui tratada.

[1] Pelo regramento constante do parágrafo terceiro do artigo 66-B da lei 4.728, de 14 de julho de 1965, a posse direta e indireta do bem fica, em regra, em posse do credor, conforme se verá adiante.

[2] Coelho, Fábio Ulhoa – Curso de direito civil, volume 4 : direito das coisas, direito autoral / Fábio Ulhoa Coelho. – 4. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012.

[3] RE 466343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.08, DJe de 5.6.2009.

[4] Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.

[5] Tartuce, Flávio – Direito civil, v. 4 : direito das coisas / Flávio Tartuce. – 6. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

[6] Coelho, Fábio Ulhoa – Curso de direito civil, volume 4 : direito das coisas, direito autoral / Fábio Ulhoa Coelho. – 4. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012.