AINDA PRECISAMOS FALAR SOBRE O ABUSO DE DIREITO (PARTE 2)
Fábio Carvalho de Alvarenga Peixoto
Tratei, na primeira parte desta coluna, sobre o traço comum das tradições franco-belga e germânica: a concepção abstrata de Tatbestände permissivos, aos quais se ligam consequências jurídicas também permissivas. A dogmática de abuso de direito (uma dogmática de utilização) serve para “atalhar” uma justificação complexa: a da valoração de que um comportamento abstratamente permitido (licitude típica) é concretamente proibido (ilicitude atípica).
Param aí as coincidências entre as duas tradições. As diferenças entre o abuso de direito franco-belga (abus de droit) e o abuso de direito germânico (allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung) são tão marcadas quanto aquelas, de modo geral, entre as duas culturas jurídicas.
A tradição franco-belga de abus de droit
Começo com a tradição franco-belga de abus de droit. O primeiro registro de menção jurisprudencial explícita ao abus de droit está na decisão Clement-Bayard (Corte de Cassação francesa, 3 ago. 1915), que adota uma concepção aparentemente simples: abusa de um direito aquele, a quem a lei atribui uma potestade por interpretação ‘em abstrato’ do texto normativo, que concretamente o exerce com a finalidade de causar dano a outrem.[1]
É a abordagem que intitulo de abuso de direito por intencionalidade danosa. Desde logo, no entanto, já se percebeu que nem toda intencionalidade danosa poderia caracterizar o abuso de direito: há direitos que, por si só, servem para causar danos (pense-se no direito à greve, no direito à convocação de boicotes, e no direito à livre concorrência). O próprio Louis Josserand, assim, procurou diferenciar os direitos causados (abusáveis) dos direitos não causados (não abusáveis).
A diferença, para Josserand, seria o texto normativo. Josserand, no entanto, acaba parando em um beco sem saída dogmático, ao tentar justificar que o artigo 173 do Código Civil francês (“O pai, a mãe e, na ausência de pai ou mãe, os avós podem se opor ao casamento de seus filhos e descendentes, mesmo que sejam maiores de idade”)[2] veicularia um direito não abusável, enquanto o art. 544 (“A propriedade é o direito de fruir e dispor das coisas da maneira mais absoluta”)[3] veicularia um direito abusável:[4] se há algo que caracterize um dos direitos como abusável e o outro como não abusável, esse algo certamente não está nos textos normativos (mesmo porque o direito de propriedade, que textualmente pode ser exercido “da maneira mais absoluta”, é justamente o exemplo “clássico” de direito abusável).
Como Virgilio Giorgianni bem expõe, a categorização de Josserand “sugere uma contaminação singular da consideração formal do direito subjetivo e uma consideração dogmática ou interpretativa dele”.m[5] Em uma adequada consideração dogmática, falham todas as doutrinas de intencionalidade danosa (como falham, em geral, todas as doutrinas de abus de droit): elas não apresentam critérios para identificação de quando um direito pode ser exercido com intenção de causar dano, e quando não pode.
A segunda abordagem típica da tradição de abus de droit, de desvio de finalidade (classificação na qual incluo também as doutrinas abertamente moralistas e as axiologistas originadas em Giorgianni, e muito seguidas na literatura portuguesa), incide no mesmo problema. Josserand propõe, para identificação da finalidade de cada direito, que se busque o “motivo legítimo”, que seria o “precipitado visível” do “critério abstrato” da destinação social. [6]
Já no início do século 20, René Demogue criticava a falta de avanço metódico dessa abordagem: “A teoria do abuso tem sido criticada pela variedade e imprecisão de suas fórmulas. Fala-se da intenção de prejudicar, que deve ser abandonada por ser de alcance muito geral, fala-se então de falta de interesse, mas essa fórmula pareceria muito ampla porque qualquer pessoa pode invocar um interesse, uma conveniência pessoal. Finalmente, tentar-se-ia falar de motivo legítimo, não havendo nada mais vago, além de a legitimidade poder variar com o tempo. Haveria então uma evolução em um sentido restritivo sem se chegar a nada de satisfatório”.[7] Essa falta de interesse no estabelecimento de critérios concretamente aplicáveis continua sendo, até hoje, uma marca das doutrinas franco-belgas de abus de droit, que seguem empenhadas em estabelecer tão somente um princípio de vedação ao abuso no mais alto nível de abstração.[8]
A tradição franco-belga de abus de droit caracteriza-se, assim, por uma abordagem definitória do abuso de direito (i.e., por uma abordagem que pouco ou nada se preocupa em estabelecer critérios para a identificação concreta de abusos como limites ao exercício dos direitos, e do correspondente controle dogmático dessa identificação: a “Schranken(Kontroll-)function [função de (controle dos) limites]”[9]).
Essa tradição de abus de droit exerceu uma influência bastante marcada na Alemanha, onde se desenvolveu como ideia de allgemeinen Rechtsmißbrauchsvorbehalts [reserva geral de abuso de direito], principalmente sob a liderança de Wolfgang Siebert (em uma primeira fase: Siebert I), e onde participou ativamente do projeto nazista (daí se falar no “passado marrom” das doutrinas de abuso de direito). Siebert I chegou a propor no seu esboço para um Volksgesetzbuch [Código do Povo], um dispositivo que estabelecia que:
“O abuso de direitos não se encontra juridicamente protegido. Em particular, age abusivamente […] quem na execução prossegue com uma rigidez que é grosseiramente contrária ao senso comum do povo”.[10] Esse dispositivo não chegou a ser necessário, porque a irrupção do “senso comum” nazista nas cláusulas gerais do Código Civil alemão foi um caminho mais fácil: segundo o próprio Siebert I: “A insegurança jurídica na aplicação das cláusulas gerais diminuirá mais e mais, quanto mais forte e segura for a concepção nacional-socialista alemã do Direito”.[11]
A tradição alemã de unzulässige Rechtsausübung
Com a queda do nazismo, Siebert viu-se obrigado a reformular completamente sua doutrina de abuso de direito. Em seus comentários ao § 242 do Código Civil alemão na edição de 1952 do Soergel Kommentar, o “novo” Siebert (agora: Siebert II) passou a demonstrar notável empenho na formulação de grupos de casos de aplicação das cláusulas gerais: segundo ele próprio, era necessário prevenir-se o perigo de que “a segurança jurídica seja minada pela falta de previsibilidade, e que o senso de equidade do juiz, até e incluindo a arbitrariedade, tome o lugar de normas gerais e claras”.[12] Quanta diferença para o juiz que deveria, para Siebert I, ser guiado pela ideologia nazista…
A proposta de formulação dos grupos de casos como controladora das cláusulas gerais (atribuída não apenas a Siebert II, mas também a Josef Esser e a Franz Wieacker) é justamente o marco da virada de uma abordagem definitória do abuso de direito, onde estão tanto o abus de droit de Josserand e o Rechtsmißbrauch de Siebert, para uma abordagem sistematizadora: a abordagem tipicamente germânica de allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung [proibição geral de exercício inadmissível do direito].
Otavio Luiz Rodrigues Jr. pontua que o poder conferido pelas cláusulas gerais aos juízes deve obrigar os juristas, em contrapartida, a “um permanente esforço para se conferir contornos e der concretude às cláusulas gerais em sua aplicação aos casos práticos”.[13] Não há, assim, como se compreender a tradição tipicamente germânica de abuso de direito (unzulässige Rechtsausübung) sem se compreender antes o seu “passado marrom” — o que fica muito claro ao se ler um alerta de Frank von Look que sempre gosto de repetir: “a formulação de grupos de casos não era tão pronunciada naquela época como é hoje, o que facilitou a penetração das ideias nacional-socialistas na jurisprudência. Os atuais grupos diferenciados de casos […] não devem ser vistos apenas como uma ajuda para sistematizar o material da jurisprudência, mas ao mesmo tempo como um instrumento metódico para evitar abusos, como nos tempos do nacional-socialismo”.[14]
“As principais abordagens dessa tradição alemã formuladora de grupos de casos (unzulässige Rechtsausübung) foram sempre as de violações à boa-fé objetiva e aos bons costumes, tendo como pontos de partida de um riquíssimo desenvolvimento dogmático especialmente os §§ 242 e 826 do Código Civil alemão). No entanto, deve-se apontar que mesmo a abordagem alemã de intencionalidade danosa (lá intitulada Schikaneverbot [proibição da chicana]), baseada no § 226, passou pelo que eu chamo de “transição objetivadora”,[15] com a formulação dogmática de numerosos grupos de casos para controle da sua aplicação.
Formulação de grupos de casos como dogmática necessária do abuso de direito
Foi ante esse cenário das duas tradições,[16] que propus, em meu livro Abuse of Rights: From abus de droit to allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung, que sigamos todos o grito de batalha de Joachim Rückert: “Fallvergleich! [comparação de casos!]”. A formulação dogmática de grupos de casos de abuso de direito é a única maneira de não repetimos o erro de concedermos aos juízes o poder de arbitrariamente imporem a sua particular ideologia. As consequências desse último modo de operacionalizar o abuso de direito já são conhecidas, e certamente não são nada desejáveis.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] Cass., Aug. 3, 1915, Arrêt du 3 août 1915, Dalloz. Jurisprudence générale: Recueil Périodique et critique de jurisprudence, de législation et de doctrine en matière civile, commerciale, criminelle, administrative et de droit publique 1re partie (1917): 79 (Fr.).
[2] Code Civil, Légifrance (Fr.).
[3] Code Civil, Légifrance (Fr.).
[4] Louis Josserand, De l’esprit des droits et leur relativité: Théorie dite de l’Abus des Droits, 10ème éd., revue et mise au courant de la législation, de la jurisprudence, de la doctrine et du droit comparé (Paris: Librairie Dalloz, 1939), 416 [nota de rodapé 2].
[5] Virgilio Giorgianni, L’abuso del diritto nella teoria della norma giuridica (Milano: Dott. A. Giuffrè, 1963), 100.
[6] Josserand, De l’esprit des droits, 400–15.
[7] René Demogue, Traité des obligations en général (Paris: Arthur Rousseau, 1923), 371–2.
[8] Pierre-Emmanuel Moyse, “L’abus de droit: l’anténorme – Partie II,” McGill Law Journal 58, no. 1 (2012): 6.
[9] Lars Böttcher, “§ 242 Leistung nach Treu und Glauben,” in Erman Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar: mit AGG, EGBGB (Auszug), ErbbauRG, LPartG, ProdHaftG, VBVG, VersAusglG und WEG, ed. Harm Peter Westermann, Barbara Grunewald and Georg Maier-Reimer, 16., neu bearbeitete Aufl. (Köln: Dr. Otto Schmidt, 2020), Rn. 18.
[10] Dirk Looschelders e Dirk Olzen, “§ 242 Leistung nach Treu und Glauben,” in J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, ed. Dirk Olzen et al., Neubearb. 2019 Aufl. (Berlin: de Gruyter; Köln: Otto Schmidt, 28 fev. 2022), Rn. 68.
[11] apud Thomas Duve e Hans-Peter Haferkamp, “§ 242. Leistung nach Treu und Glauben,” in Historisch-Kritischer Kommentar zum BGB [HKK-BGB], ed. Mathias Schmoeckel, Joachim Rückert and Reinhard Zimmermann (Tübingen: Mohr Siebeck, 2007), 378.
[12] Wolfgang Siebert, “§ 242 BGB,” in Soergel Kommentar, 8 Aufl. (Stuttgart: Kohlhammer, 1952), 576 apud Philipp Eichenhofer, Rechtsmissbrauch: zu Geschichte und Theorie einer Figur des Europäischen Privatrechts (Tübingen: Mohr Siebeck, 2019), 161.
[13] Otavio Luiz Rodrigues Jr., Direito Civil Contemporâneo: Estatuto Epistemológico, Constituição e Direitos Fundamentais, 2. ed., rev., atual. e ampl. (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019), § 58.
[14] Frank von Look, “Die zivilrechtlichen Generalklauseln in der Rechtsprechung,” Juristische Rundschau, no. 3 (March 2000): 97.
[15] Fábio Carvalho de Alvarenga Peixoto, Abuse of Rights: From abus de droit to allgemeine Verbot unzulässiger Rechtsausübung (Fortaleza: Independently Published, 2023), 201 [nota de rodapé 604].
[16] Às quais se pode acrescentar ainda uma terceira, novíssima, de abuso por violação a ‘princípios’ (entendidos no modo bastante peculiar da teoria dos princípios de Robert Alexy). Especialmente sobre a concepção de Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero (os principais expoentes desta abordagem), Paolo Comanducci afirma que: “Atienza e Ruiz Manero apresentam uma redefinição do abuso de direito — o que, de certa forma, restringe a definição do conceito que é dado pelos usos efetivos da locução” (Paolo Comanducci, “Abuso del diritto e interpretazione giuridica,” in L’abuso del diritto: teoria, storia e ambiti disciplinari, ed. Vito Velluzi (Pisa: ETS, 2012), 25). Essa novíssima tradição é teoricamente insustentável, como mostro em: Peixoto, Abuse of Rights, 234–50.