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ACORDO DE LENIÊNCIA E SEUS REFLEXOS PENAIS

Flávio Augusto Maretti Sgrilli Siqueira

SUMÁRIO: I – Introdução. II – Acordo de Leniência: umas Considerações Pontuais. III – Os Reflexos Penais do Acordo de Leniência. IV – Conclusões. V – Bibliografia.

                                  

I – Introdução         

Invariavelmente, os ilícitos praticados contra interesses difusos concitam práticas exercidas de modo elíptico, oculto, com restrita publicidade e alta lesividade, o que promove a não descoberta dos mesmos pelo Estado.

Emerge, assim, a necessidade da participação de envolvidos prestando informações privilegiadas sobre a atividade ilícita, permitindo o início ou o encerramento das investigações, o que, de um lado, gera críticas, pelo atestado de ineficiência do Estado na investigação pelo mesmo dos delitos cometidos, o que também é sua função por força do contrato social, além da veracidade das informações pelo agente informante ter participado na atividade delitiva, e, noutros aplausos, pela possibilidade de descoberta de fatos outrora encobertos pelo manto do sigilo.

II – Acordo de Leniência: umas Considerações Pontuais           

Nesse quadrante surge o acordo de leniência, que é “um acordo de colaboração entre o Poder Público e o particular investigado por prática de ato lesivo ao erário ou à infração à ordem econômica[1].

Os antecedentes históricos desse acordo se encontravam na antiga legislação antitruste brasileira (arts. 35-B e 35-C da Lei nº 8.884/94), os quais foram inseridos originariamente pela MP nº 2.055/00, que gera inclusive questionamentos pela (in)segurança jurídica advinda desses acordos pela exiguidade do tempo de vigência da medida provisória nos termos da CRFB.

A Lei Antitruste (Lei nº 12.529/2011), nos arts. 86 a 87, disciplina a matéria sob o título de Programa de Leniência.

Esse acordo é firmado pelo CADE por intermédio da Superintendência-Geral, sendo exigidas para sua elaboração a identificação dos envolvidos e a obtenção de informações/documentos que comprovem a infração ou que estejam sob investigação da autarquia federal.

A Lei exige preferência (prioritariamente ser a primeira empresa ou pessoa física a noticiar o fato), cessação de envolvimento na infração cometida, confissão de participação ou cooperação voluntária e ausência de provas internas no CADE quanto à caracterização da infração.

Os acordos de leniência admitem a modulação dos efeitos por intermédio da fixação de condições necessárias e resultado útil buscando efetividade e boa-fé (art. 86, § 4º, II, da Lei nº 12.529/2011).

Os benefícios podem se referir à redução de um a dois terços da penalidade e à extinção da ação punitiva por parte da Administração Pública pelo infrator se o CADE não conhecesse da mesma.

Há a possibilidade de extensão dos efeitos aplicando-se às empresas do mesmo grupo e aos dirigentes, administradores e empregados incluídos no acordo, desde que firmem em comum o acordo.

Caso o fato revelado não seja considerado inédito por haver apuração em inquérito ou processo administrativo, poderá celebrar o acordo com relação a outro fato inédito, mas terá possibilidade de aplicação do benefício residual de redução de um terço da pena sobre o fato não inédito.

As propostas de acordo de leniência e as investigações são uma medida prevista em lei com o fim de preservação do programa a ser entabulado, mas esse sigilo não é oponível aos advogados dos envolvidos, por força de súmula vinculante do STF.

O acordo de leniência proíbe que o mesmo agente firme outro acordo com a autarquia federal pelo lastro de três anos, contados do julgamento pelo Tribunal do CADE, que homologará o mesmo, o que lembra dispositivo do Juizado Especial Criminal no que cuida da impossibilidade de aplicação das medidas despenalizadoras, ressalvada a hipótese do prazo, que na Lei nº 9.099/95 é de cinco anos.

A proibição temporal de firmar outros acordos não se aplica se o mesmo referir-se a fato diverso em que incide a Lei Anticorrupção pela inexistência de vinculação entre os documentos legislativos.

Não há presunção sobre a ilicitude do fato, tampouco fala-se em confissão e a proposta não será objeto de divulgação.

III – Os Reflexos Penais do Acordo de Leniência    

O aspecto de maior levante doutrinário e polêmica cuida-se da possibilidade de apresentação de reflexos penais [2] ao acordo tal qual como previsto expressamente no art. 87 da Lei nº 12.529/2011.

Os reflexos penais não devem ser aplicados, por implicar em insanável vício de inconstitucionalidade ou de eficácia, como veremos.

Inicialmente, o acordo de leniência com aspectos penais implica em violação de atribuição típica do Ministério Público, posto que por força de imperativo constitucional ele é o titular da ação penal (art. 129, I, da CRFB), e ao prever que uma autarquia pode livremente dizer onde há ou não razão ou motivação político-criminal idônea para repelir a aplicação de pena no direito penal, há a criação de perigoso precedente à inflição de elementos políticos afetando diretamente a atuação do MP.

A hipótese evidencia violação à autonomia institucional do Ministério Público igualmente assegurada por norma constitucional.

Ao analisarmos o histórico da legislação brasileira sobre o tema de colaboração com a justiça, temos que os acordos devem ser submetidos à homologação pelo Poder Judiciário, o que inexiste nestes acordos de leniência, promovendo-se em última instância esvaziamento da função desse poder como aplicador das normas jurídicas, violando-se o princípio da separação dos poderes (art. 2º da CRFB).

Verificamos que esses acordos não promovem nenhum efeito perante o Ministério Público, que passa imune a essa extinção da punibilidade pela titularidade, uma vez que ela foi infensa ao controle do Poder Judiciário, que tem essa função no art. 61 do CPP.

Lado outro, há a clara verificação de transbordamento dos limites em que esse acordo poderia, ainda que inconstitucionalmente, ser realizado por beneficiar delitos que se encontram fora do objeto das infrações administrativas do CADE, por trazer como imputações passíveis de sofrerem com a extinção de punibilidade, como delitos contra as licitações (Lei nº 8.666/93) e associação criminosa.

A salvação desses acordos residiria na participação do Ministério Público [3], no entabulamento dos acordos ou na alusão da projeção penal do mesmo com a participação do Ministério Público, notadamente, pelos reflexos que transcendem as raias meramente administrativas, indo além para alcançar situações açambarcadas por processos de improbidade administrativa ou ações penais [4].

A questão poderia ser saneada por intermédio da forçosa intervenção do Ministério Público Federal junto ao Conselho de Administração da Defesa Econômica na forma do art. 20 da Lei nº 12.529/2011, que diz: “O Procurador-Geral da República, ouvido o Conselho Superior, designará membro do Ministério Público Federal para, nesta qualidade, emitir parecer, nos processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica, de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator“.

A questão ainda não restaria sanada, porquanto a intervenção do MPF é limitada a aspectos administrativos da atuação do CADE, sendo que a lei silencia-se quanto à participação do MP.

A competência para conhecimento dos delitos contra a ordem econômica, via de regra, é da Justiça Estadual [5], ressalvado se o delito atingir bens da União (art. 109, IV, da CRFB), venha a atingir mais de dois Estados-membros ou afetarem interesses dos entes mencionados no art. 109, I, da CRFB.

Levanta-se outra bandeira a ser questionada, uma vez que a intervenção do MPF chancelando um acordo de leniência em um fato que apresente reflexos em delitos contra a ordem econômica não teria o condão de promover qualquer efeito válido, uma vez que deve-se adotar solução que aproxime-se à competência firmada na jurisprudência do STJ para fins de determinação do MP, que deve atuar nesse tipo de acordo.

Eduardo Molan Gaban e Juliana Oliveira Domingues ressaltam que o critério ideal é adotar a competência criminal para se verificar qual Ministério Público deve atuar, posto que, “identificando-se o espectro da infração objeto do acordo de leniência, é possível identificar-se se está mais próxima da competência da Justiça Estadual ou da Justiça Federal, identificando-se, assim, qual dos Ministérios Públicos devem figurar no acordo[6].

Calha dizer que, em conformidade com o assinalado na doutrina, temos que, “(…) uma vez assinado pelo órgão ministerial, este, quer por um de seus membros quer por outro, não poderá mais exercer seu direito de propor ação penal contra as pessoas que assinaram o acordo de leniência pelos fatos confessados no acordo de leniência[7].

A questão ainda vai levantar polêmica, em especial, pelo princípio da unidade do Ministério Público, se o acordo firmado pelo MPF produzir efeitos junto ao MP estadual, além da existência ou não da violação ao promotor natural [8].

Os defensores dos acordos de leniência sustentam que haveria uma venire factum propium, porquanto o Estado que firma um acordo prometendo a extinção da punibilidade é o mesmo que posteriormente comparece ajuizando ação penal contra a pessoa que lavrou um acordo [9], carecendo nessa situação o MP dos requisitos do art. 41 do CPP para oferecimento da denúncia.

A interação complementária entre Ministério Público e CADE deve ser necessária para fins de uma atuação conjunta para o combate a ilícitos administrativos, atos de improbidade administrativa e ilícitos penais, em especial, porquanto um possui legitimidade exclusiva para termo de cessação de conduta e o MP pode firmar os termos de ajustamento de conduta, além da exclusiva titularidade da ação penal.

IV – Conclusões    

À guisa de encerramento deste presente trabalho, temos que a elaboração de acordo de leniência por parte do CADE não se afigura como uma medida que é dotada de adequação constitucional por desrespeitar a titularidade da ação penal que pertence ao MP (art. 129, I, da CRFB).

Não se cogita em violação ao princípio do venire contra factum propium, uma vez que o acordo de leniência é elaborado sem a observância de regras constitucionais sobre as atribuições institucionais do Ministério Público. Logo, não se pode conferir validade a um acordo elaborado sem a participação do órgão que detém o poder-dever de deflagrar a ação penal e a chancela do Poder Judiciário.

A insegurança jurídica trazida pelo acordo de leniência na lei de tutela da concorrência é corrigida pela atuação dos profissionais em não elaborar o acordo somente na presença do CADE, mas também com a atuação do Ministério Público com atribuição para atuar no caso em homenagem ao princípio do promotor natural.

Desta feita, se evitaria a elaboração de acordos de leniência ineficazes perante o titular da ação penal, expondo a pessoa que forneça as informações a uma situação de difícil resolução por ter prestado dados relevantes à descoberta de delitos e posteriormente correr o risco de não ter suas informações gerando benefícios penais em seu favor, a não ser apenas uma atenuante genérica da confissão.

V – Bibliografia       

BRITO GENTIL, Plínio Antônio; SANTOS LIMA, Charles Hamilton; LIVIANU, Roberto; BERCLAZ, Márcio Soares; RODRIGUES, Tiago de Toledo; COSTA, Gustavo Roberto. Intervenção do Ministério Público nos acordos de leniência é imprescindível. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-12/mp-debate-intervencao-acordos-leniencia-imprescindiivel>. Acesso em: 13 out. 2015.

CUSTÓDIO FILHO, Ubirajara; SANTOS, José Anacleto Abduch; BERTONCINI, Mateus. Comentários à Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). São Paulo: RT, 2014.

LENY, Anna Carolina Pereira Cesarino Faraco. Acordo de leniência no Brasil traz insegurança jurídica. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-ago-09/anna-carolina-lamy-acordo-leniencia-brasil-traz-inseguranca-juridica>. Acesso em: 15 set. 2015.

LIVIANU, Roberto. Corrupção. Incluindo a nova Lei Anticorrupção. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2014.

MOLAN GABAN, Eduardo; OLIVEIRA DOMINGUES, Juliana. Direito antitruste. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

[1] CUSTÓDIO FILHO, Ubirajara; SANTOS, José Anacleto Abduch; BERTONCINI, Mateus. Comentários à Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). São Paulo: RT, 2014. p. 233.

[2] Art. 87 da Lei nº 12.529/2011, que diz que “nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. Parágrafo único. Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo”.

[3] Plínio Antônio Britto Gentil, Charles Hamilton Santos Lima, Roberto Livianu, Márcio Soares Berclaz, Tiago de Toledo Rodrigues e Gustavo Roberto Costa sustentam que, “antes de enfraquecer o acordo de leniência ou despotencializá-lo, ao contrário, o interesse e a previsão da possibilidade de manifestação do Ministério Público somente reforçam a importância e a utilidade do referido instrumento, permitindo que haja fiscalização sobre os seus termos e condições, tal como ocorre com outro instituto de justiça consensual ou negociada, no qual o Ministério Público já tem experiência e manejo. Melhor que o acordo de leniência seja qualificado pela presença e participação do Ministério Público do que desqualificado posteriormente de descriterioso e indevido, inclusive como risco de sua nulidade ser postulada e reconhecida pelo Poder Judiciário” (Intervenção do Ministério Público nos acordos de leniência é imprescindível. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-12/mp-debate-intervencao-acordos-leniencia-imprescindiivel>. Acesso em: 13 out. 2015, p. 1). No mesmo sentido: LIVIANU, Roberto. Corrupção. Incluindo a nova Lei Anticorrupção. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2014. p. 187.

[4] Plínio Antônio Britto Gentil, Charles Hamilton Santos Lima, Roberto Livianu, Márcio Soares Berclaz, Tiago de Toledo Rodrigues e Gustavo Roberto Costa sustentam: “Definitivamente, não se pode dar margem ao oportunismo, permitindo que empresários desonestos restem eventualmente impunes ao ponto de estarem estimulados à primária violação inicial da lei para posterior e descriterioso acerto com o governo, acordo este que pode abranger, por exemplo, pena de proibição de contratar com o Poder Público. Não se pode permitir que uma estrutura de governo, eventualmente envolvida e pressionada por suspeitas de corrupção, acerte-se livremente com uma empresa igualmente suspeita (que pode até ter sido doadora na sua campanha), podendo buscar, inclusive, a partir disso, financiamentos com os bancos públicos, sem que haja fiscalização e possibilidade de intervenção pela instituição constitucionalmente encarregada do primário combate à corrupção e, inclusive, da defesa da ordem jurídica, no caso, o Ministério Público. O Ministério Público é não só o principal legitimado pela Constituição da República a defender com independência o patrimônio público (art. 129, III), mas também o titular exclusivo da ação penal pública (art. 129, I). Não se olvide, também, o impacto e a pertinência que eventuais acordos de leniência podem produzir no âmbito de ações penais e ações civis públicas de responsabilidade por ato de improbidade administrativa. Somente a ciência, de modo a permitir, via de consequência, a presença, o acompanhamento e a intervenção do Ministério Público, permite que esse novo e importante instrumento seja utilizado de modo responsável e legítimo, mais do que isso, com os controles e os filtros próprios do Estado constitucional e democrático” (Intervenção do Ministério Público nos acordos de leniência é imprescindível.., p. 1).

 [5] A jurisprudência do STJ pontua: “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME DO ART. 4º DA LEI Nº 8.137/90. PRÁTICA DE DUMPING. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO PARA A UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1. Compete à Justiça Estadual processar e julgar ação penal relacionada a crime contra a ordem econômica (Lei nº 8.137/90), salvo se praticados ‘em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas’ e ‘nos casos determinados por lei’ (CR, art. 109, IV e VI; STJ, CC 56.193/RS, Rel. Min. Og Fernandes; CC 42.957/PR, Relª Minª Laurita Vaz; STF, RE 502.915, Rel. Min. Sepúlveda Pertence). 2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal da Comarca de Campo Mourão/PR, ora suscitante” (CC 119.350/PR, Rel. Min. Newton Trisotto [Desembargador Convocado do TJSC], Terceira Seção, j. 26.11.2014, DJe 04.12.2014).

[6] MOLAN GABAN, Eduardo; OLIVEIRA DOMINGUES, Juliana. Direito antitruste. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 261.

[7] MOLAN GABAN, Eduardo; OLIVEIRA DOMINGUES, Juliana. Direito antitruste…, p. 260.

[8] A jurisprudência do STF diz: “NULIDADE DO JULGAMENTO PROFERIDO PELO TRIBUNAL DO JÚRI E INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. ACÓRDÃO PROFERIDO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, CONTENDO DUPLO FUNDAMENTO: LEGAL E CONSTITUCIONAL. NÃO INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA DE RECURSO ESPECIAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 283 DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. ALEGAÇÃO DE CABIMENTO SOMENTE DE RE POR ENTENDER QUE O TRIBUNAL DE ORIGEM TERIA ADOTADO O TEMA RELACIONADO À OFENSA AO PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL COMO FUNDAMENTO AUTÔNOMO E SUFICIENTE PARA DECIDIR A CONTROVÉRSIA. ARGUMENTAÇÃO INSUBSISTENTE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Tendo o tribunal de origem decidido a controvérsia com base em fundamento constitucional e legal, impunha-se a interposição simultânea de recurso especial, sob pena de não o fazendo subsistir hígido o tema afeto à interpretação da legislação ordinária. O conhecimento do extraordinário, assim, encontra óbice na Súmula nº 283 do STF. 2. In casu, o acórdão recorrido assentou (fl. 642): ‘Júri. Duplo homicídio duplamente qualificado. Atuação em plenário de julgamento de promotor de justiça estranho à comarca e ao feito. Ferimento ao princípio do promotor natural. Nulidade reconhecida. Embora não previsto expressamente em lei, o princípio do promotor natural decorre de dispositivos constitucionais e é admitido na doutrina e na jurisprudência, ainda que comportando alguma relativização. No caso, a atuação em plenário de julgamento de um promotor de justiça estranho à comarca e ao feito, sem regular designação e estando a titular da promotoria em pleno exercício de suas funções, constitui ferimento ao referido princípio e acarreta a nulidade do julgamento. De outra banda, estando o réu preso há quase onze meses e pronunciado há cerca de sete meses, está caracterizado o excesso de prazo na formação da culpa, impondo-se a concessão de habeas corpus de ofício. Apelo provido, por maioria. Habeas corpus concedido de ofício, por maioria’. 3. Agravo regimental no recurso extraordinário. Alegação de não cabimento de recurso especial, porquanto o acórdão recorrido teria adotado a violação ao princípio do promotor natural como fundamento autônomo e suficiente ao prover o recurso de apelação interposto contra a decisão proferida pelo tribunal do júri. Argumentação insubsistente, dado que, tendo em vista a realidade processual e os fatos jurídicos ocorridos na sessão do júri, o tribunal estadual assentou a violação a regras processuais e o vício no ato de designação do promotor de justiça que fora designação para atuar tão somente na assentada em que o recorrido seria submetido a julgamento, o que viria patentear a ocorrência de nulidade após a pronúncia, razão pela qual o recurso de apelação foi conhecido com base no art. 593, III, a, do CPP. 4. A reiterada jurisprudência do STF é no sentido de que ‘o princípio do promotor natural, tendo presente a nova disciplina constitucional do Ministério Público, ganha especial significação no que se refere ao objeto último decorrente de sua formulação doutrinária: trata-se de garantia de ordem jurídica destinada tanto a proteger o membro da instituição, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente de seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e predeterminados, estabelecidos em lei’ (HC 67.759-2/RJ, Plenário, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 01.07.93). 5. Agravo regimental não provido” (STF. RE 638.757 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, j. 09.04.2013, Acórdão Eletrônico DJe-078 Divulg 25.04.2013 Public 26.04.2013). O STJ apontou: “JUIZ NATURAL. PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. DEPUTADO FEDERAL. JUÍZO SINGULAR. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA. INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL. RATIFICAÇÃO DE ATOS PROCESSUAIS. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE ATIVA. RECURSO PROVIDO. 1. A inobservância das regras processuais de competência em razão da prerrogativa de função, de natureza absoluta, impõe a anulação de todo o processo-crime, inclusive da exordial acusatória oferecida por órgão que não detinha a legitimidade ativa. 2. Recurso provido para anular o Processo-Crime 2005.83.00.011539-1” (RHC 25.236/PE, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, j. 03.12.09, DJe 01.02.2010).

[9] Anna Carolina Pereira Cesarino Faraco Leny explica: “Conforme a dicção do art. 395, II, do CPP, a denúncia será rejeitada se for manifestamente inepta, caso careça de um pressuposto processual ou condição da ação ou em não se observando a justa causa. Com efeito, havendo previsão de extinção da punibilidade quando da celebração do acordo, consequentemente haverá falta de uma condição da ação, de maneira que segundo os ditames da economia processual não é coerente a apresentação de denúncia. Ademais, trazendo para o direito público a teoria do venire contra factum proprium, tradicionalmente utilizada na teoria dos contratos, o Estado não é obrigado a legislar, mas quando o faz deve cumprir suas determinações. Tal importação é plenamente possível, eis que o acordo de leniência possui natureza contratual, de maneira que compromete ambos os lados que o assinam a cumprir sua parte com a devida boa-fé. Também insta destacar que os entes que regulam o funcionamento do Estado em sua soberania integram um todo indissolúvel, de modo que a alegação de que o Ministério Público tem a obrigação de propor a denúncia talvez esconda um ranço de vaidade no sentido de afirmar poder e legitimidade para o controle da força. Assim, a maneira como vem previsto o acordo de leniência no ordenamento brasileiro, atrelado à insistência em propor ação penal contra o delator, acaba por ensejar grave quadro de insegurança jurídica ao proponente, que se encontra em nítida posição de submissão ao arbítrio do Estado” (LENY, Anna Carolina Pereira Cesarino Faraco. Acordo de leniência no Brasil traz insegurança jurídica. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-ago-09/anna-carolina-lamy-acordo-leniencia-brasil-traz-inseguranca-juridica>. Acesso em: 15 set. 2015).

 

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