ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL NO ECA
Rénan Kfuri Lopes
1 INTRODUÇÃO
O acolhimento institucional, anteriormente denominado abrigamento em entidade, é uma das medidas de proteção previstas pela Lei Federal nº 8069/1990[2] (ECA) e aplicáveis a crianças e adolescentes[3] sempre que os direitos reconhecidos naquela lei forem ameaçados ou violados.
Sendo medida de proteção, o acolhimento institucional não pode ser confundido com alguma das medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes que, eventualmente, pratiquem atos infracionais. São institutos jurídicos distintos: o acolhimento em abrigo (ECA, art. 101, VII) e a internação em estabelecimento educacional (ECA, art. 112, VI). Aquele é medida protetiva e este é medida socioeducativa, que implica em privação da liberdade.
2 O ACOLHIMENTO NA TEORIA
2.1. A concepção do acolhimento anterior à Nova Lei de Adoção
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já em sua redação original, dispunha no art. 136, I, parte final, que cabia ao Conselho Tutelar aplicar as medidas de proteção previstas no art. 101, I a VII. Logo, o então chamado abrigamento (previsto no inciso VII do art. 101) era uma das atribuições do Conselho Tutelar.
Tal atribuição não era exclusiva do Conselho Tutelar, uma vez que a autoridade judiciária também poderia determinar o abrigamento de uma criança ou adolescente no curso de um processo judicial. Mesmo assim, não havia um controle direto do Poder Judiciário relativamente aos menores de 18 anos abrigados em cada comarca, já que rotineiramente, essa tarefa cabia ao Conselho Tutelar.
2.2. O acolhimento após a Nova Lei de Adoção
Com o advento da Lei Federal nº 12010/2009[4] – Nova Lei de Adoção –, houve uma profunda mudança no abrigamento, que passou a ser denominado acolhimento institucional. A alteração mais substancial foi na autoridade detentora do poder de aplicar a medida. A partir de 2009, o afastamento de criança ou adolescente do convívio familiar tornou-se competência exclusiva do juiz de direito[5]. Portanto, o encaminhamento de crianças e adolescentes às instituições de acolhimento institucional, governamentais ou particulares, passou a depender da expedição de uma guia de acolhimento, por parte da autoridade judiciária.
Entretanto, a redação do artigo 136, I do ECA, que dispõe ser atribuição do Conselho Tutelar a aplicação da maioria das medidas de proteção, inclusive o acolhimento institucional, permaneceu intacta. Pergunta-se: conforme o novo entendimento do ECA sobre o acolhimento, é possível que o Conselho Tutelar aplique essa medida protetiva? Em caráter excepcional, sim. É o que se interpreta do disposto no art. 93 da mesma lei:
Art. 93. As entidades que mantenham programa de acolhimento institucional poderão, em caráter excepcional e de urgência, acolher crianças e adolescentes sem prévia determinação da autoridade competente, fazendo comunicação do fato em até 24 (vinte e quatro) horas ao Juiz da Infância e da Juventude, sob pena de responsabilidade.
Logo, há situações que não é possível aguardar a determinação judicial, bem como a expedição de guia de acolhimento. Um exemplo é a situação de risco constatada pelo Conselho Tutelar fora do horário de expediente forense. Nesta hipótese, entende-se que o acolhimento poderá ser feito sem ordem judicial pelo Conselho Tutelar que, no entanto, deverá comunicar ao juiz a aplicação da medida em até 24 horas.
Outra inovação é a disposição expressa do ECA[6] de que o acolhimento institucional é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para reintegração familiar ou colocação em família substituta. Como arremate, a lei frisa que o acolhimento não implica em privação de liberdade, diferenciando de uma vez por todas o acolhimento das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação.
Portanto, o acolhimento só deve ocorrer em último caso, em situações nas quais as medidas protetivas mais brandas não foram eficazes. Também o período do acolhimento não pode ser indefinido, pois se trata de medida provisória por força da lei.
3 O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL NA PRÁTICA
3.1. O acolhimento como solução mágica aos problemas do Conselho Tutelar
Infelizmente, o que se vê no dia a dia difere muito do imaginado pelo legislador. O acolhimento é utilizado como uma solução rápida aos casos atendidos por alguns conselhos tutelares, que preferem solicitar esta medida excepcional ao juiz ou até mesmo efetuar o acolhimento de urgência em horário em que não há mais atendimento forense.
Percebe-se que as medidas de proteção elencadas no art. 101, I a VI – mais brandas, mas não menos efetivas –, não são aplicadas pelos conselhos tutelares. Mas por que isso acontece? Apenas um conselheiro tutelar poderia responder categoricamente a esta pergunta. Aqui, podemos formular hipóteses. Uma explicação para a não aplicação das medidas mais brandas é o fato de que o acolhimento transforma o problema do Conselho Tutelar em um problema do juiz. Logo, ao acolher uma criança, promove-se a judicialização de uma situação que poderia ser sanada sem intervenção do Poder Judiciário. Com o acolhimento, em tese, o trabalho do Conselho Tutelar naquele caso está encerrado.
A propósito, um dos motivos da criação do Conselho Tutelar pelo ECA foi o de evitar a judicialização de todos os casos envolvendo infância e juventude, pois o legislador imaginou que o Conselho Tutelar – não limitado por normas processuais – poderia ser mais ágil na solução dos problemas. Judicializar um caso que poderia ser resolvido extrajudicialmente vai contra os ideais do ECA, torna burocrática e lenta a resolução do caso e, por fim, sobrecarrega ainda mais o Poder Judiciário.
Outra hipótese que pode explicar a relutância do Conselho Tutelar em aplicar medidas protetivas mais suaves diz respeito à quantidade de trabalho que o referido órgão terá para aplicar a medida e, também, para constatar a eficácia e os resultados desta aplicação. Vejamos quais são as medidas protetivas aplicáveis pelo Conselho Tutelar, excluído o acolhimento (ECA, art. 101, I a VI):
I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;
II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III – matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;
IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;
VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
Exceto quanto às providências previstas nos incisos I e II, cuja execução é relativamente simples e não depende da intervenção de outros órgãos, as demais (incisos III a VI) requerem uma solicitação do Conselho Tutelar e o atendimento (ou não) deste pedido por outro órgão público: escolas, programas comunitários, clínicas e postos de saúde e clínicas para tratamento de dependentes químicos.
Com a aplicação de alguma das medidas acima elencadas, o Conselho Tutelar permanece responsável pela condução do caso, devendo orientar, apoiar e acompanhar a criança e o adolescente. Além disso, o conselheiro deve conhecer bem a estrutura dos órgãos municipais, a fim de acessar os serviços adequados a cada caso. Certamente, encontrando obstáculos nesse desiderato.
3.2. A mudança na faixa etária dos acolhidos – causas e efeitos
Quando se pensa em um abrigo, vêm à mente imagens de crianças que, por diversos motivos, foram afastadas do convívio familiar e vivem temporariamente em instituições públicas ou privadas que existem para esta finalidade. Ao se utilizar a ferramenta do Google para buscar imagens relativas ao termo abrigo, o que se vê são sempre crianças em diversas situações: num parquinho recreativo, na sala de aula, num refeitório.
Todavia, ao se visitar uma instituição de acolhimento, a realidade é outra. Os abrigos estão cheios de adolescentes. Pode-se afirmar que há entidades que abrigam mais adolescentes que crianças. A que, então, atribuir esse envelhecimento no perfil dos acolhidos?
Assim como na atuação do Conselho Tutelar, este trabalho se limitará a formular hipóteses, já que uma explicação definitiva para o fato demandaria um estudo mais profundo, o que não é o objetivo deste artigo.
A primeira e mais simples hipótese diz respeito ao próprio decurso de tempo em que os acolhidos permanecem institucionalizados. Muitos acolhidos passam anos a fio nas entidades, deixando de serem crianças para se tornarem adolescentes.
Outra possibilidade se refere à dificuldade em se encontrar parentes que se disponham a receber e responsabilizar-se por adolescentes. Há casos de adolescentes ora acolhidos que, apesar de terem parentes próximos, nenhum deles quis assumir a responsabilidade pela guarda, restando somente o caminho do acolhimento. Quando se trata de crianças, verifica-se ser mais fácil encontrar algum parente que assuma a sua guarda, ainda que temporariamente.
Dentre os efeitos do aumento da média de idade entre os acolhidos destacam-se os problemas de disciplina e de relacionamento interpessoal. Tais incidentes são perfeitamente compreensíveis, em se tratando de um grupo de adolescentes sem vínculos entre si, tendo que conviver dentro do mesmo espaço.
Outra consequência do envelhecimento dos acolhidos é a frequente fuga da instituição. Uma vez que os abrigos não têm o objetivo de restringir a liberdade e que os acolhidos passam na adolescência a ter mais força física, malícia e destreza, as evasões não exigem grande preparação. Após um período de tempo, que pode ser de horas ou até alguns dias, os evadidos se reapresentam à instituição.
Tais fugas são péssimas para o ambiente do abrigo que, para evitar que as evasões se tornem frequentes, deve aplicar algum tipo de reprimenda ao evadido sem, contudo, recusar-se a recebê-lo de volta, pois mesmo evadido, o adolescente foi acolhido por ordem judicial.
4 CONCLUSÕES
4.1. O trabalho do Conselho Tutelar
A atuação de muitos conselhos tutelares não condiz com o que foi preconizado no ECA. De órgãos ágeis, compostos por pessoas articuladas integrantes da comunidade, transformaram-se em palco para disputas políticas ou, pior, agem acuados, subordinados a determinadas autoridades.
Ora, o Conselho Tutelar foi concebido para ser um órgão autônomo![7] E como tal, cabe a ele próprio organizar suas atividades, de acordo com a lei, não ficando hierarquicamente subordinado a quem quer que seja.
As dificuldades em se encontrar meios de aplicar medidas de proteção que dependam de outros órgãos, geralmente municipais, levam à judicialização dos casos atendidos pelo Conselho. Após ser encaminhado ao Poder Judiciário, muitas vezes sem necessidade, o problema se torna mais um processo a tramitar nas já lotadas varas, violando o princípio da proteção integral prevista no ECA. A lei criou os conselhos tutelares para solucionar os casos e não para simplesmente encaminhá-los ao juiz. Assim já era feito ao tempo do revogado Código de Menores[8].
Cabe ao Poder Público Municipal fornecer meios aos conselhos tutelares de aplicarem as medidas que lhe cabem, conforme a lei. Não basta que determinado órgão exista, é necessário que ele seja eficiente, eficaz e receptivo às solicitações do Conselho Tutelar.
4.2. O envelhecimento dos acolhidos
O acolhimento predominante de adolescentes, salvo melhor juízo, é medida ineficaz, uma vez que uma boa parte deles já tem condições de se defender e de autogerir minimamente. A aglomeração de vários adolescentes em um ambiente institucional é garantia permanente de problemas disciplinares, agressões e até violência sexual, haja vista a impossibilidade de se monitorar todos os acolhidos por todo o tempo.
Ademais, muitos adolescentes são acolhidos sem necessidade, simplesmente porque os familiares não suportam o seu comportamento rebelde ou porque os pais não querem mais ser responsáveis pelo filho – que anda em más companhias, usa drogas –, e querem “entregá-lo ao juiz”, livrando-se magicamente de suas responsabilidades.
Para o problema do aumento da média de idade dos acolhidos, a solução passa por um acompanhamento rápido e efetivo da família, buscando estruturá-la em prol da reintegração familiar do acolhido no prazo o mais curto possível. Esse acompanhamento deve ser efetuado em rede, com vários órgãos atuando conjuntamente, conforme concebido pelo ECA.
Em caso de total impossibilidade de reintegração familiar ou mesmo de reintegração em família extensa, deve-se – após a destituição do poder familiar – buscar a colocação em família substituta, propiciando a adoção e, por consequência, a desinstitucionalização do adolescente.
Por fim, é importante que se observe com mais rigor as disposições da lei quanto à excepcionalidade e brevidade do acolhimento institucional, evitando acolhimentos desnecessários e de longa permanência.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Código de Menores.
BRASIL, Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004.
ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade, Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos – 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
PENNA, Sérgio F. P. de O. Técnica legislativa: orientação para a padronização de trabalhos – Brasília: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 2002. Disponível em <http://www12.senado.gov.br/senado/institucional/conleg/manuais/tecnica-legislativa> Acesso em 04 mar. 2014.
[2] BRASIL, Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), art. 101, VII.
[3] O ECA (art. 2º) define criança como sendo a pessoa de 0 a 11 anos e adolescente a pessoa entre 12 e 17 anos.
[4] BRASIL, Lei nº 12010 de 3 de agosto de 2009. Nova Lei de Adoção.
[5] ECA, art. 101, §2º.
[6] ECA, art. 101, §1º.
[7] ECA, art. 131.
[8] BRASIL, Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Código de Menores.