AÇÃO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS: A REGRA ESPECIAL DE COMPETÊNCIA PREVALECE SOBRE A ELEIÇÃO DE FORO?
Ana Paula Braga Franco
Isabela Pimenta Carneiro Campos
A ação de produção antecipada de provas, regida pelos artigos 381 a 383 do Código de Processo Civil, visa garantir a obtenção de provas que, por sua natureza ou condição, podem se tornar inacessíveis no curso de uma ação principal. Embora seja amplamente utilizada, a sua aplicação enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito à definição da competência territorial.
Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, julgou o Recurso Especial 2.136.190/RS, no qual decidiu que a ação de produção antecipada de prova pericial pode ser processada na comarca onde está o objeto a ser periciado, em detrimento do foro eleito pelas partes em contrato.
A decisão é particularmente relevante e levanta interessantes reflexões para litígios envolvendo contratos e disputas empresariais, sobretudo no tocante a questões que relacionadas aos custos e às estratégias processuais em litígios complexos típicos dessa matéria envolvida.
Dentre os diversos instrumentos processuais disponíveis no ordenamento jurídico, a produção antecipada de provas destaca-se por sua relevância em garantir a preservação de elementos essenciais para a solução de futuros conflitos. Esse instituto, frequentemente utilizado em relações empresariais, ganha contornos ainda mais relevantes quando questões de competência territorial e cláusulas contratuais, como as de eleição de foro, entram em conflito com a necessidade prática de assegurar a eficácia da prova que se pretende produzir.
Para compreender as implicações dessa situação, no presente texto, iremos analisar a dinâmica da ação de produção antecipada de provas à luz do caso enfrentado pelo STJ no Recurso Especial 2.136.190/RS, que oferece um marco importante sobre o tema.
1. Produção antecipada de provas: fundamentos e aplicações práticas
A ação de produção antecipada de provas é uma ação autônoma destinada a preservar elementos probatórios que possam ser essenciais à resolução de conflitos judiciais ou à composição extrajudicial de litígios. Os principais motivos pelos quais se opta por essa ação são os seguintes:
– Preservação de provas: a produção antecipada de provas se justifica em situações em que há risco de perecimento ou perda de evidências, como no caso de bens perecíveis ou provas documentais sujeitas à deterioração;
– Redução de litígios: em algumas ocasiões, a produção antecipada da prova permite que as partes compreendam melhor os fatos em discussão, viabilizando acordos extrajudiciais e reduzindo o volume de demandas judiciais e custos do processo;
– Planejamento processual: no âmbito de litígios empresariais, a produção antecipada de prova pode servir como base para decisões estratégicas sobre o ajuizamento de ações, especialmente em contratos de grande valor ou alta complexidade técnica.
A produção antecipada de provas é uma ferramenta processual que busca garantir a segurança jurídica em situações em que a obtenção de elementos probatórios futuros esteja ameaçada. Diferentemente de outras ações, seu objetivo não é resolver o mérito de um conflito, mas assegurar que as provas relevantes já estejam disponíveis para uso em um possível litígio posterior.
No entanto, a utilização desse procedimento autônomo frequentemente exige decisões sobre questões práticas, como a escolha do foro competente para o ajuizamento da ação.
No contexto do Recurso Especial 2.136.190/RS, o STJ analisou a aplicação dessa ação em um cenário envolvendo uma perícia em um imóvel, cujo local físico não era o mesmo do foro estipulado na cláusula de eleição de foro, constante de contrato celebrado entre as partes.
2. O Recurso Especial 2.136.190/RS: competência territorial na ação de produção antecipada de prova
O caso analisado tem origem em uma ação de produção antecipada de prova ajuizada pela Icavi Indústria de Caldeiras do Vale do Itajaí S/A (Icavi) em face da Net Steel S/A Indústria Metalúrgica (Net Steel) perante a Vara Única da Comarca de Triunfo (RS). A requerente justificou a escolha do foro com base na proximidade do local do bem a ser periciado, alegando que essa escolha facilitaria a logística da perícia e reduziria os custos envolvidos.
A Net Steel, por sua vez, alegou a incompetência do juízo da Comarca de Triunfo sob os argumentos de que: (1) a regra geral é a de que o réu será acionado no seu domicílio (artigo 46 do CPC) e, sendo pessoa jurídica, na comarca que estiver a sua sede (artigo 53, III, “a” do CPC) e (2) ainda que assim não fosse, o deslocamento da competência também está amparado na existência de cláusula de eleição de foro, válida e eficaz, que, no caso, elegeu expressamente a Comarca de Rio do Sul (SC).
Ao analisar as alegações das partes, o juiz da Comarca de Triunfo proferiu decisão rejeitando a alegada incompetência do juízo para processar a ação, sob o fundamento de que era possível que ela tramitasse no foro onde a prova deveria ser produzida. Irresignada, a Net Steel interpôs agravo de instrumento reforçando o seu entendimento de que deveria prevalecer a regra geral de competência prevista no CPC que, neste caso, coincide com o foro estipulado livremente pelas partes quando da celebração do Contrato de Compra e Venda de Equipamentos, e não na comarca onde se encontra o objeto a ser periciado.
Em decisão monocrática proferida pela Des. Liege Puricelli Pires, da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, foi negado provimento ao agravo de instrumento, sob o entendimento de que, considerando que o equipamento objeto da perícia se encontrava em empresa sediada na comarca de Triunfo, o juízo dessa comarca seria competente para o processamento da ação. Ademais, pontuou que, tratando-se de produção antecipada de prova, a regra de competência é especial e prevalece sobre as regras previstas nos artigos 46, 53, III, “a” e 63, §1º do Código de Processo Civil.
Em face dessa decisão foi interposto o Recurso Especial 2.136.190/RS, com o objetivo de definir se a produção antecipada de prova pericial poderia ser processada no foro onde situado o objeto a ser periciado ao invés do foro de sede da empresa ré e foro eleito em contrato. No acórdão de relatoria da ministra Nancy Andrighi, a 3ª Turma do STJ conheceu em parte do recurso e, na parte conhecida, negou-lhe provimento.
Nas suas razões, a ministra relatora pontuou que o STJ já permitia a relativização da competência do juízo da ação principal em relação aos procedimentos cautelares, especialmente em se tratando de produção cautelar de provas na forma antecipada. Essa mitigação da competência seria justificada por questões práticas e processuais, notadamente para viabilizar a realização de diligências e perícias, além de possibilitar maior celeridade à prestação jurisdicional.
Segundo fundamentou a ministra relatora (que foi seguida pelos demais ministros), a hipótese discutida se amolda no mencionado entendimento de que a facilitação da realização da perícia prevaleceria sobre a regra geral do ajuizamento no foro do réu por envolver uma questão de ordem prática.
Ressaltou, ainda, que diferentemente do CPC/73, o CPC/2015 dispõe expressamente em seu artigo 381, §3º que o foro de exame prévio de prova não torna ele prevento para a eventual ação principal. Nesse sentido, a depender do resultado da perícia, a ação principal nem sequer poderá ser ajuizada ou, caso seja, o foro eleito pelas partes (que coincide com o domicílio do réu) poderá prevalecer.
Com isso, no entendimento da turma julgadora, a escolha do foro onde se localiza o objeto da perícia é coerente com a finalidade da produção antecipada de provas, que não é discutir o mérito da causa, mas assegurar a preservação e a produção de elementos probatórios. Esse caráter preparatório e autônomo da ação de produção antecipada de provas justifica a flexibilização das regras gerais de competência territorial.
Portanto, muito embora a cláusula de eleição de foro tenha por objetivo garantir previsibilidade e segurança jurídica, no entendimento da 3ª Turma, a sua aplicação não é absoluta. Em situações específicas, como nas ações de produção antecipada de provas, a prioridade deve ser dada à eficiência processual e à economia de recursos. Assim, a definição do foro como sendo o mais próximo do local do objeto a ser periciado atende a esses princípios, porquanto evita deslocamentos desnecessários e facilita a execução da perícia, ainda que tal foro não coincida nem com o de sede ou domicílio do réu pessoa jurídica, nem tampouco com o foro de eleição das partes.
3. Conclusões
A recente decisão da 3ª Turma do STJ no REsp 2.136.190/RS evidencia uma interpretação pragmática das normas processuais, privilegiando a eficiência e a celeridade em detrimento da rigidez das regras de competência territorial. Ao reforçar que a ação de produção antecipada de provas pode ser processada no foro onde está localizado o objeto da perícia, mesmo que não coincidente com o foro de sede ou domicílio da pessoa jurídica ré ou com o foro de eleição das partes, a 3ª Turma do STJ reconhece que a preservação das provas e a logística do procedimento são prioridades práticas que podem justificar a relativização da eleição de foro contratual.
Esse entendimento reflete uma evolução no Direito Processual Civil brasileiro, alinhada à busca por soluções que reduzam custos e otimizem os recursos judiciais. A flexibilização da competência territorial, amparada no artigo 381, §2º do CPC, reforça a autonomia e o caráter instrumental da ação de produção antecipada de provas, cujo objetivo principal não é definir o mérito da causa, mas assegurar a integridade dos elementos probatórios.
O referido entendimento não apenas preserva o equilíbrio entre formalismo e eficácia, mas também incentiva práticas processuais que valorizam o acesso à justiça e a resolução de conflitos de forma mais eficiente.
Dessa forma, a decisão consolida um precedente importante, ao demonstrar que a rigidez normativa pode ceder quando está em jogo o interesse maior de assegurar a funcionalidade e a efetividade do sistema jurídico, sem prejuízo para as partes envolvidas.