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AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO NO NOVO CPC

AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO NO NOVO CPC

Jorge Amaury Maia Nunes

 

Nos dias atuais, não são raras as situações em que o devedor se vê compelido a procurar meios de saldar dívidas, por resistência de qualquer natureza apresentada pelo credor. Quando por motivo outro não seja, pelo fato de que o devedor supostamente inadimplente corre o sério e muito provável risco de ver seu nome inscrito em um dos diversos cadastros de maus pagadores que pululam em nossa terra.

A existimatio do cidadão, i.e., a sua reputação é, hoje, condição necessária (porém, não suficiente) para obtenção de crédito e, às vezes, até para firmar contratos onerosos, fato que impõe a todos o zelo com o próprio nome. Nesse espaço, opera a consignação em pagamento, instituto do Direito Civil, pertinente ao adimplemento e extinção das obrigações, por meio do qual é considerado pagamento e extingue a obrigação, o depósito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais (art. 334 do Código Civil).

A ação de consignação em pagamento é procedimento especial que visa a permitir a realização daquele instituto de direito material, por meio do qual o autor da ação, se procedente o pedido, obterá uma sentença declaratória da extinção da obrigação que foi cumprida. Observe-se que o Código Civil cuida de (i) depósito judicial; ou (ii) depósito em estabelecimento bancário da coisa devida. Já o anterior Código Civil, de 1916, cuidava apenas e tão somente de “depósito judicial da coisa devida” (art. 972), sem nenhuma alusão a depósito em estabelecimento bancário.

Essa alusão a depósito bancário como forma de consignação em pagamento surgiu, primeiramente, não em uma lei civil, mas sim, de forma heterotópica, em uma lei processual, a lei 8.951, de 13/12/1994, que alterou o CPC de 1973, e nele inseriu este comando:

“Art. 890…1º. Tratando-se de obrigação em dinheiro, poderá o devedor ou terceiro optar pelo depósito da quantia devida, em estabelecimento bancário oficial, onde houver situado no lugar do pagamento, em conta com correção monetária, cientificando-se o credor por carta com aviso de recepção, assinado o prazo de dez dias para a manifestação de recusa”.

Cabe lembrar que essa lei e mais outras três leis processuais[1], da mesma data, são originárias de projetos apresentados pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e pela Escola Nacional da Magistratura e passaram praticamente sem emendas no Congresso Nacional. Nelas foi aproveitado, e muito, o conteúdo do Anteprojeto de Modificação do Código de Processo Civil, elaborado por uma comissão de eméritos processualistas, composta por LUÍS ANTÔNIO DE ANDRADE, JOSÉ JOAQUIM CALMON DE PASSOS, KAZUO WATANABE, JOAQUIM CORREIA DE CARVALHO JÚNIOR e SÉRGIO BERMUDES, publicado em Suplemento ao DOU de 24.12.85[2]. Aí se encontra a fonte da inserção do depósito bancário como forma de consignação extintiva da obrigação.

O CPC/15 cuidou da matéria no art. 539/549 e trouxe algumas modificações de natureza cosmética, cabendo fazer o mesmo comentário que se fez quando veio a lume a lei 8.951/94: sendo um Código de Processo Civil, que traça regras de composição jurisdicional de conflitos ou de prestação de tutela jurídica em processos necessários, resolveu o legislador nele inserir regras extraprocessuais de solução de controvérsias. Dir-se-ia melhor, regras de direito material de exoneração de obrigações pecuniárias.

Observe-se que o caput do artigo 539, tal como ocorria no caput do art. 890 do CPC/1973, cuida de consignação, com efeito de pagamento, de quantia ou coisa devida. Os parágrafos nele inseridos, entretanto, somente cuidam de consignação quando se tratar de obrigação pecuniária (mas não da consignação de coisa, que somente é regulada a partir do art. 543). Se tratar de obrigação desse jaez, poderá o devedor (ou terceiro que pretenda efetuar o pagamento em seu lugar, presentes as regras do artigo 335 e seguintes do Código Civil Brasileiro) optar pelo depósito da quantia devida em estabelecimento bancário, oficial onde houver situado no lugar do pagamento, cientificando-se o credor por carta com AR, fixando-lhe o prazo de 10 dias para a manifestação da recusa.

É bem verdade que não incumbe ao legislador a preocupação com academicismos, cabendo-lhe apenas regrar os fatos da vida de modo a prevenir e solucionar conflitos sociais. À doutrina é que se impõe descobrir a natureza jurídica das figuras concebidas pelo legislador. Conceda-se, porém, que esse senhor às vezes é dos mais ingratos.

Esse depósito bancário firmado pelo devedor, em favor do credor, em estabelecimento bancário oficial, é um exemplo disso. Uma espécie de centauro do Direito. Se visto sob a ótica do devedor, depositante, é depósito voluntário; se visto sob ótica do estabelecimento bancário oficial (que não é parte em qualquer testilha), é depósito necessário, legal, porquanto o legislador não deferiu ao estabelecimento bancário o direito de recusar-se a recebê-lo. Ao revés, a Resolução nº 2814, do Conselho Monetário Nacional deixou claro que é obrigatório, para os bancos oficiais, receber depósitos dessa natureza.

É depósito feito em conta aberta para esse fim (o devedor deverá indicar expressamente, na efetivação do depósito, qual o fim a que se destina, que obrigação objetiva extinguir), mas não esclarece o legislador quem é o titular da conta, se o depositante ou o beneficiário. A Resolução do CMN supre essa deficiência ao dispor:

“Art. 3º Acolhido o depósito de consignação em pagamento, este fica à exclusiva disposição:

I – do credor, caso não seja recebida, pela instituição financeira, a recusa formal referida no art. 4º, parágrafo único, inciso II, alínea “a“;

II – do depositante, depois de recebida, pela instituição financeira, a recusa formal referida no inciso anterior;

III – do juízo competente, após proposta a ação de consignação em pagamento referida no art. 6º, prevista pela legislação em vigor”.

Por outro lado, cabe enfatizar que as regras estabelecidas nos parágrafos do art. 539, relativas ao depósito em instituição financeira concernem ao direito material e constituem uma opção do credor. Não se trata, pois, sequer daquilo a que sói a doutrina apelidar de condições de procedibilidade, até porque essas regras só têm possibilidade de incidir se no local houver estabelecimento bancário oficial. Se não, não poderá o devedor valer-se desse meio extrajudicial de exoneração de obrigação pecuniária.

O § 1º do art. 890 do Código de 1973 cuidava de em depósito em conta com correção monetária. Não se trata de conta de poupança que, além da correção monetária, prevê o pagamento de juros remuneratórios. o que não está previsto nesse parágrafo. De outra parte, os depósitos à vista nas instituições financeiras não são corrigidos monetariamente. Criou, assim, o legislador um brutal problema para as instituições financeiras oficiais e outro para o País: no momento em que todas as leis econômicas buscavam a desindexação de toda espécie de obrigação pecuniária, o legislador processual, na contramão da história – ou dotado de poderes premonitórios indicadores de futuro econômico nada alvissareiro -, impunham correção monetária como que lançando uma moção de desconfiança aos planos econômicos de fins do século passado. O novo Código eliminou a referência à correção monetária e remediou a questão.

O credor é comunicado da realização do depósito, por carta, com aviso de recepção. Diz a lei cientificando-se o credor. Seria lícito perguntar: Quem cientifica o devedor ou o banco depositário? Tenha-se em mente que o estabelecimento bancário não é sequer partícipe da relação obrigacional. Repugna o entendimento de impor-lhe graciosamente esse encargo. A resolução do CMN resolveu a questão, afirmando que o banco será o responsável pela cientificarão, mas será ressarcido pelo depositante.

Se o credor não manifestar a recusa ao estabelecimento bancário, no prazo decendial que a lei lhe concede, reputar-se-á o devedor liberado da obrigação, ficando à disposição do credor a quantia depositada.

Pode ocorrer, entretanto, que o credor não manifeste a recusa, não proceda ao levantamento do depósito e promova a competente ação de conhecimento ou de execução, conforme o título de que disponha. Nessas circunstâncias, competirá ao agora devedor/executado arguir, dentre outras defesas que tiver a existência de fato extintiva do direito do autor, procedendo-se na forma do art. 350 do CPC, cabendo ao autor.

manifestar-se sobre o alegado depósito. É claro, isso é cabível se tratar de ação de conhecimento. Se o credor aforar ação de execução, a matéria poderá ser discutida, pelo consignante, em objeção de pré-executividade ou em embargos.

Ainda em caso de recusa de recebimento do depósito, reza a lei que o devedor ou o terceiro poderá propor, dentro de um mês a ação de consignação, instruída a inicial com a prova do depósito e da recusa.

Quanto à natureza desse prazo certamente que dúvidas surgirão. Preclusão, prescrição ou decadência? Preclusão é fenômeno eminentemente endoprocessual e, até esse momento, não terá havido a instauração da relação processual. De prescrição não parece tratar-se porque, ainda que não aforada no prazo de trinta dias, continua o devedor com o direito de propor a ação (recorde-se que o parágrafo 1º cuida de uma opção do devedor, o que não se compadece com o instituto da prescrição, de evidente força cogente).

A nosso ver, trata-se de prazo decadencial do direito de realizar eficazmente a oferta pela via prevista no art. 539. Parece claro que, tendo havido a recusa e não tendo ocorrido a propositura da ação no prazo de 30 dias o que ocorre é que a presunção de que a oferta foi realizada desaparece (parece induvidoso que o depósito da soma devida configura oferta real). Passa a haver necessidade de demonstrar a mora accipiendi.

Nem o depósito nem a consignatória, é bom que seja recordado, inibem a propositura da competente ação de execução, se o credor dispuser de título executivo, em face da norma contida no § 1º do art. 784 do CPC/15.

Na inicial, agora, além dos requisitos do art. 319 do CPC que sejam aplicáveis à espécie, o autor requererá o depósito da quantia ou coisa devida (que deve ser realizado no prazo de cinco dias contados do deferimento, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito) ressalvada a hipótese do § 3º do artigo 539, em que o autor já terá depositado a importância em conta bancária, à disposição do credor. Nessa circunstância, a inicial já deverá vir acompanhada da prova do depósito e da recusa, fornecida pela instituição financeira; deverá requerer, também, a citação do réu para levantar o depósito ou oferecer contestação.

Quanto ao prazo para oferecer resposta, é bom observar que, à falta de regra específica, será o comum, de 15 dias. Na resposta, poderá alegar que: (i) não houve recusa ou mora em receber a quantia ou coisa devida; (ii) foi justa a recusa; (iii) o depósito não se efetuou no prazo ou no lugar do pagamento; e (iv) o depósito não foi integral.

No parágrafo único do artigo 544, merece especial atenção o fato de que o réu tem de indicar montante que entende devido, isto se sua contestação arguir que o depósito não foi integral. Casa-se a regra com a do art. 545 que permite ao autor complementar o depósito que tenha sido feito a menor.

O § 1º do art. 545 contém regra que deve ser entendida cum grano salis: o levantamento do depósito feito a menor só é possível se a defesa do credor se fundar exclusivamente nessa circunstância ou em defesas processuais de caráter meramente dilatório. Se se tratar de outras defesas de conteúdo material ou processual de caráter peremptório, cumuladas com insuficiência do depósito, que possam conduzir à total improcedência do pedido, não é de ser deferido o levantamento.

A regra do § 2º, na hipótese que regula, transforma a ação de consignação em pagamento numa espécie de actio duplex. De fato, é de comum ensinança que as sentenças que dão pela improcedência do pedido são declaratórias negativas. Negam a pretensão do autor e não atribuem qualquer direito ao réu (ressalvada a condenação na verba honorária, ressarcimento de despesas com o processo e condenação em litigância de má-fé).

No artigo sob exame, a ser seguida a mencionada regra geral, se insuficiente o depósito para exonerar o consignante da obrigação, seria de dar-se simplesmente pela improcedência do pedido. O legislador, nesse caso, inverte os polos da relação e transforma o réu em autor (sem pedido, mas com pretensão condenatória). A parte inicia o processo na qualidade de ré e termina como detentora de um título executivo judicial que é fruto do exame e decisão sobre uma relação jurídica de direito material.

Especial hipótese de consignação ocorre quando o devedor tem dúvida sobre a quem deva pagar. Nessa circunstância, deverá proceder ao depósito e requerer a citação de todos os possíveis titulares do crédito para que venham a juízo demonstrar sua legitimação. Independentemente de quantos acorram ao chamado citatório, se não houver discussão quanto ao valor do depósito, o juiz deverá (i) declarar satisfeita a obrigação e o processo continuará apenas entre os supostos credores, se houver mais de um; ou (ii) determinar a entrega do valor depositado ao réu, se apenas um comparecer. Não comparecendo pretendente algum, o depósito realizado é convertido em arrecadação de coisa vaga, com regência parca no art. 746 do CPC/15, mas que sugere uma recompensa ao inventor (aquele que achou a coisa) e a entrega do saldo à União, ao Estado ou ao Distrito Federal.

 

 

[1] Lei 8.950 (recursos), Lei 8.951 (consignação em pagamento e usucapião), Lei 8.952 (processo de conhecimento e processo cautelar), Lei 8.953 (processo de execução),de 13 de dezembro de 1994, Lei 9.028 (capacidade postulatória da AGU) de 12 de abril de 1995, Lei 9.079 (ação monitória) de 14.07.95, Lei 9.139 (recurso de agravo) de 30.11.95 e Lei 9.245 (procedimento sumário) de 26.12.95.

[2] Servimo-nos da publicação do Anteprojeto feita na Revista de Processo nº 43, jul/set 1986