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ABUSO DE AUTORIDADE POR DIVULGAÇÃO DE GRAVAÇÕES E VIOLAÇÃO DA VIDA PRIVADA, INTIMIDADE, HONRA E IMAGEM

Eduardo Luiz Santos Cabette

A lei incrimina, no seu art. 28, a divulgação indevida de gravações que possam ferir, sem justa causa, a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de investigado ou acusado.

Os bens jurídicos tutelados exsurgem claros na própria dicção do dispositivo, sendo eles a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF), bem como, mais genericamente, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF). Sempre está presente a tutela do regular funcionamento da Administração Pública, mais precisamente, da Administração da Justiça. Não há tutela do sigilo das comunicações telefônicas, informáticas ou telemáticas, previsto no art. 5º, XII, da CF, tendo em vista que, para tanto, há lei específica (Lei nº 9.296/1996).

Sujeito ativo do crime será qualquer agente público encarregado de cumprir o sigilo das gravações. Souza afirma que até mesmo o agente público aposentado, se guardar consigo cópia da gravação e a divulgar, poderá ser sujeito ativo[1]. Ousa-se discordar do autor em destaque, tendo em vista que os crimes de abuso de autoridade são funcionais e próprios, nos estritos termos dos arts. 1º e 2º da Lei nº 13.869/2019. O aposentado não é agente público e não pode mais agir no exercício da função, nem mesmo a pretexto de exercê-la, conforme dicção legal. No caso de um aposentado ou um particular (o aposentado é agora um “extraneus“), somente pode haver responsabilização na Lei de Abuso de Autoridade em caso de concurso de agentes e ciência de que o outro autor é funcionário público. A indevida divulgação feita pelo particular, abrangendo agentes aposentados, poderá configurar, conforme o caso, crimes contra a honra ou mesmo violações do sigilo previstas nos arts. 10 ou 10-A da Lei nº 9.296/1996, mas nunca crime de abuso de autoridade. Sujeito passivo será a pessoa atingida pela indevida divulgação em sua intimidade, vida privada, honra ou imagem.

Observe-se que o crime é material, pois o verbo “divulgar” implica resultado naturalístico e, portanto, admite tentativa. Ademais, é importante perceber que não é incriminada nesse tipo penal a realização da gravação em si, mas o ato ulterior de sua indevida “divulgação“. Além disso, a divulgação incriminada é aquela feita a terceiros ou publicizada (v.g., imprensa, mídias sociais etc.). É claro que, se um agente público consegue provas em gravação de um ilícito e remete tal conteúdo à autoridade competente ou com atribuição para a apuração, não comete crime algum[2]. Na verdade, poderia cometer se não fizesse essa remessa, por exemplo, por motivos pessoais (eventual “prevaricação“, nos termos do art. 319 do CP).

Será, então, que estaríamos diante de uma lacuna na lei penal? A indevida gravação seria fato atípico? Não nos parece. O crime em espécie tem natureza subsidiária (subsidiariedade tácita) e somente será aplicado quando não se tratar de gravações ou captações abrangidas por outros dispositivos penais, mais precisamente previstos na Lei nº 9.296/1996, que trata das interceptações telefônicas, inclusive com nova redação dada pela própria Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019) e pela chamada Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019).

A realização de uma interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática ou de escuta ambiental de forma ilegal, constitui o crime previsto no art. 10 da Lei nº 9.296/1996, com nova redação dada pela Lei nº 13.869/2019, afastando qualquer possibilidade de aplicação do art. 28 em estudo, mesmo porque se trata aqui de “divulgação” e não dos atos previstos na primeira parte do art. 10 da Lei de Interceptação Telefônica.

Entretanto, o art. 10 da Lei nº 9.296/1996 prevê também a quebra ilegal do segrego de justiça e, neste caso, pode abranger certamente o ato de uma divulgação. Entendemos que, nesses casos, ainda deve prevalecer o art. 10 em questão e afastar-se a aplicabilidade do art. 28 da Lei de Abuso de Autoridade, pois que este é tacitamente subsidiário. O art. 28 da Lei nº 13.869/2019 somente será aplicado em casos de divulgações de gravações que não tenham sido realizadas na forma da Lei nº 9.296/1996. A violação do segredo de justiça previsto na legislação respectiva pressupõe uma gravação feita com ordem judicial e envolvendo interceptação telefônica, de informática ou telemática ou escuta ambiental. As gravações a que se refere a Lei nº 13.869/2019 não podem ser dessa espécie, mas somente aquelas que também sejam legais (pois escutas ou interceptações ilegais recaem no art. 10 da Lei nº 9.296/1996) e diversas das relacionadas na legislação especial de interceptação. Por exemplo, a gravação de um depoimento, a gravação em local público de uma diligência policial, a gravação em atividade de campana, em local público, de suspeitos etc. Essas gravações previstas no art. 28 da Lei de Abuso de Autoridade, na falta de uma delimitação, devem ser interpretadas de maneira ampla, de modo a atingirem tanto o áudio, como imagens e audiovisual.

Também é de se afastar a aplicação do art. 28 da Lei nº 13.869/2019 quando se tratar da realização de captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos para investigação ou instrução criminal sem autorização judicial, quando esta for exigida, pois que há tipificação do art. 10-A da Lei nº 9.296/1996, com nova redação dada pela Lei nº 13.964/2019. Novamente a distinção é clara, pois aqui se trata da realização da captação ambiental e não da divulgação de seu conteúdo. Não obstante, novamente a legislação específica prevê a ilegalidade da divulgação pelo descumprimento por agente público do sigilo das investigações e, principalmente, pela revelação do conteúdo das gravações mantidas sob sigilo judicial. Pelos mesmos motivos acima expostos (subsidiariedade tácita do art. 28 da Lei nº 13.869/2019), deverá prevalecer a aplicação do crime nos termos do art. 10-A, § 2º, da Lei nº 9.296/1996, com nova redação dada pela Lei nº 13.964/2019.

É interessante notar que, na incipiente doutrina acerca do tema, falta, em regra, a percepção da necessária distinção entre os casos de aplicação do art. 28 da Lei de Abuso de Autoridade e aqueles atinentes aos crimes previstos nos arts. 10 e 10-A da Lei de Interceptações Telefônicas, tratando da questão como um bloco e fazendo sempre referência ao art. 28 da Lei nº 13.869/2019[3], o que é mesmo inviável, com o devido respeito, pois, no mínimo, há que considerar que este último dispositivo regula a “divulgação” de gravações, enquanto os demais regulam a “realização” destas. Além disso, como exposto, é visível que a quebra do sigilo pela divulgação de gravações feitas nos termos da Lei nº 9.296/1996 tem previsão legal específica, implicando a necessária subsidiariedade do art. 28 da Lei nº 13.869/2019, o que parece ter sido olvidado pela doutrina em geral. Há a argumentação que a quebra do sigilo com divulgação prevista nos tipos penais dos arts. 10 e 10-A da Lei de Interceptações se referiria somente aos casos em que o conteúdo da gravação tivesse relação com a prova, mas não existe esse limite nos respectivos dispositivos, nem o fato de haver essa limitação no art. 28 da Lei de Abuso de Autoridade tem o condão de restringir o alcance dos crimes mais graves previstos na Lei nº 9.9296/1996, os quais devem, necessariamente, prevalecer, sobre o crime de menor monta e claramente subsidiário. Ao reverso, a Lei nº 9.296/1996 até mesmo trata das gravações que não interessam à prova e de sua eliminação, de acordo com o art. 9º e seu parágrafo único daquele diploma, impedindo o afastamento dessas gravações das violações criminosas de sigilo previstas nos arts. 10 e 10-A da mesma legislação, sob pena de uma interpretação sistemática tortuosa.

Há, porém, quem, como nós, tenha se apercebido dessa necessária distinção entre o art. 28 da Lei de Abuso de Autoridade e os dispositivos da Lei de Interceptação Telefônica. Proverbial e digno de transcrição é o ensinamento de Souza:

O crime do art. 28 da Lei nº 13.869/2019 também pode ser confundido com o crime previsto no art. 10 da Lei de Interceptações, que é outra espécie de violação de segredo, porém, circunscrito às situações em que a informação sigilosa foi obtida mediante interceptação telefônica (com ou sem autorização judicial), circunstâncias que diferenciam as espécies delitivas. Com efeito, no novo delito, a informação divulgada, além de não ser necessariamente sigilosa, não foi, necessariamente, obtida mediante autorização judicial e nem mediante interceptação telefônica.[4]

Doutra banda, insta anotar que o art. 28 da Lei nº 13.869/2019 é especial em relação ao crime de “violação de sigilo funcional“, previsto no art. 325 do CP. Dessa forma, tratando especificamente de divulgação irregular de “gravações“, deve prevalecer, pelo princípio da especialidade, em relação ao tipo penal do Código Penal brasileiro, sendo este último aplicado para outras violações com objetos materiais diversos (v.g., informações, documentos, fotos, depoimentos escritos etc.).

A divulgação pode ser da gravação completa ou de trecho dela, conforme estabelece o art. 28 em estudo. Exige-se apenas o resultado de que haja exposição da intimidade, da vida privada, da honra ou da imagem do investigado ou acusado. Portanto, não são abrangidas gravações que sejam de conhecimento público ou captadas em público ou mesmo divulgadas inicialmente por ato do próprio investigado ou acusado. Também é requisito que a gravação divulgada não tenha relação com a prova a ser produzida. Fica evidenciado que o crime se configura com a divulgação de sons, imagens ou ambos que exponham de forma absolutamente inútil o investigado ou acusado. Se a divulgação se destina a, de alguma forma, contribuir para a investigação ou o processo, será lícita. Exemplificando: a) será ilícita a divulgação de parte de um depoimento de testemunha ou declaração de suspeito ou vítima em que se mencione detalhes da vida sexual de alguém que em nada contribuirão para as investigações; b) será lícita, porém, a divulgação de imagens de um local de roubo, com sons de voz e a fisionomia, bem como características físicas de um infrator, a fim de poder identificá-lo com obtenção de colaboração da sociedade.

Para a configuração do crime, não é exigida prévia decretação do sigilo, bastando que a divulgação seja feita afetando a privacidade, a intimidade, a honra ou a imagem do investigado ou acusado[5].

Parece até desnecessário salientar que essa infração penal ora em estudo pode referir-se a gravações ocorridas no curso de investigação pré-processual ou no decorrer do processo-crime, já que a lei faz menção ao “investigado” ou “acusado“. Aliás, atualmente, na maior parte das comarcas, as audiências são gravadas em audiovisual, ensejando a oportunidade para esse tipo de divulgação espúria e criminosa.

O crime é doloso, não havendo previsão de figura culposa. O dolo, como sempre, é específico, nos termos do art. 1º, § 1º, da Lei nº 13.869/2019. Além disso, deverá o agente ter em mente o desejo de fazer a divulgação da gravação sem ligação com a prova pretendida, com o fito de expor a intimidade, a privacidade, a honra ou a imagem do acusado ou investigado.

REFERÊNCIAS

GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de autoridade. Salvador: JusPodivm, 2020.

LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: Acadepol, 2020.

LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: JusPodivm, 2020.

MARQUES, Gabriela; MARQUES, Ivan. A Nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: RT, 2019.

SOUZA, Renee do Ó. Comentários à nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: JusPodivm, 2020.

[1] SOUZA, Renee do Ó. Comentários à Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: usPodivm, 020. p. 192.

[2] Op. cit., p. 193.

[3] Cf. LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 268-273; GRECO, Rogério; CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de autoridade. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 251-257; MARQUES, Gabriela; MARQUES, Ivan. A nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: RT, 2019. p. 125; LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: Acadepol, 2020. p. 126-127.

[4] SOUZA, Renee do Ó. Op. cit., p. 194.

[5] Op. cit., p. 193-194.

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