A TEORIA DA IMPREVISÃO E SEUS REFLEXOS NO DIREITO CONTRATUAL BRASILEIRO
Pedro Henrique Cavalcanti Souza
Com base em seu embasamento legal, nos princípios contratuais e na sua aplicação criteriosa, a teoria da imprevisão contribui para a construção de um ambiente contratual mais sólido e confiável, impulsionando o desenvolvimento econômico e social do país.
A legislação brasileira adota como pressupostos contratuais para validade de um contrato, o princípio da autonomia da vontade das partes, a presunção da paridade entre os contratantes e a simetria dos contratos civis e empresariais.
Assim, a partir da formação do contrato, com a estipulação de direitos e deveres de cada parte, nasce à obrigação de adimpli-lo. Dessa forma, surge a obrigação de seguir os termos da avença como se lei fosse, em razão do princípio do pacta sunt servanda. Portanto, tal preceito impossibilita as partes de se desvincularem do compromisso firmado à própria maneira.
Contudo, essa obrigatoriedade não é absoluta. Há a necessidade de atendimento aos pressupostos de validade do negócio jurídico, elencados no artigo 104 do Código Civil de 2002, a saber: (a) agente capaz; (b) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e (c) forma prescrita ou não defesa em lei.
Ainda, mesmo com o cumprimento dos elementos essenciais de um negócio jurídico, a liberdade de contratar encontra limites nas regras da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, que devem ser interpretadas de acordo com a natureza da relação jurídica.
Isso ocorre porque, no âmbito das relações contratuais, é comum que surjam situações imprevisíveis que afetam substancialmente o equilíbrio financeiro e a execução das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a teoria da imprevisão tem notória relevância, uma vez que busca proporcionar soluções adequadas diante de mudanças imprevistas nas circunstâncias fáticas e econômicas dos contratos.
A teoria da imprevisão, também conhecida como princípio rebus sic stantibus, consiste na possibilidade de revisão contratual ou de sua resolução quando eventos imprevisíveis e extraordinários ocorrem, tornando a execução do contrato excessivamente onerosa ou desproporcional a uma das partes. Trata-se da máxima de que as obrigações terão validade apenas enquanto a situação que deu origem a elas se mantiver, no intuito de evitar a desproporção entre a prestação e a contraprestação de um negócio jurídico, causando, como consequência, um enriquecimento injusto de uma parte às custas da outra.
No ordenamento jurídico brasileiro, a teoria da imprevisão surge em meados da década de 30 a partir da doutrina e jurisprudência, todavia, foi consagrada pelo Código de Defesa do Consumidor, de 1990, e pelo Código Civil, de 2002.
No Código Consumerista, o princípio rebus sic stantibus está previsto no artigo 6º, inciso V, como direito básico do consumidor a revisão de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
A lei 10.406/02, por sua vez, dispõe de uma seção dedicada à aplicação da teoria da imprevisão nos contratos de execução continuada ou diferida. Em seu artigo 478, é estabelecida a possibilidade de resolução do contrato, caso as circunstâncias econômicas, supervenientes à celebração do negócio jurídico, tornarem a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra.
Observa-se que, para ser possível a aplicação da teoria da imprevisão, é necessário o preenchimento de certos pressupostos. Primeiramente, é preciso que ocorra uma alteração extraordinária das circunstâncias, que não poderia ser prevista pelas partes no momento da celebração do contrato. Ademais, essa mudança deve tornar a execução do contrato excessivamente onerosa para uma das partes, gerando um desequilíbrio contratual. Por fim, é fundamental que o evento imprevisto não seja consequência de uma conduta culposa ou negligente da parte afetada.
Os efeitos da teoria da imprevisibilidade sobre os contratos é constantemente levado à análise dos Tribunais pátrios, já havendo passado pelo crivo do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob diferentes enfoques, como nos contratos administrativos, nas relações consumeristas e, recentemente, com o advento da pandemia da Covid-19, nos contratos de locação. Neste último, importa destacar o posicionamento adotado pelo STJ quanto à possibilidade de redução do valor do aluguel de contratos de locação não residencial durante os períodos de lockdowns.
No julgamento do REsp. 1.984.277[1], entendeu-se pela possibilidade de revisão judicial de contratos de salas comerciais, com redução proporcional do valor dos aluguéis em razão de fato superveniente decorrente da pandemia da Covid-19. Como justificativa para a decisão, os ministros do STJ fundamentaram que a revisão do contrato mediante a redução proporcional e temporária do valor dos aluguéis representava medida necessária para assegurar o restabelecimento do equilíbrio econômico e financeiro entre as partes, estando em consonância com os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato[2].
Conforme o caso exposto acima, a aplicação da teoria da imprevisão é capaz de causar impactos relevantes no direito contratual brasileiro. Um dos seus reflexos mais comuns é a possibilidade de revisão do contrato, que pode envolver o ajuste do valor da contraprestação, de prazos ou outras modificações que sejam necessárias para compensar a mudança imprevista. Ainda, em casos mais extremos, é possível buscar a resolução do contrato, em que o negócio jurídico firmado é considerado extinto e as partes são liberadas de suas obrigações.
Ao permitir a revisão ou resolução do contrato, busca-se restabelecer o equilíbrio entre os contratantes diante de mudanças inesperadas, garantindo que as partes não sejam prejudicadas de forma desproporcional e que os contratos cumpram sua função social, adaptando-se às mudanças das circunstâncias e evitando situações de desequilíbrio prejudiciais ao interesse público.
É importante ressaltar que a aplicação da teoria da imprevisão não deve ser vista como uma forma de incentivar a quebra arbitrária de contratos, mas sim como um mecanismo de ajuste e preservação das relações contratuais diante de mudanças excepcionais e imprevisíveis. A sua aplicação deve ser pautada em critérios objetivos e em um rigoroso exame das circunstâncias específicas de cada caso, de modo a garantir a segurança jurídica e evitar abusos.
Em um cenário de constantes mudanças econômicas, sociais e tecnológicas, a teoria da imprevisão desempenha um papel fundamental na manutenção do equilíbrio contratual, promovendo relações jurídicas mais justas e adaptáveis. Com base em seu embasamento legal, nos princípios contratuais e na sua aplicação criteriosa, a teoria da imprevisão contribui para a construção de um ambiente contratual mais sólido e confiável, impulsionando o desenvolvimento econômico e social do país.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/390057/teoria-da-imprevisao-e-seus-reflexos-no-direito-contratual-brasileiro
[1] Resp. 1.984.277 – DF, Quarta Turma do STJ, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 16.08.2022.
[2] A visão do STJ sobre a teoria de imprevisão nas relações contratuais, 2023. Disponível em:
https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/26032023-A-visao-do-STJ-so bre-a-teoria-de-imprevisao-nas-relacoes-contratuais.aspx. Acesso em: 13 jul. 2023.