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A SUCESSÃO SOCIETÁRIA NA LIMITADA UNIPESSOAL

A SUCESSÃO SOCIETÁRIA NA LIMITADA UNIPESSOAL

Tânia Bahia Carvalho Siqueira

 

Quando se aborda a governança corporativa nas sociedades limitadas, uma das pautas é o tratamento, no contrato social, da vontade dos sócios quanto à destinação das suas quotas e os critérios para apuração dos haveres na hipótese de falecimento de algum integrante da sociedade.

O evento morte, não raras vezes, dá causa a litígios com dimensão capaz de até mesmo inviabilizar a continuidade da empresa. É inquestionável que o rompimento do vínculo societário em relação ao sócio falecido pode gerar conflitos de expressiva magnitude, seja com relação ao ingresso dos herdeiros na sociedade, seja quanto a apuração do valor dos direitos patrimoniais decorrentes da participação do de cujus que deverão ser pagos aos herdeiros.

Daí a importância de o contrato social se alinhar às melhores práticas de governança e disciplinar a sucessão societária.

Tomando por premissas que a morte de um sócio não implica dissolução automática da sociedade, o evento morte não gera a transmissão do status de sócio aos herdeiros e a sucessão gera efeitos tão somente de ordem patrimonial, temos que a regra geral aplicável à situação é a da liquidação das quotas do sócio falecido para pagamento aos herdeiros, preservando a subsistência da atividade empresarial.

Nesse sentido, disciplina o Código Civil em seu artigo 1.028, in verbis:

No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo: se o contrato dispuser diferentemente; se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade; se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido.”

A previsão legal, portanto, opera com o pressuposto de aplicação da regra geral caso os sócios deixem de regular a matéria de acordo com a sua vontade e interesses no instrumento de constituição da sociedade.

Convém enfatizar que o texto legal deixa clara a ideia de omissão no tratamento da matéria pelos sócios para aplicação da regra geral.

Por outro lado, confere autonomia para que, na intenção de regular a sucessão societária, sejam introduzidas no contrato social cláusulas que evidenciem esse propósito prevendo, por exemplo, a admissão dos herdeiros no quadro de sócios, excluindo, consequentemente, a liquidação das quotas do autor da herança.

É claro que essa possibilidade, na prática, deverá se conectar com o interesse dos herdeiros em integrar o quadro de sócios, ou seja, a cláusula não vincula os herdeiros.

O inciso III do artigo 1.028 acima transcrito também abre a possibilidade de, mesmo se inexistente norma contratual, os sócios remanescentes entabularem acordo com os herdeiros, objetivando a substituição do sócio falecido pelos próprios herdeiros.

Assim, a sociedade não terá o ônus da liquidação das cotas pelo desembolso dos recursos correspondentes aos haveres do autor da herança, com a consequente redução do seu capital social.

Aliás, esse acordo pode envolver a atribuição das quotas do sócio falecido para os sócios remanescentes ou para terceiros, a quem caberá o pagamento da participação do sócio falecido, mantendo íntegro o capital social da sociedade.

Por fim, o artigo 1.028 do Código Civil, em seu inciso II, aponta outra opção à liquidação das quotas do sócio falecido que é a deliberação dos sócios remanescentes pela dissolução total da sociedade. A alternativa conduziria à liquidação com rateio entre os sócios do saldo que sobejar da realização do ativo e pagamento do passivo.

 

Sucessão e sócio único

Como se viu, o modelo sucessório traçado no Código Civil atua como regra geral, deixando para as partes interessadas, no exercício da autonomia da vontade, disporem de soluções que se ajustem aos interesses e perfil da organização, por meio de cláusulas no contrato social ou mesmo em acordo de sócios.

Ou seja, nas sociedades limitadas pluripessoais, a disciplina da sucessão advém do Código Civil e do contrato que, conforme já comentado, pode e deve regular a questão de forma detalhada, afastando a litigiosidade que a divergência de interesses e os haveres apurados podem gerar.

Mas e como fica a questão sucessória na sociedade limitada unipessoal? A solução vem revelada na IN Drei Nº 81, de 10 de junho de 2020, ao dispor que: “no caso de falecimento do sócio único, pessoa natural, a sucessão dar-se-á por alvará judicial ou, no caso de partilha, por sentença judicial ou escritura pública de partilha de bens”.[1]

Desse modo, parece não haver alternativa diversa senão a obtenção de alvará judicial para que o inventariante, representado os interesses patrimoniais do espólio, possa dar continuidade aos negócios e, inclusive, nomear administrador da sociedade na hipótese de o sócio falecido ter exercido também a administração. A solução exigirá alteração do contrato social para nomeação do novo administrador, função que poderá, inclusive, recair sobre o próprio inventariante, desde que, logicamente, não estejam presentes os impedimentos dispostos no artigo 1.011 do Código Civil.

O procedimento vem didaticamente explicado na IN Drei nº 01, de 24 de janeiro de 2024, que incorpora alterações na IN Drei nº 81/2020 em vários pontos, dentre os quais se destaca o Anexo IV — Manual de Registro da Sociedade Limitada.

Ao apontar as alterações no item 4.5 do manual, expõe o texto qual o procedimento a ser observado também na hipótese de o inventário já ter se encerrado, seja judicial ou extrajudicial, com ingresso de herdeiro na sociedade, em decorrência da transferência das quotas advinda da partilha.

Nessa linha, deverá ser promovida alteração do contrato social com a qualificação do herdeiro (ou herdeiros, hipótese em que a sociedade deixará de ser unipessoal) no preâmbulo na condição de sucessores, inserindo-se cláusula que explicite a transferência das quotas em virtude da partilha realizada.

 

Inventariante não vira dono das quotas do sócio falecido

Imprescindível não remanescer dúvidas quanto ao fato de que o inventariante não assume a titularidade das quotas do sócio falecido, mas sim a representação dos interesses patrimoniais do espólio até que sobrevenha a partilha, isto é, a representação é transitória, preservando-se a marcha regular dos negócios.

E isso porque o falecimento do único sócio da sociedade limitada “não resulta na extinção automática de sua personalidade jurídica, de modo que, não tendo havido ainda sua dissolução regular, a empresa mantém não só sua personalidade jurídica, mas também sua responsabilidade patrimonial distinta da pessoa natural de seu sócio”.[2]

A propósito, o Anexo IV da IN Drei 81/2020, com as alterações introduzidas pela IN Drei 1/2024, ao apontar as cláusulas opcionais no contrato social de sociedade limitada, sugere a seguinte: “falecendo ou interditado o sócio único, a sociedade continuará suas atividades com os herdeiros e sucessores e o incapaz. Não sendo possível ou inexistindo interesse destes, a sociedade será dissolvida”. Portanto, o contrato social poderá dispor quanto à continuidade da empresa com os herdeiros, o que ocorrerá caso os interesses coincidam, claro.

Em arremate, não sem razão sustenta-se a importância de os atos constitutivos das sociedades limitadas assumirem o protagonismo na disciplina dos aspectos sucessórios, com o propósito não só de afastar discussões e divergências, mas de preservar os interesses da sociedade e, assim, assegurar estabilidade ao exercício da empresa.

 

[1]  https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/drei/legislacao/instrucoes-normativas

[2] TJSP; Agravo de Instrumento nº 2017236-91.2024.8.26.0000; Relator: José Wagner de Oliveira Melatto Peixoto; 37ª. Câmara de Direito Privado; j. em 7/02/2024.