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A RESSUSCITAÇÃO DIGITAL DOS MORTOS: REPERCUSSÕES NA RESPONSABILIDADE CIVIL

A RESSUSCITAÇÃO DIGITAL DOS MORTOS: REPERCUSSÕES NA RESPONSABILIDADE CIVIL

Maria de Fátima Freire de Sá

 Bruno Torquato de Oliveira Naves

 

A “ressuscitação digital” está se tornando uma realidade com o aprimoramento das tecnologias que reproduzem com precisão a imagem e a voz de pessoas falecidas. Essa inovação permite encontros virtuais nos quais é possível ver, ouvir e até sentir a sensação de tocar a pessoa já falecida.

 

1. INTRODUÇÃO

Já imaginou ter um encontro virtual com algum morto querido? Não apenas vê-lo, mas ouvir sua voz, conversar e até ter a sensação de tocá-lo?

O aprimoramento de tecnologias que permitem a reprodução exata da imagem e da voz de pessoas já falecidas tem permitido a chamada “ressuscitação digital”, que é feita por meio da manipulação digital dos registros de som e de imagem da pessoa que morreu.

Essa realidade chama atenção para importantes questionamentos na utilização da imagem, da voz e dos dados digitais de pessoas falecidas que, em vida, não manifestaram consentimento para tal, seja para reprodução de falas e imagens seja para a criação de áudios e vídeos inéditos. A quem cabe o uso de dados pessoais de pessoas falecidas? Mesmo existindo consentimento para a utilização após a morte, há limite de uso?

 

2. DADOS VIVOS DE PESSOAS MORTAS

Em comemoração ao dia dos pais, o Mercado Livre, em parceria com a Soundthinkers, exibiu uma propaganda com a recriação da voz de José Antunes Coimbra, pai do ex-jogador Zico, construindo uma frase nunca dita por aquele, em que pedia que o filho fizesse um gol em sua homenagem. O ex-jogador, postado no meio do campo, foi surpreendido pela voz de seu pai com o pedido, veiculado no sistema de som do estádio. Para que isso fosse possível, a Soundthinkers usou um vídeo do arquivo pessoal de Zico e um sistema de síntese neural, e criou um dicionário de voz personalizado e um novo texto com fala digitalizada.

Esse caso aparentemente é inofensivo, o que não retira a dificuldade de justificá-lo juridicamente, em especial no que toca aos direitos da personalidade.

Os aspectos que reduzem a problematicidade do evento vertem no sentido de que (a) Zico voluntariamente forneceu arquivos com a voz e a imagem do pai; (b) não houve violação da imagem-atributo[1], porquanto a propaganda não distorceu a identidade socialmente construída; e (c) não se está diante de deepfake[2], pois o comercial identifica a voz como construção de inteligência artificial.

No entanto, além do problema de se “reviver” os mortos em contextos por eles não vividos, está-se diante da falta de consentimento do retratado para tal reconstrução. Os direitos da personalidade são intransmissíveis, logo o simples consentimento dos parentes próximos não importaria em validade do negócio jurídico.

No entanto, na prática, nada disso é revolvido ou condenado se o ato não estiver atrelado a uma situação de contrafação ou deepfake.

Ainda que o uso da imagem seja autorizado pelos parentes ou herdeiros, há que se questionar sobre a permanência do direito da personalidade à imagem propagada após a morte.

 

3. SOBREVIDA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

O tema em análise nos remete a pensar se há sobrevida dos direitos da personalidade. Em princípio, os direitos da personalidade pressupõem a existência da pessoa, em sentido jurídico.

A personalidade jurídica termina com a morte. Com ela extinguem-se todas as situações subjetivas que lhe são inerentes, inclusive os direitos da personalidade. Além do mais, diz-se, comumente, que os direitos da personalidade não admitem transferência, só podendo ser exercidos por seu titular.

Por várias vezes, todavia, o ordenamento protege o que aparenta ser uma “continuidade da personalidade do morto”, como é o caso do parágrafo único do art. 20 do Código Civil.

Como explicar direitos da personalidade de quem não é mais pessoa?

A doutrina clássica estabeleceu que os direitos da personalidade fossem direitos subjetivos, isto é, comporiam relações jurídicas intersubjetivas, na posição de sujeito ativo, o detentor do direito, e sujeitos passivos determinados ou não, com o dever de se absterem de quaisquer atos lesivos à dignidade da pessoa.

Mas, e o morto, como atribuir a ele direitos subjetivos? Haveria reflexos de direitos a justificar a tutela jurídica, uma vez lesada a imagem do indivíduo que ele foi?

A teoria clássica da relação jurídica busca explicar a situação do morto por meio de um de quatro argumentos: a) não haveria um direito da personalidade do morto, mas um direito da família, atingida pela ofensa à memória de seu falecido membro; b) há tão somente reflexos post mortem dos direitos da personalidade, embora personalidade não exista de fato; c) os direitos da personalidade, que antes estavam titularizados na pessoa, com a sua morte passam à titularidade coletiva, já que haveria um interesse público no impedimento de ofensas a aspectos que, ainda que não sejam subjetivos, guarnecem a própria noção de ordem pública; e, por fim, d) com a morte, transmitir-se-ia a legitimação processual, de medidas de proteção e preservação, para a família do defunto[3].

Pela primeira opção (a), a família seria vítima em razão de ofensa à memória do morto.

Não podemos concordar com o surgimento de um novo direito porque se encontra despido de qualquer conteúdo, criado, simplesmente, para satisfazer à fundamentação da tutela judiciária.

Ao se dizer que há reflexos de direitos da personalidade (b), embora personalidade já não mais exista, pressupõe-se que pode haver consequência sem causa. Estamos a criar uma nova categoria de “reflexos de direitos sem direitos” ou, pior, “reflexos de direitos sem personalidade”.

Como terceira corrente, a noção de titularidade coletiva de direitos (c) nada mais é do que um lugar comum para se tentar justificar um paternalismo e uma posição funcionalista sem qualquer fundamentação. É estranho passar a titularidade de informações personalíssimas, definidoras da própria pessoa, a uma coletividade que não possui sequer os mesmos interesses.

Por fim, apresenta-nos a ideia de que a legitimatio é transmitida aos parentes (d). Caio Mário da Silva Pereira chega mesmo a afirmar que o direito de ação é transferido a determinadas pessoas.[4] O problema dos “direitos da personalidade do morto” resumir-se-ia a uma questão de tutela processual. No entanto, a legitimidade processual tem existência própria e distinta do direito material. Além do mais, há interesses e expectativas de direitos que podem proporcionar a alguém a atuação processual. É o caso dos legitimados referidos pelo parágrafo único do art. 20 do Código Civil.

Dessa maneira, admitimos a existência de um interesse legítimo da família e, portanto, de alteração da legitimidade. Mas direito subjetivo não há. Ele se extinguiu com a morte. Resta agora um interesse, cuja legitimação processual é dada a certas pessoas.

Em relação aos dados pessoais, por exemplo, direito realmente não há. Não há que se confundir direito subjetivo e interesse legítimo. O primeiro se traduz em um poder de atuação, guarnecido por diversas faculdades e por pretensão. Já o segundo, é uma situação que só pode ser reclamada judicialmente, pois não se concede um espaço de atuação extrajudicial, mas tão somente “uma pretensão razoável cuja procedência ou não só pode resultar do desenvolvimento do processo”[5].

O morto não tem direito aos dados pessoais, mas pode existir interesse legítimo da família na proteção dos mesmos. A proteção pode se dar inclusive contra a própria família. Isso ocorre porque o interesse não possibilita um campo de atuação, como é comum nos direitos subjetivos. Assim, a família não pode atuar sobre os dados da pessoa falecida, a não ser que esta, em vida, tenha expressamente concedido o direito de exploração da imagem manipulada. E, sendo assim, admitimos a existência de um direito subjetivo criado negocialmente pela outorga do titular.

Sem o consentimento, à família se defere apenas a legitimidade processual na defesa da situação jurídica de interesse.

Com o consentimento, haveria um direito a ser explorado, mas pautado em pressupostos de emissão de vontade válida, que incluem não somente a capacidade e a legitimidade material, mas também a idoneidade do objeto.

A manifestação de vontade é necessária e validada por três princípios jurídicos: boa-fé, informação e autonomia. Como já dissemos em outra ocasião:

A boa-fé informa toda a construção interna da vontade e sua manifestação, pois exige que ambas as partes atuem segundo um padrão de lealdade e lisura, não gerando, no outro, falsas expectativas e procedendo com a segurança que a intervenção de saúde exige. A informação garante que a manifestação de vontade não se forme unilateralmente, mas dialogicamente, permitindo que as partes ponderem argumentos e alternativas. E a autonomia privada protege o livre desenvolvimento da personalidade pela satisfação de interesses críticos e experienciais na tomada de decisão, respeitado o grau de discernimento.[6]

O consentimento para a manipulação e o uso da imagem deve se dar por documento escrito, que explicite tal permissão no âmbito de limites temporais, temáticos e pessoais. Os limites temporais deverão ser fixados por meio de termo final ou de condição resolutiva, porquanto temerário seria o uso por tempo indeterminado. Os limites temáticos referem-se ao contexto em que a imagem será colocada ou à atuação fictícia que se imporá a ela. Logo, é improvável que a cessão ultrapasse os contornos da pessoalidade edificada em vida, configurada na imagem-atributo. Por fim, os limites pessoais vertem na determinação das pessoas a quem se concede a cessão de uso e manipulação da imagem.

Como não há forma prescrita em lei, defendemos a necessidade de um documento escrito, particular ou público, podendo, inclusive, ser o próprio testamento.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Saudade, apego, medo da morte são sentimentos desde sempre experimentados pelo ser humano, que é confrontado com a inevitabilidade do fim.

A ressuscitação digital dos mortos leva-nos à intransmissibilidade e à vitaliciedade dos direitos da personalidade.

O uso da imagem manipulada pode não ter maiores consequências jurídicas se respeitados os limites impostos pelo titular. E exatamente por isso propusemos que a cessão se efetive por meio de documento escrito.

Não se trata de cessão de direito da personalidade. Não existe direito da personalidade do morto. Com a morte, cessa a personalidade e, ato contínuo, os direitos da personalidade.

Direito da personalidade é, tradicionalmente, considerado direito subjetivo, pois concede a seu titular um poder de atuação e de pretensão sobre aquele que o viole. A morte extingue este direito, que não é transferido para a família.

A situação jurídica subjetiva a envolver o morto na proteção da imagem é de interesse legítimo. É nesse ponto que se instaura a confusão entre legitimidade processual e titularidade material.

Não se trata de uma discussão nova, basta pensar nos direitos morais de autor. A repercussão patrimonial é transmitida, mas não a titularidade da obra. Quanto à imagem, o documento de cessão cria direito subjetivo de uso e manipulação para o cessionário, embora esse direito não se confunda com direito da personalidade.

Tendo como pressuposto o documento em que o titular da imagem permite o uso desta após a sua morte, a violação do interesse legítimo dos familiares faz nascer uma pretensão indenizatória de que pode se valer algum herdeiro eventualmente excluído da decisão e do contrato de utilização de imagem do parente falecido. Da mesma forma, poderão os legitimados requerer indenização se houver extrapolação do objeto por parte do cessionário da imagem, tendo em vista os limites temporais, temáticos e pessoais estabelecidos contratualmente.

Ainda há que se especular que a situação concreta pode conduzir o agente que explora comercialmente a imagem a obter ganhos maiores do que o dano suportado pelos herdeiros do falecido. Ou seja, como nos mostra Nelson Rosenvald e Bernard Korman Kuperman[7], a função compensatória da responsabilidade civil pode se mostrar insuficiente diante de agentes racionais, “uma vez que, casos como esse, transmitem o sinal econômico que o ilícito não só se paga, mas remunera bem.” Nesse caso é fundamental a pretensão restitutória que, pautada no enriquecimento sem causa, justifica a responsabilidade civil pela extrapolação lucrativa daquele que explora a imagem do falecido.

 

[1] Imagem-retrato é a materialização audiovisual do indivíduo por meio de representação da personalidade. E imagem-atributo se relaciona aos aspectos de construção da pessoalidade, ali inseridos valores e construção de vida.

[2] Deepfake é a imagem ou som que passou por processo de edição, por meio de inteligência artificial, com o intuito de gerar aparência de fato real. Com o uso da técnica de edição, se pode modificar o conteúdo da fala, inserir uma pessoa em um contexto, substituir uma pessoa por outra etc.

[3] Tal divisão em quatro fundamentações se faz presente por razões didáticas, sem que, com isso, possamos afirmar a existência de correntes doutrinárias claras e bem definidas.

[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil; teoria geral do direito civil. 20. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p. 243.

[5] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 263.

[6] NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2021, p. 139-140.

[7] ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017, p. 12.