A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA NA VISÃO DO STJ
Munir Saleh Silva
Augusto Cézar Lukascheck Prado
O contrato de compra e venda pode ser compreendido como o negócio jurídico geneticamente bilateral, formado pela conjugação de duas declarações jurídico-negociais que são congruentes quanto aos meios e convergentes quanto aos fins e que atribui a um dos contratantes o dever de transferir o domínio de certa coisa e ao outro o dever de pagar certo preço em dinheiro.
Instituto dos mais relevantes para o direito privado, o contrato de compra e venda — considerado por alguns o contrato por excelência — suscita diversas controvérsias decorrentes da sua profícua utilização como instrumento de distribuição dos bens da vida na sociedade capitalista. Conforme aponta Pontes de Miranda, “a compra-e-venda é o negócio mais frequente, quanto à circulação dos bens. É essencial ao regime social baseado no dinheiro”[1].
O Superior Tribunal de Justiça é constantemente chamado a dirimir as mais distintas controvérsias acerca desta espécie contratual, tendo a presente coluna o objetivo de sintetizar as principais teses jurídicas fixadas pela Corte sobre o contrato de compra e venda, antes da Lei nº 13.786/2018 [2], procurando apresentá-las didática e sistematicamente.
Resolução do contrato de compra e venda de imóvel: questões definidas pelo STJ
Os contratos de compra e venda, de promessa de compra e venda, de cessão e de promessa de cessão são previstos como irretratáveis pela Lei de Incorporação Imobiliária (art. 32, § 2º) e pela Lei de Parcelamento de Solo Urbano (artigo 25).
Isso porque, em regra, uma vez firmado o contrato, as partes vinculam-se às cláusulas contratuais estabelecidas (pacta sunt servanda).
Se, por um lado, o Código Civil não prevê um direito geral de desistência dos contratos, por outro, o CDC trata do direito de desistência de forma limitada, apenas para as compras realizadas fora do estabelecimento comercial (artigo 49).
Em previsão específica para os contratos de compra e venda mediante pagamento em prestações, o CDC considera “nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado” (artigo 53).
Na esteira do artigo 475 do CC, a literalidade da norma prevê apenas ao lesado pelo inadimplemento o direito de pleitear a resolução do contrato, nada mais.
No entanto, o STJ decidiu que a parte inadimplente pode pleitear a resolução unilateral do contrato, com a restituição das parcelas pagas, diante da insuportabilidade das prestações, ou seja, invocando o seu próprio inadimplemento[3]. Estabeleceu-se, portanto, jurisprudencialmente, uma hipótese de direito de desistência.
Como o inadimplemento é o motivo autorizador da resolução, não se admite que o comprador a pleiteie na hipótese de contrato já adimplido, conforme já decidido pelo STJ[4].
Sobre a restituição de valores, a Corte fixou, na Súmula 543, originada do Tema 577[5], que “na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador — integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento”.
A restituição imediata pelo vendedor se justifica pelo fato de que o comprador é obrigado a restituir o imóvel de forma imediata, já que, em regra, não se pode restituir o bem em parcelas.
Por sua vez, a questão da restituição integral ou parcial das parcelas pagas merece maior aprofundamento, sendo necessário conciliar diversos entendimentos jurisprudenciais.
A resolução do contrato implica, como consequência direta, a restituição das partes ao estado anterior (status quo ante). Portanto, ela apaga, “ex tunc, todos os efeitos, e o negócio jurídico é tratado como se nunca tivesse existido”[6].
Nesse sentido, entende o STJ que, “uma vez decretada a resolução do contrato, deve o Juiz, independentemente de reconvenção ou provocação, determinar a restituição recíproca de todos os valores necessários para que as partes retornem ao estado anterior à avença — o que pode ser pleiteado em sede de liquidação de sentença, quando esta for omissa”[7].
Quando o inadimplemento é do vendedor (ex., atraso na entrega), não há dúvidas de que o comprador lesado pode exigir a resolução do contrato e será devida a restituição integral das parcelas pagas, como consequência do retorno ao estado anterior. Trata-se da aplicação direta do artigo 475 do CC.
Por outro lado, quando o inadimplemento é do comprador, a restituição integral das parcelas pagas como consequência da resolução acarretaria prejuízo injusto ao vendedor, fazendo-o suportar integralmente as despesas administrativas do negócio desfeito por culpa da outra parte.
Nessa hipótese, o vendedor é “a parte lesada pelo inadimplemento”, razão pela qual tem ele o direito de pleitear indenização por perdas e danos, nos termos do artigo 475 do CC, além da restituição das partes ao estado anterior.
Muitas vezes, esse problema encontrava solução no próprio contrato, diante da previsão de cláusula penal, estabelecendo o perdimento das parcelas pagas pelo comprador, na hipótese de seu inadimplemento, usualmente denominada de cláusula de decaimento.
Seja em razão da cláusula penal, seja em razão da indenização por perdas e danos sofridos pelo vendedor, surgiu a discussão sobre imposição de limite à retenção das parcelas pagas, considerando que a perda total das prestações adimplidas “configuraria vantagem exagerada atribuída ao fornecedor, em detrimento do consumidor”[8].
O artigo 413 do CC já autorizava a redução da cláusula penal, mas o artigo 53 do CDC foi mais claro ao estabelecer, como mencionado, a nulidade das cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas.
Nota-se que o dispositivo se refere à “perda total das prestações”. É inegável, portanto, que não se admite a retenção da integralidade das parcelas pagas. Por sua vez, embora a retenção de 99% das parcelas não consista em “perda total”, práticas como essa devem ser igualmente repudiadas, pois ofendem de forma clara a finalidade da norma, que é vedar a “perda substancial”[9], desproporcional e abusiva das parcelas pagas pelo consumidor.
Assim, a “cláusula que estipular pena para o inadimplemento da obrigação do consumidor deverá ser equitativa e estabelecer vantagem razoável para o fornecedor, proporcional à sua posição e participação no contrato”[10].
A apuração do percentual de retenção deveria, em um cenário ideal, ser objeto de análise casuística pelo juiz, deduzindo, do valor a ser restituído, apenas as despesas efetivamente comprovadas pelo vendedor, evitando sempre a perda substancial das parcelas pagas.
No entanto, o STJ adotou solução pragmática, estabelecendo um percentual de retenção, abrangendo a cláusula penal e as perdas e danos. Inicialmente, considerou-se a possibilidade de variação das despesas em cada hipótese, fixando que o percentual de retenção deveria ficar entre 10% a 25%, conforme as circunstâncias de cada caso[11].
Posteriormente, a 2ª Seção do STJ consolidou o entendimento de que, na resolução de contrato de compra e venda de imóvel, por culpa do comprador, o percentual de retenção deve corresponder a 25% dos valores pagos, por ser o adequado para indenizar as despesas gerais e desestimular o rompimento unilateral do contrato, tendo caráter indenizatório e cominatório[12]. Esse é o percentual atualmente adotado pela Corte para os contratos celebrados antes da vigência da Lei nº 13.786/2018.
O STJ já reforçou que “referido percentual possui natureza indenizatória e cominatória, de forma que abrange, portanto, de uma só vez, todos os valores que devem ser ressarcidos ao vendedor pela extinção do contrato por culpa do consumidor e, ainda, um reforço da garantia de que o pacto deve ser cumprido em sua integralidade”[13].
No mesmo precedente, decidiu-se que o valor de comissão de corretagem (I) é considerado abrangido pelo percentual de 25% de retenção e, (II) se foi pago pelo comprador, como autoriza o Tema 938/STJ, “deve ser devolvido integralmente na hipótese de desfazimento do contrato por culpa da vendedora”.
Todavia, não está abrangido pelo referido percentual a taxa de fruição ou ocupação, que tem “natureza jurídica de aluguéis”, consistente no valor a ser pago pelo comprador ao vendedor, em razão do tempo em que aquele teve o imóvel à sua disposição e este ficou impedido de fruir do bem. Com o fim de evitar enriquecimento ilícito do comprador, o STJ decidiu que, “independentemente de ter sido ocupado o bem, mantém-se os 25% de retenção dos valores pagos pelos adquirentes e a taxa de ocupação será cobrada separadamente, quando comprovada a utilização do imóvel edificado”[14].
Por fim, quanto à taxa de ocupação, devem ser observados outros dois entendimentos.
Em primeiro lugar, não é devida a taxa de ocupação ou fruição, quando o imóvel objeto do contrato consistir em lote ou terreno não edificado, pois, nessa hipótese, a resolução do contrato não enseja qualquer enriquecimento do comprador ou empobrecimento do vendedor[15].
Em segundo lugar, nos termos do Tema 970/STJ, “a cláusula penal moratória tem a finalidade de indenizar pelo adimplemento tardio da obrigação, e, em regra, estabelecida em valor equivalente ao locativo, afasta-se sua cumulação com lucros cessantes”[16]. Em outras palavras, havendo cláusula penal moratória estabelecida em valor equivalente ao valor do aluguel, também não será cabível a fixação de taxa de ocupação[17].
Breves considerações sobre o cenário posterior à Lei nº 13.786/2018
A Lei nº 13.786/2018 (Lei do Distrato) foi promulgada com o objetivo de disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano.
O advento da nova lei suscita debate acerca de sua coexistência com o CDC, notadamente tendo em vista que toda a jurisprudência acima sintetizada foi elaborada a partir das disposições do diploma consumerista e do Código Civil.
Sobre o ponto, existem, pelo menos, três soluções possíveis.
Em primeiro lugar, é possível entender que a jurisprudência do STJ sobre a matéria, por ser fruto da interpretação do CC e do CDC, não mais prevalece após a vigência da Lei nº 13.786/2018. Nesse caso, as novas resoluções contratuais deveriam observar as regras nela fixadas e a nova jurisprudência que vier a se formar.
Em segundo lugar, é possível concluir que, havendo antinomia entre a Lei do Distrato e o CDC, deverá este prevalecer pelo critério da especialidade. Com efeito, a relação de consumo sempre será mais especial, com raríssimas exceções, pois se caracteriza pela especial presença de um sujeito vulnerável.
Por fim, é possível adotar uma posição intermediária, tendo em vista que o CDC trata do tema de forma bastante ampla, vedando a perda substancial das parcelas pagas. Assim, é possível entender que se aplica as disposições da Lei do Distrato somente quando não acarretar a perda substancial das parcelas pagas, sob pena de ofensa ao CDC, que deve prevalecer no conflito aparente de normas, em razão do critério da especialidade.
A questão encontra-se em aberto. A 2ª Seção do STJ enfrentaria a matéria em 3/4/2025, no julgamento dos REsp 2.106.548/SP, 2.117.412/SP, 2.117.412/SP e 2.111.681/SP, mas os recursos foram remetidos de volta à 3ª Turma, que apreciará o tema.
Conclusão
A coluna buscou compreender a relação entre os diversos entendimentos consolidados pelo STJ sobre a resolução do contrato de compra e venda, explicitando a sua coerência e harmonia.
Em síntese, quando o contrato for celebrado antes da vigência da Lei nº 13.786/2018, devem ser observados os seguintes entendimentos pacíficos do STJ sobre o tema:
I) Quando a culpa da resolução é da vendedora/construtora, deve haver a restituição integral das parcelas pagas ao comprador;
II) Se a culpa for do comprador, a restituição será parcial e o percentual de retenção das parcelas pagas será sempre 25%;
III) Esse percentual abrange todas as despesas suportadas pelo vendedor, inclusive comissão de corretagem;
IV) Pode ser cobrado separadamente, apenas, a taxa de ocupação (aluguéis), pelo tempo de privação de uso do imóvel edificado;
V) Quando o imóvel for terreno não edificado, não incide taxa de fruição;
VI) Quando a cláusula penal moratória for estabelecida em valor equivalente ao locativo, também não será cabível a fixação de taxa de ocupação;
VII) A restituição dos valores ao comprador deve ser feita de forma imediata;
VIII) O adimplemento das prestações por ambas as partes de contrato de compra e venda de imóvel submetido ao CDC obsta o exercício do direito de desistência pelo consumidor;
IX) Uma vez decretada a resolução do contrato, deve o juiz, independentemente de reconvenção ou provocação, determinar a restituição recíproca de todos os valores necessários para que as partes retornem ao estado anterior à avença – o que pode ser pleiteado em sede de liquidação de sentença, quando esta for omissa.
[1] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, compra e venda. t. 39. Atual. Claudia Lima Marques. São Paulo: RT, 2012, p. 60.
[2] Optou-se por abordar as teses jurídicas anteriores à Lei nº 13.786/2018 por representar, de maneira segura, a jurisprudência consolidada do tribunal.
[3] REsp 132.903/SP, Quarta Turma, DJ 19/12/1997; EREsp 59.870/SP, Segunda Seção, DJ 9/12/2002.
[4] REsp 2.023.670/SP, Terceira Turma, DJe 15/9/2023.
[5] REsp 1.300.418/SC, Segunda Seção, DJe 10/12/2013.
[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: direito das obrigações, extinção das obrigações. t. 25. Atual. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery. São Paulo: RT, 2012, p. 429.
[7] REsp 2.045.024/SP, Terceira Turma, DJe 20/4/2023.
[8] NERY JR., Nelson. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto do CDC e da Lei do Superendividamento. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 544.
[9] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. São Paulo: RT, 2022, p. RL-1.17.
[10] NERY JR., Nelson, op. cit, p. 544.
[11] REsp 1.224.921/PR, Terceira Turma, DJe 11/5/2011; REsp 476.775/MG, Quarta Turma, DJ 4/8/2003.
[12] EAg 1.138.183/PE, Segunda Seção, DJe 4/10/2012; REsp 1.723.519/SP, Segunda Seção, DJe 2/10/2019.
[13] REsp 1.820.330/SP, Terceira Turma, DJe 1/12/2020.
[14] REsp 2.024.829/SC, Terceira Turma, DJe 10/3/2023.
[15] REsp 1.863.007/SP, Terceira Turma, DJe 26/3/2021.
[16] REsp 1.635.428/SC, Segunda Seção, DJe 25/6/2019.
[17] O Tema 970/STJ se aplica na hipótese de inadimplemento tanto do comprador, quanto do vendedor.