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A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL E O TESTAMENTO PARTICULAR

A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL E O TESTAMENTO PARTICULAR

Flávio Tartuce

 

Seguimos neste espaço a tratar das propostas da reforma do CC a respeito do testamento, sendo pertinente sempre lembrar que uma das linhas metodológicas seguidas pela Comissão de Juristas nomeada no Senado Federal foi a de reduzir as burocracias, destravando a vida das pessoas, o que se aplica ao testamento particular.

Essa modalidade é também chamada de testamento hológrafo, uma vez que escrito pelo próprio testador, sem maiores formalidades. Apesar de ser a forma mais fácil de ser concretizada, não tem a mesma segurança do testamento público, não sendo tão comum a sua celebração em nosso País.

De acordo com o art. 1.876, caput, do CC em vigor, o testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico, como por máquina de escrever ou computador. Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade que seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever, confirmando o ato de última vontade (§ 1.º). Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de tê-lo lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão (§ 2.º desse art. 1.876).

Sobre o § 1.º do art. 1.876, julgado do TJ/MG manteve regra da confirmação pelas testemunhas mesmo com a pandemia de Covid-19, como se extrai da seguinte ementa:

“Apelação cível. Direito de sucessões. Testamento particular. Ação de confirmação e cumprimento. Art. 1.876, § 1º, do CC. Formalidades legais. Ausência de testemunhas. Situação excepcional. Art. 1.879 do CC. Não configuração. Nulidade confirmada. O art. 1.876, § 1.º, do CC prevê os requisitos essenciais para a validade do testamento particular. Embora se reconheçam as dificuldades trazidas pela pandemia da Covid-19, com o fechamento de cartórios de registro público, como também diante da internação da autora por outra doença grave, não há como confirmar-se o testamento particular, que não observou os requisitos legais de art. 1.879, § 1.º, do CC, na falta de declaração, no próprio instrumento, da excepcionalidade que justificasse a dispensa das testemunhas testamentárias e a condição mental da testadora, especialmente sem qualquer prova de que a testadora estivesse em completa situação de isolamento no hospital do SUS. Recurso não provido” (TJ/MG, Apelação Cível 5000637-85.2021.8.13.0002, 8.ª câmara Cível Especializada, rel. juiz conv. Paulo Rogério de Souza Abrantes, j. 5/8/2022, DJEMG 11/8/2022).

Com o devido respeito, não estou filiado, a priori, ao entendimento transcrito, pois penso que em tempos pandêmicos, e a depender das circunstâncias fáticas, a regra do art. 1.876, § 1.º, do CC poderia ser mitigada, em prol da autonomia privada e da conservação do negócio jurídico testamentário.

A propósito dessa última afirmação, observa-se que a jurisprudência superior tem mitigado os requisitos formais do testamento particular sem, todavia, eliminar todos eles. A título de ilustração, tem-se entendido que “a jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que, para preservar a vontade do testador, são admissíveis determinadas flexibilizações nas formalidades legais exigidas para a validade do testamento particular, a depender da gravidade do vício de que padece o ato de disposição. Precedentes. (…). São suscetíveis de superação os vícios de menor gravidade, que podem ser denominados de puramente formais e que se relacionam essencialmente com aspectos externos do testamento particular, ao passo que vícios de maior gravidade, que podem ser chamados de formais-materiais porque transcendem a forma do ato e contaminam o seu próprio conteúdo, acarretam a invalidade do testamento lavrado sem a observância das formalidades que servem para conferir exatidão à vontade do testador. (…). Na hipótese, o vício que impediu a confirmação do testamento consiste apenas no fato de que a declaração de vontade da testadora não foi realizada na presença de três, mas, sim, de somente duas testemunhas, espécie de vício puramente formal incapaz de, por si só, invalidar o testamento, especialmente quando inexistentes dúvidas ou questionamentos relacionados à capacidade civil do testador, nem tampouco sobre a sua real vontade de dispor dos seus bens na forma constante no documento. (…)” (STJ, REsp 1.583.314/MG, 3.ª turma, rel. min. Nancy Andrighi, j. 21/8/2018, DJe 23/8/2018).

Em 2020, essa mitigação consolidou-se de tal forma no âmbito do STJ que a sua 2ª seção passou a admitir a feitura de um testamento particular com a assinatura digital do testador. Conforme parte da ementa do acórdão, “em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador. Conquanto a jurisprudência do STJ permita, sempre excepcionalmente, a relativização de apenas algumas das formalidades exigidas pelo CC e somente em determinadas hipóteses, o critério segundo o qual se estipulam, previamente, quais vícios são sanáveis e quais vícios são insanáveis é nitidamente insuficiente, devendo a questão ser examinada sob diferente prisma, examinando-se se da ausência da formalidade exigida em lei efetivamente resulta alguma dúvida quanto à vontade do testador” (STJ, REsp 1.633.254/MG, 2ª seção, rel. min. Nancy Andrighi, j. 11/3/2020, DJe 18/3/2020).

Ainda conforme o julgado e analisando diretamente a questão, vejamos o seguinte trecho, que serviu como base para a elaboração das propostas constantes do projeto de reforma do CC:

“Em uma sociedade que é comprovadamente menos formalista, na qual as pessoas não mais se individualizam por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID’s, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida captados a partir da reiterada e diária coleta de seus dados pessoais, e na qual se admite a celebração de negócios jurídicos complexos e vultosos até mesmo por redes sociais ou por meros cliques, o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor e a sua relevância, devendo ser examinados em conjunto com os demais elementos que permitam aferir ser aquela a real vontade do contratante. A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular, pois, traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se, ainda que excepcionalmente, a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador. Hipótese em que, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva” (STJ, REsp 1.633.254/MG, 2.ª seção, rel. min. Nancy Andrighi, j. 11/3/2020, DJe 18/3/2020).

Pois bem, no citado PL 4/25, como não poderia ser diferente, almeja-se a redução de burocracias para o testamento particular, na mesma linha das proposições para as outras formas ordinárias de testamento. Assim, de início, projeta-se no art. 1.876 a possibilidade de o testamento particular ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico, ou pode ser gravado em sistema digital de som e imagem. Mais uma vez, portanto e assim como se dá com o testamento público, possibilita-se o testamento por vídeo, que já era pleiteado pela doutrina há tempos.

Nos termos do seu novo § 2º, reduzindo-se as burocracias, e o seu número de testemunhas de três para duas, “se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido diante de pelo menos duas testemunhas, que o subscreverão”. A redução do número de testemunhas consta de outras proposições do próprio projeto de reforma, que visa a facilitar a vida das pessoas no ambiente dos negócios jurídicos privados.

Eventualmente, consoante o novo § 3º desse art. 1.876 do CC, se o testamento particular for realizado por sistema digital de som e imagem, deve haver nitidez e clareza na gravação das imagens e sons, bem como declarar a data da gravação, sendo esses os requisitos essenciais à sua validade, além da intervenção simultânea de duas testemunhas identificadas nas imagens.

A norma proposta em seu quarto e último parágrafo estabelece que o testamento particular deverá ser gravado em formato compatível com os programas computadorizados de leitura existentes na data da celebração do ato, contendo a declaração do testador de que no vídeo consta o seu testamento, bem como sua qualificação completa e a das testemunhas. Tudo isso para que se possa efetivamente atestar a vontade do morto pelo testamento por vídeo.

Ainda quanto ao instituto, no projeto de reforma do CC sugere-se que o seu art. 1.878 também passe a mencionar o testamento por vídeo. Atualmente a norma estabelece em seu caput que, “se as testemunhas forem contestes sobre o fato da disposição, ou, ao menos, sobre a sua leitura perante elas, e se reconhecerem as próprias assinaturas, assim como a do testador, o testamento será confirmado”. E, nos termos do seu vigente parágrafo único, “se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade”.

Consoante o novo comando que é proposto para a norma, “se as testemunhas forem contestes sobre o fato da disposição, e se reconhecerem as próprias assinaturas, ou quando, por programa de gravação, reconhecerem as suas imagens e falas, assim como as do testador, o testamento será confirmado”. Se no caso concreto, nos termos do seu remodelado parágrafo único, faltarem as testemunhas, por morte ou ausência, o testamento poderá ser confirmado se, a partir dos demais elementos de prova, não houver dúvida fundamentada sobre a autenticidade da assinatura, das imagens ou sobre a higidez das declarações manifestadas pelo testador. Não se pode negar que a aprovação dessas proposições é mais do que necessária, para a tão citada redução de burocracias e para que seja possível a efetivação do ato de última vontade por vídeo, sem se perder a necessária segurança jurídica.

Como outra temática importante a respeito do testamento particular, o art. 1.879 da lei civil trata do testamento de emergência, que constitui uma forma simplificada de testamento particular. Nos seus termos literais vigentes, “em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz”.

Como exemplo recente de aplicação do instituto, cite-se o paciente que se encontrava na iminência de ser entubado, por ter contraído o coronavírus (Covid-19), e que quisesse fazer esse testamento de emergência ou hológrafo simplificado. Pontue-se que tentamos a inclusão de regra a respeito dessa hipótese no então projeto de lei que deu origem à lei 14.010/20, que criou o regime emergencial em Direito Privado em tempos de pandemia (RJET), o que não foi aceito no âmbito do Congresso Nacional. Todavia, isso não obsta que tal situação se enquadre na figura em estudo.

Ainda sobre essa forma de testamento, destaque-se que na VII Jornada de Direito Civil, promovida em setembro de 2015, aprovou-se o seguinte enunciado: “o testamento hológrafo simplificado, previsto no art. 1.879 do CC, perderá eficácia se, nos 90 dias subsequentes ao fim das circunstâncias excepcionais que autorizam a sua confecção, o disponente, podendo fazê-lo, não testar por uma das formas testamentárias ordinárias” (enunciado 611).

O objetivo da ementa doutrinária aprovada é a aplicação das mesmas premissas previstas para as modalidades especiais de testamento para a categoria tratada no art. 1.879 do CC, o que é correto tecnicamente. Vejamos as suas justificativas apresentadas naquela Jornada:

“O CC permite que, em circunstâncias extraordinárias (que deverão ser declaradas na cédula), o disponente elabore testamento particular de próprio punho sem a presença de testemunhas. As formalidades são flexibilizadas em função da excepcionalidade da situação em que se encontra o testador, permitindo-se que este exerça sua manifestação de última vontade. Ocorre que, em se verificando o desaparecimento das mencionadas circunstâncias extraordinárias, não se justifica a subsistência do testamento elaborado com mitigação de solenidades. Destaque-se que esta é a regra aplicável para as formas especiais de testamento (marítimo, aeronáutico e militar), para as quais de modo geral se aplica um prazo de caducidade de 90 dias, contados a partir da data em que se faz possível testar pelas formas ordinárias. Por essa razão, conclui-se que, não havendo mais o contexto de excepcionalidade, o testamento hológrafo simplificado perde sua razão de ser, devendo o testador se utilizar de uma das formas testamentárias revestidas das devidas e necessárias solenidades”.

No projeto de reforma do CC pretende-se a inclusão do citado enunciado doutrinário no texto de lei, além da viabilidade do testamento hológrafo simplificado digital ou por vídeo. Nesse contexto, o seu art. 1.879 passará a prever que, “em circunstâncias excepcionais declaradas pelo testador, o testamento particular escrito e assinado de próprio punho ou em meio digital, ou gravado em qualquer programa ou dispositivo audiovisual pelo testador, sem testemunhas ou demais formalidades, poderá ser confirmado, se, a partir dos demais elementos de prova, não houver dúvida fundamentada sobre a autenticidade da assinatura, das imagens ou sobre a higidez das declarações manifestadas pelo testador”. E, conforme o seu necessário parágrafo único, na linha do enunciado 611 da VII Jornada de Direito Civil: “perde a eficácia o testamento particular excepcional, se o testador não morrer no prazo de noventa dias, contados da cessação das circunstâncias excepcionais declaradas na cédula ou no dispositivo eletrônico”.

Mais uma vez, o objetivo é o de se incluir na norma jurídica a posição doutrinária majoritária, conforme enunciado aprovado em Jornada de Direito Civil, resolvendo-se dilema verificado nos mais de vinte anos de vigência da codificação privada de 2002, e encerrando debate que ainda se vislumbra na teoria e na prática.

Como último tema a ser tratado neste texto, o art. 1.880 do CC enuncia que o testamento particular pode ser escrito em língua estrangeira, contanto que as testemunhas a compreendam. Não se pode negar que é preciso incluir na norma a possibilidade do testamento com o uso das tecnologias assistivas, em prol da proteção das pessoas com deficiência, fazendo com que o preceito passe a prever o seguinte: “Art. 1.880. O testamento particular pode ser escrito em língua estrangeira ou em Braille, contanto que as testemunhas o compreendam. Parágrafo único. O testamento particular em sistema digital de som e imagem poderá ser gravado em língua estrangeira ou em LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais, compreensível das testemunhas”.

Em prol da dignidade da pessoa humana e da inclusão, e do que está previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência e na Convenção de Nova Iorque, espera-se a aprovação da proposição, assim como as anteriores, visando a trazer mais efetividade ao instituto do testamento particular em nosso País.

 

FONTE: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/435133/a-reforma-do-codigo-civil-e-o-testamento-particular