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A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL E AS MUDANÇAS QUANTO AO REGIME DE BENS. PARTE 2

A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL E AS MUDANÇAS QUANTO AO REGIME DE BENS. PARTE 2

Flávio Tartuce

No último texto publicado neste canal comecei a analisar algumas das mudanças propostas para o tema do regime de bens, pela Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado Federal, para a Reforma e a Atualização do Código Civil de 2002, tendo como base o Anteprojeto oficialmente entregue no dia 17 de abril de 2024.

No meu artigo anterior foram abordadas as proposições relativas ao art. 1.639 – com o novo tratamento da alteração extrajudicial do regime de bens, perante o Tabelionato de Notas – e ao art. 1.653 do Código Civil – na regulação da chamada “sunset clause” ou cláusula de caducidade, literalmente a “cláusula do pôr do sol”, que possibilitará a alteração automática do regime de bens convencionado no casamento ou na união estável, por previsão no pacto.

Neste segundo texto da série, abordarei outro tema de relevo para a prática do Direito de Família, qual seja a possibilidade de criação de um regime misto, e algumas de suas consequências.

A criação de um regime de bens atípico ou misto, além do rol previsto no Código Civil, há tempos é defendida pela doutrina brasileira, podendo ser encontrada a sua defesa em praticamente todos os livros de Direito de Família da doutrina contemporânea. Nesse sentido, a resumir essa posição doutrinária, o Enunciado n. 331, aprovado na III Jornada de Direito Civil, no remoto ano de 2006: “o estatuto patrimonial do casal pode ser definido por escolha de regime de bens distinto daqueles tipificados no Código Civil (art. 1.639 e parágrafo único do art. 1.640), e, para efeito de fiel observância do disposto no art. 1.528 do Código Civil, cumpre certificação a respeito, nos autos do processo de habilitação matrimonial”. Mais recentemente, em 2022, na I Jornada de Direito Notarial e Registral, surgiu o Enunciado n. 80, originário de proposta por mim formulada: “podem os cônjuges ou companheiros escolher outro regime de bens além do rol previsto no Código Civil, combinando regras dos regimes existentes (regime misto)”.

A propósito, cumpre esclarecer que, para o que têm sustentado a falta de metodologia na elaboração das propostas da Reforma – talvez porque não leram todo o projeto ou não acompanharam a sua tramitação na Comissão de Juristas, por desinteresse inicial ou mesmo por desleixo –, a maioria esmagadora das projeções tem origem nos enunciados doutrinários aprovados nas citadas Jornadas – promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, com o apoio do Superior Tribunal de Justiça. Também visaram a consolidar na lei o posicionamento jurisprudencial dos Tribunais Superiores, sobretudo em temas de repercussão geral.

Por isso, na essência, as propostas não trazem grandes novidades para os civilistas e especialistas nos assuntos correlatos, visando apenas a consolidar na lei o que já se aplica na prática, em prol da segurança jurídica, da certeza e da instabilidade institucional.

A existência de cerca de oitocentos enunciados doutrinários interpretativos aprovados nas Jornadas, em vinte anos de vigência do Código Civil, já serve para demonstrar a imperiosa necessidade de reforma e atualização, para resolver problemas técnicos e sanar lacunas na legislação privada. Foi em um desses congressos que surgiu o debate inicial sobre a necessidade de se reformar a codificação privada. Lembro, a esse propósito, que na VIII Jornada de Direito Civil foi composta uma comissão temática para ouvir sugestões de propostas de alteração.

A realização de nove Jornadas de Direito Civil, até aqui, igualmente demonstra que a Lei Geral Privada está sendo intensamente debatida desde a sua origem, sendo necessário também lembrar que a grande maioria dos juristas que compuseram a Comissão nomeada no âmbito do Senado não só participou, mas foi grande protagonista desses importantes eventos.

Voltando-se ao cerne principal deste texto, a possibilidade de se admitir um regime atípico está na proposta de um novo art. 1.640 para o Código Civil de 2002. De acordo com o novo caput ora projetado, “não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges ou conviventes, o regime da comunhão parcial”. Como se pode perceber, mais uma vez há a unificação do tratamento de instituto de Direito de Família tanto em relação ao casamento quanto no que diz respeito à união estável, mantendo-se como regime legal ou supletório a comunhão parcial de bens.

Ao contrário do que pensam alguns, esse regime deve ser mantido como premissa-geral no ordenamento jurídico brasileiro, pois é hoje a opção natural da grande maioria dos brasileiros, que geralmente não procuram afastá-lo por convenção por entenderem ser ele a solução justa e correta para reger as relações patrimoniais do seu casamento ou união estável. Não se verificou, portanto, qualquer justificativa plausível para que, como poucos sustentam, a separação convencional de bens passasse a ser o regime supletório.

Seguindo-se no estudo do art. 1.640 ora projetado, consoante o novo § 1º, “poderão os cônjuges ou conviventes optar por qualquer dos regimes que este Código regula e, quanto à forma desta manifestação, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas”. Assim, no caso da união estável, a escolha por outro regime também exige a escritura pública, para o chamado pacto convivencial.

Acrescente-se que foi retirado expressamente do sistema civilístico o regime da participação final nos aquestos, diante de sua pouca efetividade prática e por não ter sido a opção dos brasileiros nos vinte anos de vigência da codificação. Sobre essa conclusão, justificou a Subcomissão de Direito de Família – formada pelos juristas Pablo Stolze Gagliano (sub-relator), Ministro Marco Buzzi, Maria Berenice Dias e Rolf Madaleno – que “suprimiu-se todo o confuso regramento do regime de participação final nos aquestos, atendendo a clamor da doutrina, e, sem dúvida, da própria sociedade: ‘mas, como dissemos na abertura deste capítulo, esse regime não deverá cair no gosto da sociedade brasileira’”. A sugestão foi acatada pelos Relatores Gerais e por todos os demais membros da Comissão de Juristas. Foram mantidos, além da comunhão parcial, os regimes da separação convencional e da comunhão universal de bens.

A possibilidade de previsão de regime atípico, nossa temática central, está no novo § 2º do art. 1.640, in verbis: “é lícito aos cônjuges ou conviventes criarem regime atípico ou misto, conjugando regras dos regimes previstos neste Código, desde que não haja contrariedade a normas cogentes ou de ordem pública”. Constata-se que geralmente o regime atípico traz em seu conteúdo a conjugação de outros regimes. Segue-se o modelo dos contratos atípicos, que no geral e igualmente conjugam elementos de outros negócios já existentes, por aplicação do art. 425 do Código Civil: “é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”.

A título de exemplo, é possível instituir, em relação ao bens móveis adquiridos durante o casamento ou a união estável, a separação de bens; enquanto a comunhão parcial será eficaz para os bens imóveis. Pode-se estabelecer a separação convencional como regra do regime, com exceção para determinados bens, como para imóveis adquiridos por ambos ou para valores depositados em determinada conta bancária, mantida conjuntamente entre os consortes. Como outra ilustração, se os cônjuges ou conviventes assim o quiserem poderão estipular apenas algumas das regras da participação final nos aquestos, que serão revogadas.

Há assim, como foi uma das premissas gerais da Reforma, uma valorização considerável da autonomia privada, da vontade individual e da liberdade, o que guiou o trabalho da Comissão de Juristas. Tudo isso, desde que não haja contrariedade a normas cogentes ou de ordem pública, o que foi reforçado no art. 1.655 do Código Civil como já é na atualidade, pela menção à “disposição absoluta de lei”. Na nova redação proposta para o último dispositivo, mais clara e completa, ficaria ele com a seguinte dicção: “é nula de pleno direito a convenção ou cláusula do pacto antenupcial ou convivencial que contravenha disposição absoluta de lei, norma cogente ou de ordem pública, ou que limite a igualdade de direitos que deva corresponder a cada cônjuge ou convivente”.

Destaco que a limitação relativa à igualdade de direitos de cada consorte é fundamental, para afastar cláusulas ou disposições que, por exemplo, importem em violência patrimonial ou que se traduzam em onerosidade excessiva para um deles. Adota-se, mais uma vez, o modelo existente para os contratos, por aplicação da função social do contrato (art. 421), da boa-fé objetiva (art. 422 do CC) e institutos correlatos a esses dois princípios.

Justificada a proposta de inclusão do regime atípico na lei, no próximo texto anteciparei o tema relativo à ampliação de comunicação de bens na comunhão parcial (art. 1.660), e a divisão de bens havidos por ambos os consortes, além da compensação financeira por serviços prestados no lar na separação convencional de bens (art. 1.688). Essa ampliação no tratamento específico dos regimes foi feita para compensar a retirada da concorrência sucessória, temática que precisa ser mais bem debatida e exposta na realidade brasileira

Existe hoje uma afirmação incorreta sendo difundida, sobretudo nas redes sociais, no sentido de que o cônjuge deixou de ser herdeiro. Afirma-se que “a viúva deixou de ser herdeira”. Isso não é verdade, pois será a ela assegurado o direito real de habitação, como premissa geral e em qualquer regime de bens, o que constitui desde sempre um direito sucessório (art. 1.831). Além disso, em situações de vulnerabilidade, o cônjuge terá direito a um usufruto legal sucessório, sem limitações (art. 1.850, § 1º, do CC). O que foi retirado foi o seu tratamento como herdeiro necessário, no art. 1.845, mas não como herdeiro.

A Comissão de Juristas entendeu que a concorrência sucessória do cônjuge e convivente com os descendentes (art. 1.829, inc. I) e com os ascendentes (art. 1.829, inc. II) não “deu certo”, nos vinte anos do Código Civil de 2002. Além de acirrar o conflito, tornando os inventários infindáveis, a concorrência não se coaduna com a realidade atual das famílias constituídas. Esse já um debate antigo da doutrina, não havendo também qualquer novidade quanto às posições que foram adotadas. A par dessa realidade, a nossa proposta inicial foi de extinção da concorrência sucessória, o que cabe agora ao Congresso Nacional analisar.

Esse será, portanto, o tema do meu próximo texto, com maiores detalhamentos e aprofundamentos, a ser publicado neste canal, ainda com relação ao regime de bens e à ampliação da comunicação e de participação patrimonial por nós sugerida.