A PRESCRIÇÃO E A ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL
Marco Aurélio Bellizze
Em matéria de prescrição, ainda persistem dúvidas jurídicas que, certamente, serão alvo de propostas e debates em prol da segurança jurídica.
A prescrição é instituto voltado para proporcionar segurança jurídica às relações sociais, mas é também objeto de muitas dúvidas e debates entre os operadores do direito. Nesse sentido, a Comissão de Juristas criada pelo Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para revisão e atualização da lei 10.406/02, da qual tenho a honra de participar, tem importantes desafios, bem como uma oportunidade singular[1] de aprimorar o tratamento legal da prescrição para que dela se extraia maior segurança jurídica para as relações civis[2].
A ausência de um critério legal para distinguir prescrição e decadência no Código Civil de 1916[3] transferiu para a doutrina esta tarefa. Nesse contexto, reproduzindo o debate internacional entre as correntes alemã e ítalo-francesa, os doutrinadores brasileiros se dividiram entre aqueles que vislumbravam na prescrição uma causa de extinção da ação[4] e outros que a compreendiam como uma causa de extinção do direito[5].
Na década de 1960, Agnelo Amorim Filho publicou artigo criticando a distinção dessas figuras a partir de seus efeitos e propondo um critério baseado na classificação dos direitos subjetivos em direitos a uma prestação e direitos potestativos. Em sua perspectiva, os primeiros demandam a interposição de uma ação condenatória e estariam sujeitos à prescrição, ao passo que os segundos, tutelados por ações constitutivas, seriam submetidos às regras da decadência[6].
Na preparação do Código Civil de 2002 foi notória a preocupação da Comissão responsável pelo anteprojeto em distinguir estes institutos[7], ao inserir na Parte Geral (arts. 205 e 206) os prazos de prescrição, e confiar os prazos de decadência à Parte Especial[8]. A distinção destes prazos pelo legislador teria se orientado pelo critério proposto por Agnelo Amorim Filho, segundo a doutrina[9].
O legislador também fez uma importante escolha dogmática em 2002, alinhando-se à perspectiva alemã da ansprunch, ao estabelecer no art. 189 que a prescrição atua sobre a pretensão. Por pretensão, a doutrina nacional, em sua maioria, entende a ação em sentido material ou substancial[10], o poder de agir ou de exigir uma prestação de outrem[11].
Com efeito, essa opção do legislador chancelou a natureza jurídica da prescrição como uma exceção de direito material, tal como delineada na doutrina de Pontes de Miranda[12]. Todavia, muitas dúvidas ainda pairam sobre o instituto da prescrição, especialmente na identificação e aplicação adequada dos prazos às respectivas pretensões.
Do ponto de vista dogmático, a doutrina critica a redação do art. 189 do Código Civil por sugerir que: (i) toda pretensão nasce de uma violação do direito e (ii) a prescrição extingue a pretensão.
A primeira afirmativa não se sustenta, pois há várias situações nas quais a pretensão surge sem que um direito seja violado, como no advento do termo para devolução da quantia objeto de um contrato de mútuo[13], nas pretensões inibitórias, naquelas decorrentes de direitos reais[14] e na recusa antecipada ao cumprimento da obrigação[15].
A segunda afirmação vai de encontro à natureza jurídica da prescrição como uma exceção, que não extingue direito e nem pretensão, mas encobre a sua eficácia; ela também não coaduna com a possibilidade de renúncia da prescrição, admitida no art. 191 do Código Civil.
Outro aspecto relevante sobre a prescrição é a definição dos prazos. Sabe-se que o legislador promoveu em 2002 uma considerável redução em relação ao Código anterior, uma vez que o prazo geral passou de vinte para dez anos (art. 205), e os prazos específicos variam de um a cinco anos (art. 206). Contudo, a identificação do prazo aplicável – se especial ou geral – é um ponto sensível, especialmente para os magistrados.
O prazo prescricional da responsabilidade civil contratual é um exemplo. O Código Civil estabeleceu um prazo trienal para “a pretensão de reparação civil” (art. 206, §3º, V), porém muito se discutiu se esse prazo especial é aplicável também à reparação civil decorrente de um descumprimento contratual.
No julgamento dos REsps. 1.360.969/RS e 1.361.182/RS, destaquei que o único fundamento para continuar aplicando o prazo geral – agora decenal – às pretensões de responsabilidade civil contratual era tratar-se de um direito pessoal. Contudo, esse critério foi abandonado pelo legislador em 2002, que o substituiu pelas hipóteses específicas e pela regra subsidiária, previstas nos arts. 206 e 205, respectivamente. Na mesma ocasião, expressei minha preocupação e os malefícios de identificar a natureza da pretensão, e com isso o prazo prescricional aplicável, apenas com base na designação que o autor escolhe para sua ação.
Desde então admitindo que a expressão “reparação civil” abarca pretensões da responsabilidade contratual e extracontratual, pois nenhuma distinção foi feita pela lei, manifestei meu entendimento de que o prazo trienal é aplicável às pretensões de reparação civil decorrentes de ato ilícito e ou de descumprimento contratual.
No julgamento do REsp. 1.281.594/SP[16], a Terceira Turma adotou a tese da unificação do prazo prescricional na responsabilidade civil. Como relator, salientei que o Código Civil de 2002 abraçou a tendência de redução dos prazos prescricionais, que a tese de unificação dos prazos da responsabilidade civil melhor se adequa aos objetivos de segurança e estabilidade das relações e, ainda, que nem mesmo o Código de Defesa do Consumidor, diploma voltado para regular relações assimétricas e proteger os vulneráveis, dispôs de prazo prescricional tão extenso quanto o Código Civil.
Em 2018, ao julgar os EDREsp. 1.280.825/RJ, a Segunda Seção, por maioria, decidiu que o prazo prescricional da responsabilidade civil é decenal, pois não está abarcado na expressão “reparação civil”. O voto vencedor trouxe considerações sobre a uniformidade do prazo prescricional de todas as pretensões oriundas do descumprimento contratual, a tradição dualista do direito brasileiro em matéria de responsabilidade civil e o pragmatismo da distinção dos prazos prescricionais para hipóteses de ilícito civil e descumprimento contratual. Não obstante, mesmo a corrente vencedora admitiu as críticas à tese da distinção dos prazos prescricionais, e consignou que ela é passível de alteração legislativa.
Na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, prevaleceu, também por maioria, a tese de que a pretensão fundada na responsabilidade contratual se sujeita ao prazo decenal do art. 205[17]. Além dos fundamentos esposados pela Segunda Seção, o voto vencedor, do ministro Félix Fischer, destacou que a prescrição é regra restritiva de direitos e, por isso, não comporta interpretação ampliativa, e que no direito contratual, a pretensão de indenização é acessória a de execução específica, portanto, deve seguir o prazo prescricional previsto para esta.
Em que pesem os fundamentos que amparam a tese da prescrição decenal, diversas pretensões contratuais permanecem sujeitas a prazos prescricionais distintos (p. ex. nos contratos de hospedagem, fornecimento de víveres e de seguro as pretensões prescrevem em um ano, vide art. 206, §1º, I e II; nos contratos de locação de imóvel a pretensão de haver os aluguéis prescreve em três anos na forma do art. 206, §3º, I; as pretensões de juros, dividendos e demais prestações assessórias também prescrevem em três anos conforme art. 206, §3º, III; as dívidas líquidas constantes em instrumento público ou particular prescrevem em cinco anos segundo art. 206, §5º, I).
Além disso, a unificação dos prazos prescricionais das pretensões amparadas em reparação civil por ilícito contratual, enriquecimento sem causa e descumprimento contratual proporcionaria maior coerência ao sistema e segurança para as relações[18]. É, também, a interpretação que melhor dialoga com as leis especiais, entre elas o Código de Defesa do Consumidor.
Do mesmo modo, não há como valorar a priori se há maior gravidade no ilícito contratual ou extracontratual, pois tanto a lei como o contrato protegem interesses patrimoniais e existenciais dos indivíduos. Isso sem contar que a existência de uma prévia relação entre as partes torna mais fácil o exercício da pretensão, razão pela qual há um contrassenso em estabelecer para a pretensão de reparação de um ato ilícito um prazo inferior àquela fundada no ilícito contratual.
Ainda sobre a identificação e aplicação dos prazos prescricionais específicos, os efeitos práticos do provimento de uma ação de anulação ou nulidade não se confundem com a pretensão de declaração em si, e, portanto, não se sujeitam ao prazo decadencial. Com efeito, qual seria o prazo prescricional para exigir a reparação ou restituição cabíveis? No julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos 1.360.969/RS[19] e 1.361.182/RS[20], defendi que o prazo é trienal, com fundamento no enriquecimento sem causa (art. 206, §3º, IV, do Código Civil), pois o êxito da ação de anulação suprime a causa lícita para o pagamento efetuado e caracteriza o enriquecimento indevido de quem recebeu e, por conseguinte, a pretensão daquele que pagou de reaver o seu dinheiro.
Há, ainda, a discussão sobre o início do prazo prescricional. No Brasil, a teoria da actio nata é a de maior prestígio na doutrina clássica[21] e na jurisprudência[22]. De acordo com ela, o prazo prescricional começa a fluir quando nasce a pretensão, que pode ou não coincidir com a violação de um direito, conforme tratado anteriormente neste artigo. O importante é que, nessa vertente, a ciência da lesão pelo titular do direito é prescindível.
Todavia, há situações em que o conhecimento do titular do direito violado acerca da lesão que sofreu é colocado no centro do debate. O julgamento do REsp. 1.020.801/SP[23] bem ilustra uma dessas hipóteses, pois o dano causado por um erro médico, o esquecimento de uma agulha no corpo da paciente em 1979, somente foi descoberto em 1995, sendo este tomando como referencial para início da fluência do prazo.
No julgamento do REsp. 1.711.581/PR[24], a Terceira Turma estabeleceu que, para aplicar excepcionalmente a vertente subjetiva da teoria da actio nata e considerar o início do prazo prescricional quando da ciência do lesado, é necessário que ele comprove que somente naquele momento foi possível vislumbrar a lesão ao seu direito.
A Comissão, cujo objetivo é atualizar aquela que é considerada a Constituição do homem comum, está empenhada em ouvir a sociedade civil e os especialistas, para, sem descuidar das bases lançadas pelo legislador em 2002, aprimorar a legislação tão cara e próxima da vida dos cidadãos, com responsabilidade e coerência. Em matéria de prescrição, ainda persistem dúvidas jurídicas que, certamente, serão alvo de propostas e debates em prol da segurança jurídica.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/396195/a-prescricao-e-a-atualizacao-do-codigo-civil
[1] Alemanha e França também experimentavam as dificuldades inerentes à insegurança jurídica acerca da prescrição antes das respectivas reformas legislativas no Direito das obrigações. Cf. CANARIS, Claus Wilhelm. O novo direito das obrigações na Alemanha. Revista da EMERJ, v.7, n. 27, 2004, pp.108-124.
[2] A fala do presidente do Senado Rodrigo Pacheco na cerimônia de assinatura do ato de criação da Comissão de Reforma do Código Civil, destacou: “o desafio de fazer conciliar a necessidade de atualização e da modernização de um estatuto, de uma lei ou de um Código, com a necessidade da preservação da segurança jurídica. […] Porque, de fato, a segurança jurídica se impõe ao Brasil e se obriga tê-la não só no Judiciário, mas também no Legislativo. A segurança jurídica não se faz só por decisões judiciais que sejam estáveis, mas também com legislações que sejam estáveis”.
[3] A ausência da distinção entre a prescrição e a decadência no Código Civil de 1916 não foi uma opção do Clóvis Bevilaqua, pois no projeto, ambos os institutos foram preservados, recebendo a prescrição tratamento em um único artigo da Parte Geral, enquanto a decadência era abordada de forma dispersa, por diversos dispositivos nas Partes Geral e Especial. Durante a tramitação da lei, na Câmara dos Deputados entendeu-se que a presença de ambos os institutos dificultaria sobremaneira a identificação dos mesmos e todas as referências à decadência foram suprimidas, restando apenas a prescrição. SIMÃO, José Fernando. Prescrição e decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p.157.
[4] CÂMARA LEAL, Antônio Luis da. Da prescrição e da decadência. 2 ed. atualizada por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 26.
[5] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.496.
[6] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 7, ano 3, abr. – jun. 2016, pp. 343-375
[7] REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Anais do Congresso “EMERJ Debate o Novo Código Civil”, Seminário “O Novo Código Civil e as Recentes Reformas no CPC”, realizado em 11.06.2002, pp. 38-44, p.42.
[8] MOREIRA ALVES, José Carlos. A Parte Geral do Projeto do Código Civil Brasileiro. Subsídios históricos para o novo Código Civil Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 86.
[9] SIMÃO, José Fernando. Prescrição e decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p.181.
[10] MOREIRA ALVES, José Carlos. A Parte Geral…cit, p. 157, nota de rodapé n.7; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: exceções, direitos mutilados, exercício dos direitos, pretensões, ações e exceções, prescrição. 4 ed. Atual. Otavio Luiz Rodrigues Junior, Tilman Quarch e Jefferson Carús Guedes. São Paulo: RT, 2013, t. 6.., p. 228;
[11] LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no Código Civil brasileiro (ou o jogo dos sete erros). Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, n. 51, 2010, pp. 101-120, p.106.
[12] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado….cit., p. 219.
[13] LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição…cit, p.115.
[14] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre pretensão e prescrição no sistema do novo Código Civil brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 11, jul-set 2002, pp. 67-77, p. 71-72.
[15] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p. 212.
[16] STJ, REsp. 1281594/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 22.11.2016, DJe 28.11.2016.
[17] STJ, EREsp. 1281594/SP, rel. Min. Benedito Gonçalves, rel. p/ acórdão Min. Félix Fischer, Corte Especial, j. 15.05/2019, DJe 23.05.2019.
[18] CANARIS, Claus Wilhelm. O novo direito…cit., p.110.
[19] STJ, REsp. 1.360.969/RS, rel. Min. Marco Buzzi, rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, j. 10.08.2016, Dje 19.09.2016.
[20] STJ, REsp. 1.361.182/RS, rel. Min. Marco Buzzi, rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, j. 10.08.2016, Dje 19.09.2016.
[21] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p.118
[22] STJ, REsp. 1168336/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 22.03.2011 DJe 16.09.2011.
[23] STJ, REsp. 1020801/SP, rel. Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, j. 26.04.2011, DJe 03.05.2011.
[24] STJ, REsp. 1711581/PR, rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva, Terceira Turma, j. 19.06.2018, DJe 25.06.2018.