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A PRESCRIÇÃO DUAS VEZES INTERROMPIDA

A PRESCRIÇÃO DUAS VEZES INTERROMPIDA

João Paulo Bezerra de Menezes

 

A longevidade da hermenêutica não é obra do acaso. Ela é tão ou mais antiga quanto o Direito que nos legou os fundamentos de nosso atual sistema jurídico. Ainda em 438, em virtude das dificuldades na interpretação e na aplicação das leis, Teodósio 2º impôs a consulta apenas às obras de Papiniano, Paulo, Gaio, Ulpiano e Modestino, julgando conforme o que hoje chamamos de equidade somente quando nenhum deles oferecesse resposta.

Extrair a intenção da lei — a vontade do legislador não sobrevive à publicação do texto — por vezes não é tarefa fácil. Devido à oscilantes qualidades dos legisladores, pode ocorrer de o texto avançar do parlamento com alguma obscuridade, ou mesmo ambiguidade, como se verificou com o inciso constitucional acerca do sigilo das comunicações: devido à pontuação do dispositivo muito se discutiu sobre onde terminava o sigilo absoluto e tinha início o sigilo relativo, este passível de intrusão por ordem judicial.

Mesmo diante de evidentes dificuldades, duas lições se sobressaem como pontos de partida na tarefa de compreender o teor da lei. A primeira, de Moniz de Aragão, sintetizada na máxima de que a interpretação da lei não pode conduzir a absurdos. A segunda, de Carlos Maximiliano, segundo a qual o Direito deve ser interpretado de modo que a ordem legal não envolva um absurdo ou prescreva inconveniências. Isso porque se deve sempre evitar que a realização da justiça faça olvidar todo o resto — fiat justitia pereat mundus.

Como visto, a exegese pode assumir ares de gravidade, e, assim, desponta nos foros dos Superiores Tribunal de Justiça certa jurisprudência merecedora de redobrada atenção. São julgados que se detiveram no art. 202 do Código Civil, onde está escrito que a prescrição será interrompida apenas uma vez.

Não é novo o tema da interrupção da prescrição. Ainda na vigência da legislação anterior muito se debatia sobre a possibilidade de sucessivas interrupções da prescrição, ao que respondeu o legislador de 2002 com o caput do artigo 202. A proibição é correta, já que o Direito busca a estabilidade, e não a eternização das relações jurídicas. De fato, foge aos lindes do que é justo submeter o devedor aos caprichos de um credor que nem realiza seu direito nem o libera da sujeição.

Mesmo assim, ao examinar o referido artigo o intérprete deve se munir de certas cautelas para que a norma extraída não termine por fulminar insuspeitos direitos do credor, e aqui se inserem os já referidos julgados em sede especial. Em sucessão de arestos, o STJ tem decidido que nem mesmo a interrupção judicial da prescrição pode se realizar mais de uma vez, e, embora as quatro recentes decisões estejam corretas na justiça do caso concreto, sem o devido distiguishing podem ensejar prejuízos injustificados.

Isso porque na específica hipótese da reivindicação judicial do crédito devem ser autorizada uma segunda interrupção do prazo prescricional.

O legislador foi pródigo ao outorgar a faculdade de interromper a prescrição. Diversas são as hipóteses dos incisos do artigo 202. Ocorre que conduziria ao absurdo permitir ao credor protestar o título cambial, mas, quando da demanda judicial para exigir os valores, submetê-lo a uma prescrição que seguiria incólume mesmo no curso processual. Como registrou o ministro Marco Aurélio Bellizze no voto vencido do REsp 1.504.408/SP, teria o credor extinta sua pretensão caso a ação não fosse julgada em tempo hábil. Como conciliar essa possibilidade com demandas que costumam durar os dez anos?

É da natureza das coisas que à interrupção do prazo se siga a demanda para exigir o crédito, e esse fluxo natural não pode ser penalizado por um exame literal da cabeça do artigo 202. Daí a necessidade da devida diferenciação para as hipóteses em que a segunda interrupção se der por efeito da ação para exigir a obrigação. Caso contrário estaria o Direito dando com uma mão — a oportunidade e interrupção do prazo —, e tirando com a outra — interrompido uma vez nem mesmo o ajuizamento da execução, da cobrança ou da ação condenatória estariam à salvo do curso extintivo.

Esta é a exegese sistemática que preserva a unicidade do direito, até mesmo com o que diz a lei processual sobre a perempção: se uma mesma pretensão pode ser veiculada até três vezes, não há sentido em negar que cada uma delas interrompa a prescrição, caso contrário nas duas últimas o prazo seguira inabalável, e apenas um pouco de morosidade processual bastaria para tê-lo por fulminado no curso da demanda.