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A POSSE NA ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL

Maria Cristina Santiago

 

Posse e propriedade: conceito e funcionalização dos institutos 

Em um país continental como o Brasil, associado ao fato da questão das imensas desigualdades socioeconômicas, em grande parte advindas da própria história da colonização o tratamento da posse e propriedade sempre reclamou especial atenção por parte do legislador.

Nesse passo de ideias, não custa relembrar que posse e propriedade são fenômenos jurídicos de antigo desenvolvimento, contando com análise profícua na doutrina e na própria legislação. O Código Civil de 1916 cuidou de estipular o sentido destes institutos. Assim é que o seu art. 524 estabelecia que “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. Por sua vez, o art. 485 da lei hoje revogada assim previa: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade“.

Válido nos parece o registro de que a propriedade era, à época, o direito de ter a coisa e dela se servir de modo (quase) absoluto; a posse, por seu turno, representava o exercício, sobre a coisa, de algum ou alguns dos poderes que compunham a propriedade, quais sejam: o uso, o gozo, a disposição e a reivindicação. A posse constituía, sob esse prisma, mera exteriorização das faculdades concedidas ao proprietário.[1]

Nesse sentido, pode-se dizer até que a propriedade se cercava de ares que beiravam o absolutismo significando afirmar, portanto, que na redação do Código Beviláqua, deferiu-se ao proprietário o direito de livremente usar, gozar, reaver ou dispor da coisa que lhe pertencia. Desse modo, a destinação a ser conferida aos bens era indiferente, bastando que se resguardasse ao proprietário a ampla prerrogativa de se valer deles para a satisfação de interesses puramente egoístas.

Com o passar do tempo, a própria mutação histórica com a queda dos regimes totalitários, a redemocratização de vários países e o surgimento das constituições democráticas trouxeram novos contornos para a posse e propriedade. Assim, redesenhar esses velhos conceitos de propriedade e de posse tornou-se um imperativo, e um importante passo nesse sentido foi tomado com a promulgação da Constituição da 1988, cujo texto proclamou nova visão ao direito de propriedade, alargando-se a ideia da sua funcionalização, pela consagração de duas disposições expressamente direcionadas à regulamentação do instituto: numa delas, se garante o direito à propriedade privada (art. 5º, XXII) e, na outra, é condicionado o exercício desse direito à observação do princípio da função social (art. 5º, XXIII). Além disso, ao tratar dos princípios da ordem econômica, o artigo 170 da Constituição torna a se referir à propriedade privada e à sua função social.

Se descortina, então, novo horizonte. A visão outrora prevalecente, que outorgava ao proprietário um direito praticamente absoluto sobre a coisa, cede diante da feição socializante inaugurada pela Constituição de 1988. Continua o proprietário, albergado na tutela de seu direito de usar e gozar do que lhe pertence, mas o exercício do direito de propriedade somente se considera regular se o seu titular for capaz de equacionar seus interesses particulares com o imperativo de utilidade social, que não condiz, em absoluto, com o uso dos bens para fins puramente especulativos ou egoístas.

Assim, tomando-se a necessidade de conferir concretude a função social, não somente foi a propriedade referida como direito e garantia individual e como princípio da ordem econômica, mas ganhou também, nas palavras de Anderson Schreiber e Gustavo Tepedino, a indicação de um conteúdo mínimo, particularmente, no que tange à propriedade imobiliária.

Desse modo, o artigo 186 da Constituição de 1988 esquadrinhou os requisitos objetivos para o atendimento da função social da propriedade rural, por meio de critérios bem definidos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Do mesmo modo, a a propriedade imobiliária urbana somente terá cumprida sua função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.[2]

A Constituição de 1988, corroborando com a nova vertente socializadora, cuidou de estabelecer as sanções a que se sujeitam os proprietários de imóveis desidiosos na concessão da função social à propriedade. Em se tratando da propriedade urbana, elas podem passar pelo parcelamento ou edificação compulsórios, pela imposição do imposto progressivo no tempo e, em última instância, pela desapropriação do bem. Sendo rural a propriedade, caberá à União promover a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, tudo sem prejuízo do aumento progressivo do imposto territorial rural, de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas.

O preceito da função social, portanto, deve ser adequadamente equacionado. A medida não pode ser vista tão-somente como uma barreira a impor limites negativos ao exercício da propriedade; mais do que isso, a função social impõe, num sentido propositivo, a promoção dos valores que servem de base para o ordenamento, como o direito social à moradia, o objetivo de construir uma sociedade justa e solidária e o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, a função social não se contrapõe à noção de propriedade privada, mas a preenche, de modo a consistir no autêntico fundamento da atribuição desse direito a um titular.

A velha noção da propriedade como direito absoluto cede, pois, diante da nova concepção de poder-dever, em que o direito de propriedade supre não apenas as necessidades e interesses pessoais do seu titular, mas representa importante instrumento de promoção da pessoa e dos interesses da coletividade.

 

O regime jurídico da posse no ordenamento brasileiro: teorias possessórias e a função social da posse 

Revisitadas as bases que fundamentam o direito de propriedade, cumpre também proclamar uma nova concepção do instituto da posse, que sói escapar das clássicas teorias formuladas por Savigny e Ihering.

Trilhando ainda, esse passeio pela história, passa-se à análise da matéria no Código Civil de Reale, que conferiu à posse o mesmo tratamento que lhe tinha sido atribuído pelo diploma anterior. Vejamos, por exemplo, o conteúdo descrito no art. 1.196 do Código de 2002, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade“.

Na redação proposta para reforma e atualização do Código, foi acrescentado o parágrafo único, estendendo-se o alcance da posse, também para os bens incorpóreos. Vejamos a redação proposta: “Considera-se possuidor todo aquele que tem, sobre coisa corpórea, o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Parágrafo único. A regra do caput se aplica aos bens imateriais no que couber, ressalvado o disposto em legislação especial“.

Como podemos notar, subsistiram as bases da teoria objetiva, formulada por Ihering, segundo a qual a posse seria composta pela conjugação de dois elementos: corpus (que se manifesta pelo interesse econômico do possuidor sobre a coisa, e não necessariamente por sua apreensão física direta e intermitente) e animus (aqui considerado não no sentido da intenção de ser proprietário, conforme pretendeu Savigny, mas como o ânimo de se comportar em relação à coisa, da mesma forma como faria o seu dono).

Outra visão sobre o tema, contudo, se torna possível. Reordenada a concepção tradicional da propriedade, que passa a ter de atender, para ser resguardada, a uma função social, não há razão para deixar de aplicar também à posse a mesma noção de funcionalização. Emergem então as denominadas teorias sociológicas da posse, que rompem com a perspectiva estática desse instituto como mera conjugação de fatores ligados ao interesse do possuidor para proclamar a sua autonomia em relação à propriedade.

A posse, nesse contexto, não é mera aparência da propriedade, devendo ser encarada sob uma vertente constitucionalizada, especialmente no tocante aos preceitos constitucionais do direito social à moradia (art. 6º), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da justiça e solidariedade (art. 3º, I) e dos vetores contidos, em particular, no referido art. 186 da Constituição da República, que impõe o aproveitamento adequado da propriedade rural – a demandar, por consequência, o exercício apropriado do direito à posse. Apesar de não merecer expressa consagração no texto legal, não se pode deixar de reconhecer que, em um ordenamento centrado nos valores constitucionais acabados de mencionar, também a posse tem uma função social a cumprir.

A exemplo do que se passa com a propriedade, cuja proteção se funda não só na titularidade comprovada no registro imobiliário, mas no modo do seu exercício, também a tutela da posse passa a depender da destinação que lhe é dada pelo titular do direito sobre a coisa. Deixa-se de lado, então, a tecnicidade das noções formuladas por Savigny e Ihering. A posse já não se basta como simples resultado de uma somatória de elementos estáticos (corpus e animus, já referidos); a sua funcionalização exige do possuidor comportamentos comissivos, cabendo fazer da propriedade um meio que atenda à moradia, ao trabalho e aos interesses da coletividade, mais que aqueles estritamente atinentes ao próprio possuidor.

A consagração de novos valores constitucionais, voltados para a realização da dignidade humana e a funcionalização de institutos privados, permite o desabrochar de uma releitura do papel da posse no ordenamento jurídico brasileiro, o que pode contribuir inclusive com a boa resolução dos conflitos possessórios suscitados em nossos Tribunais.

Com efeito, nas ações possessórias, a exemplo da reintegração de posse, é possível que o magistrado, antes de conceder a medida antecipatória e restituir a posse ao demandante, verifique se o pretendente de fato dava vida à função social constitucionalmente imposta. Sopesando-se os interesses daqueles que, de um lado, tratam com desídia a propriedade e apenas a têm como componente patrimonial e, de outro, dos que dela extraem suas potencialidades e nela vivem, provendo suas dignidades, pode-se concluir que prevalecem os derradeiros.

Outra não é a conclusão de Nelson Rosenvald e Cristiano chaves de farias, para quem “quando houver divergência entre os anseios do proprietário que deseja a posse, mas nunca lhe deu a função social, e, de outro lado o possuidor, que mantém ingerência econômica sobre o bem, concedendo função social à posse, será necessário priorizar a interpretação que mais sentido possa conferir à dignidade da pessoa humana“.[3]

 

Considerações finais 

Diga-se, finalmente, que o presente texto não tem viés político ou sociológico, eis que a proposta é apenas a de ressaltar que os valores inaugurados pela Constituição da República de 1988, quando incidentes sobre o regime jurídico da posse e da propriedade, são suficientes para municiar a doutrina e sobretudo a jurisprudência de elementos que permitam atingir, nas lides de natureza possessória, soluções menos apegadas ao aspecto individual-econômico da propriedade e mais consentâneas com a necessidade de se prover moradia e trabalho aos que clamam por eles, tendo sido esse paradigma amplamente conservado na proposta de atualização do Código Civil.

A funcionalização da posse, portanto, representa importante passo para a adequada interpretação deste instituto e para a resolução das lides nele calcadas. Se tal será ou não o bastante para solver em definitivo a controvérsia é polêmica que escapa ao mérito deste trabalho, que tenciona indicar, ao menos, uma via possível rumo à melhor interpretação a prevalecer sobre a posse no país.

Referências 

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

IHERING, Rudolf von. Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Líder, 2004.

SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, a. VI, n. 6, junho de 2005, p. 101-119.

FONTE: https://www.migalhas.com.br/coluna/reforma-do-codigo-civil/416382/a-posse-na-atualizacao-do-codigo-civil

[1] Para IHERING – cuja teoria foi absorvida tanto pelo Código Civil de 1916 como pelo diploma atual, conforme acentuaremos oportunamente – a posse “é o poder de fato e a propriedade o poder de direito sobre a coisa”. Prossegue o jurista afirmando que “a propriedade sem a posse seria um tesouro sem chave para abri-lo, uma árvore frutífera sem a competente escada para colher-lhe os frutos” para, afinal, concluir que “tirar a posse é paralisar a propriedade” (IHERING, Rudolf von. Teoria simplificada da posse. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 8-9).

[2] SCHREIBER, Anderson; TEPEDINO, Gustavo. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, a. VI, n. 6, junho de 2005, p. 103-104.

[3] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 50-53.