A PENHORA DE SALÁRIOS E CONTRA OS DIREITOS HUMANOS
Gilberto M. A. Rodrigues
Em um Estado democrático de Direito, a proteção e promoção dos direitos humanos deveria ser uma prioridade dos agentes públicos, especialmente do Poder Judiciário, que atua como guardião da Constituição e do princípio da legalidade. Na prática, diversos interesses políticos e econômicos atravessam e, literalmente, atropelam o dever de proteção dos direitos humanos, especialmente das pessoas em condição de vulnerabilidade e em situação de desvantagem socioeconômica.
A questão da penhora de salários é um caso notório de uma regulação que implicará violações maciças e sistemáticas de direitos humanos e que está prestes a ser consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A excelente reportagem “Contra a lei, STJ discute limites e critérios para penhora excepcional de salário” mostra claramente a que ponto a formação de um consenso jurisprudencial da segunda mais alta corte do país pode colocar por terra a proteção integral da pessoa humana em nome e sob a justificativa da “efetividade do processo”.
Os indicadores econômicos mostram que, em agosto de 2025, havia cerca de 78,5 milhões de brasileiros endividados e 47,9% da população adulta está inadimplente, em curva crescente (Serasa, 2025). Somente na categoria dos servidores públicos federais, segundo a Anajustra (2025), cerca de 70% dos servidores federais ativos enfrentam algum tipo de endividamento. Isso não significa que a família brasileira seja má pagadora. Significa que os juros dos empréstimos e das dívidas em geral aumentam de forma abusiva e descontrolada, criando bolas de neve de dívidas que se tornam impossíveis de saldar.
STJ valoriza processo para cobrança
Neste cenário em que o Poder Judiciário deveria estar atento às distorções negativas que a economia rentista vem gerando no endividamento da população, e atuar como agente protetor dos direitos humanos, o que se vê é o movimento inverso: o STJ valoriza a efetividade do processo para a cobrança de dívidas em detrimento do princípio da legalidade (a letra da lei, o artigo 833 do Código de Processo Civil) combinado com o principio pro homine (norma mais favorável à proteção da pessoa humana) — ambos devem prevalecer em face da cobrança de direitos patrimoniais que exorbitam a margem expressamente definida na lei.
O que se pode ver sob a luz do dia (só não enxerga quem não quer ou não tem interesse próprio ou atua em nome de alguém interessado) é que o STJ irá se consolidar como um tribunal patrimonialista, caudatário das políticas e metas dos grandes credores. A efetividade do processo, como argumento jurídico, não se sustenta diante de princípios básicos dos direitos humanos, é um eufemismo, um manto escamoteador da força do capital sobre os trabalhadores, da classe mais baixa à classe média, esta também cada vez mais endividada.
Ao propor uma regulação sobre o tema, em que salários abaixo de 50 salários mínimos podem ser penhorados de forma permanente, na faixa de 30% a 45%, o STJ irá se tornar um agente catastrófico na vida de milhões de famílias brasileiras, que esperariam receber proteção desse tribunal, mas em troca receberão condenação ao desespero, à dissolução e à miséria.
Um dos argumentos esboçados para consolidar a jurisprudência é o de que alguns tribunais estaduais já aplicam penhora de salário na margem de 30%, sempre com o argumento da efetividade do processo (leia-se interesse prevalecente do credor). Porém, a jurisprudência está longe de haver gerado um consenso sobre o tema, e mais longe está haver respaldo de diversos operadores do direito, em especial as defensorias públicas estaduais e federal (que estão mais próximas da realidade da população e que defendem diretamente os seus direitos humanos, com mandato constitucional para essa função) como mostra a citada reportagem desta ConJur, para essa atuação contra legem dos tribunais e que vem sendo agasalhada e aplicada com entusiasmo pelo STJ.
Aplicação seletiva da efetividade do processo
Salta aos olhos, também, o que pode ser um indicador de aplicação seletiva da efetividade do processo para a maioria, mas não para todos, a decisão do próprio STJ que impediu a penhora do salário de um desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (salário de 54 mil reais) para pagar uma dívida de 300 mil (UOL, 16/6/2025). Sempre se poderá dizer que cada caso é um caso etc. Mas é incomum ver tribunais estaduais e o STJ agirem com a mesma empatia com cidadãos não-magistrados, não-desembargadores…
Além de violar a legislação doméstica sobre os limites à penhora de salário, o STJ igualmente incorre em violação de normas e compromissos internacionais a que o Brasil se vinculou e que protegem os direitos humanos, com já foi demonstrado em artigo anterior (ConJur, “Bloqueio e penhora de conta salário: grave violação de direitos humanos“, 27/02/2025).
Se o STJ consolidar o entendimento da penhora de salário abaixo de 50 salários mínimos e regular a matéria rasgando a página do CPC que trata desse tema de forma expressa, para benefício e júbilo dos credores e desgraça e tragédia para os devedores, caberá ainda alguma esperança na atuação posterior do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o STJ ganhará a pecha de Tribunal anti-direitos humanos dos devedores, e não há de haver discurso ou argumento jurídico que possa diminuir, escusar ou apagar essa mácula.
