A ORALIDADE E O EXEMPLO DOS ESTADOS UNIDOS
Rodrigo Faucz Pereira e Silva
Priscilla Kaválli
Em um mundo cada vez mais interconectado, conhecer a prática jurídica dos outros países e sistemas permitem entender com maior amplitude e profundidade as influências e possíveis modificações no nosso próprio ordenamento, principalmente para aperfeiçoar o modelo adotado para o julgamento.
Já publicamos aqui na coluna, algumas vezes, artigos sobre o fundamento jurídico da oralidade [1]. No entanto, assistindo à algumas audiências e júris em Washington DC, nos Estados Unidos, alguns pontos de natureza prática nos chamaram a atenção e merecem destaque.
Primeiramente, a concretização do princípio da oralidade é uma necessidade absoluta. Não apenas por constituir um dos pilares do sistema acusatório, mas a prática da oralidade oferece uma série de vantagens, como: (a) a diminuição do tempo de tramitação; (b) a humanização do tratamento com as partes; e (c) a transparência, pois as discussões e decisões são realizadas publicamente.
Estando presente em diversos tipos de audiências (desde audiências preliminares, da homologação do plea bargain, até na sessão de julgamento da causa — o julgamento pelo júri), pudemos perceber a diferença entre o sistema predominantemente escrito no Brasil e um sistema oral. É algo abismal.
Possibilitar às partes participar ativamente e diretamente até mesmo de decisões que, aparentemente, seriam administrativas, como uma simples escolha da data de julgamento em que o juiz pergunta à acusação e defesa sobre um período adequado para agendar, tem um efeito direto na legitimidade do procedimento e na aceitação da decisão.
Recursos
Pode parecer até simplório, mas certamente a implementação efetiva da oralidade, evitaria alguns milhares de Habeas Corpus, correições e nulidades posteriores. Para aqueles que querem buscar uma saída para o número excessivo de recursos, está aí uma compatível com a Constituição e com os tratados internacionais de direitos humanos.
Em segundo lugar, sobre o direito negocial na esfera criminal. Na época da discussão do pacote anticrime, os legisladores acertadamente rejeitaram a implementação do plea bargain no ordenamento brasileiro, o que seria um desastre por inúmeros aspectos, ainda mais considerando o nosso sistema desigual pelo aspecto socioeconômico.
No entanto, de uma maneira mais ampla, a tendência do direito negocial aplicada ao direito criminal é um caminho sem volta. Desta forma, apontamos, na esteira da oralidade, a prática da audiência para homologação do plea bargain, a qual difere bastante da nossa audiência de homologação do acordo de não persecução penal, principalmente em relação ao nível de entendimento que se exige do acusado ao aceitar o acordo.
Cronologicamente, seriam esses os passos:
(a) a audiência é aberta identificando todos os participantes, sendo obrigatória a presença do promotor de justiça e da defesa;
(b) o juiz explica ao público que recebeu os termos do acordo realizado entre a defesa e a acusação, inclusive dizendo que ele tem o poder de rejeitar, caso entenda que o acordo está fora da razoabilidade exigida (o que, raramente acontece);
(c) o juiz faz uma série de perguntas ao acusado, primeiramente para delimitar qual o nível de entendimento, bem como explica quais seriam as consequências da ausência de acordo (como as sanções previstas no Código Penal);
(d) em continuidade, questiona-se sobre a voluntariedade, ou seja, se ele aceitou sem qualquer coerção ou influência indevida. As perguntas são desdobradas para que reste indubitável a consciência do acusado em aceitar o acordo. Chega a ser até repetitivo, entretanto não se pode ter qualquer dúvida sobre a compreensão do acordo;
(e) ao aceitar o acordo, o acusado está dispensando o direito a um julgamento pelo júri. Em última análise, está renunciando à uma série de direitos inerentes ao julgamento público. Assim, pergunta-se se o acusado sabe que está abdicando do direito de ser julgado por seus iguais, o direito de ter um julgamento público, o direito de apenas ser condenado se a acusação comprovar além da dúvida razoável os fatos descritos na denúncia, o direito de que a defesa possa participar ativamente no decorrer do julgamento, o direito de que poderá requerer a produção de provas técnicas para comprovar sua inocência, dentre outros direitos que são expostos em perguntas individualizadas;
(f) o juiz se assegura que o acusado entende que está admitindo a responsabilidade no crime de maneira livre e sem qualquer pressão externa, bem como que está assumindo porque acredita que a promotoria poderia comprovar além da dúvida razoável a sua culpabilidade;
(g) é perguntado ao acusado se ele compreende as consequências negativas de aceitar o acordo, principalmente quanto aos antecedentes criminais e, além disso, como tal fato afetará sua vida no futuro;
(h) o juiz faz perguntas diretas se o acusado discutiu suficientemente com seu defensor sobre o plea bargain, bem como se ele ficou satisfeito com a atuação do seu advogado no decorrer das tratativas.
Observou-se que um dos papéis do juiz é garantir que, por um lado o acusado está aceitando o acordo com total consciência e de maneira voluntária, e que, por outro, o plea bargain possui embasamento jurídico e fático, especialmente porque é possível de se realizar uma alta gama de composições.
Caso concreto
Especificamente para um dos casos que pudemos presenciar, o objeto da negociação era a persecução penal do crime de feminicídio, pois o acusado teria matado a sua companheira estrangulando-a, após uma discussão, e com o uso de uma arma branca. A “denúncia” da promotoria seria por first-degree murder, algo como o homicídio qualificado pela intencionalidade e premeditação (pena máxima de prisão perpétua).
Contudo, pelo acordo das partes, o acusado admitiu o crime de second-degree murder, ou seja, um homicídio que não ocorreu com premeditação, normalmente relacionado a uma violenta emoção ou um confronto provocado, (com pena máxima de 40 anos). No pacto, previu-se que a reprimenda será decidida pelo magistrado, mas dentro do parâmetro de 20 a 24 anos, em uma audiência específica em que as partes poderão fazer requerimentos.
O que chamou atenção foi que a “representante do governo” (a promotora) pediu ao final para que a família da vítima pudesse se manifestar. A magistrada, apesar de pontuar que na audiência sobre a sentença a família também poderá subsidiar a decisão no quantum de pena, permitiu que tanto a mãe quanto o pai da vítima se expressassem oralmente.
Ambos disseram que não concordavam com o acordo proposto pela acusação, lamentando que a pena não seria compatível com a gravidade do crime e com a perda da vida de sua filha. Também apresentaram uma “queixa ética” contra a promotoria, dizendo que não foram corretamente informados sobre todos os termos do acordo e que seus desejos pela pena máxima foram ignorados.
Em que pese na situação acima descrita o acusado tenha abdicado do seu direito ao devido processo legal, bem como confessado o delito, no geral, percebe-se que a vítima (ou seus familiares) tem um interesse direto no caso, em qualquer fase da persecução penal.
Assim, e, ainda considerando que o sistema de justiça visa legitimar uma eventual aplicação da sanção, de maneira que todo o decorrer do procedimento seja justo, imparcial e que a acusação tenha comprovado além da dúvida razoável os fatos, temos reservas sobre a participação da vítima no processo penal.
Isso porque, geralmente, independente da alegação defensiva (seja, por exemplo, a tese de negativa de autoria quando efetivamente não for o acusado o verdadeiro autor do crime), a vítima (ou os seus familiares) dificilmente concorda com qualquer circunstância fática ou jurídica que mitigue ou diminua o nível de responsabilidade da pessoa sob julgamento.
Entretanto, ao analisarmos que o sistema penal como um todo também possui a finalidade de restaurar os danos causados pelo crime e a confiança da comunidade no sistema jurídico, o resultado que traga algum conforto para todos os envolvidos na questão é relevante.
E, aqui, o princípio da oralidade cumpriu um outro papel: o de acolhimento e transparência. Primeiro que o pedido para que os pais da vítima se manifestassem partiu da própria promotora, mesmo sabendo que seria um dos alvos da reclamação e, ainda assim, entendeu a situação. Em segundo, a juíza acolheu o discurso emocionada da mãe, não apenas explicando os mecanismos do plea bargain, mas dizendo palavras de conforto. A mesma coisa ocorreu após o discurso do pai.
Ambos foram convidados para voltar na audiência sobre a sentença e ambos expressaram estar mais aliviados e, apesar de saberem que nada poderá preencher o vazio com a morte de sua filha, estão percebendo alguma forma de justiça.
Isso é algo que a frieza do papel não pode suprir. Nada substitui a relação pessoal, a participação efetiva das partes na formação da convicção do juiz, a decisão imediata com a oitiva dos dois lados, a agilidade na solução de questões em minutos ou poucas horas, a segurança de saber que as decisões foram tomadas diante de si e sem influências indevidas.
Por óbvio que o sistema acusatório exige que cada um saiba qual o seu papel dentro do modelo de julgamento. A acusação e a defesa são partes interessadas, eis que requerem, pedem, têm objetivos definidos. O magistrado, imparcial, deve garantir que as partes participem de um confronto justo, público e com paridade de armas, cabendo inteiramente à acusação o ônus da prova. Se atingir o standard necessário, a decisão é condenatória. Se não atingir, absolutória. É simples. É justo. É civilizatório. É respeitar a democracia e o Estado de Direito.
[1] Como no artigo de 17/02/2024 “O aprimoramento do juízo oral para a adequação do sistema acusatório”, mas também indicamos o artigo de Aury Lopes Jr. e Thiago Minagé de 7/08/2020, intitulado “A oralidade e a cultura das audiências: a Lei 13.964, de 2019”.