A INTERPRETAÇÃO DA EXECUÇÃO DE CRÉDITO COM GARANTIA REAL NO CPC
Gilberto Andreassa Junior
Ighor Galiotto de Andrade
Abre-se o presente artigo com o seguinte questionamento: na execução de crédito com garantia real, deverá a penhora recair preferencial ou obrigatoriamente sobre a coisa dada em garantia?
Importante trabalhar com uma situação hipotética — porém, corriqueira na praxe forense — em que o exequente, pretendendo obter a satisfação de um direito reconhecido em um contrato de mútuo feneratício com cláusula de garantia (por exemplo, o penhor de 94 novilhos ou hipoteca de um imóvel localizado em pequena cidade do interior paranaense), intenta ação de execução em face do devedor.
Consideremos que todas as condições da ação e pressupostos próprios relativos à pretensão executória encontram-se preenchidos; continuemos a considerar que o executado não se encontra em condição real de quitar a obrigação outrora assumida, levando, por conseguinte, o exequente a valer-se das tutelas asseguradas pelo processo de execução, dentre elas a penhora on-line, comumente chamada de Bacenjud.
Eis que o improvável acontece. Encontra-se quantia palatável que consegue amortizar um terço do quantum debeatur. O magistrado, então, procede com o bloqueio dos numerários da conta corrente do executado, que, imediatamente, questiona o juízo sobre a ordem de preferência estabelecida pelo diploma processual.
Resumidamente, assim tece sua tese oponível à pretensão executória, que no caminhar processual levaria, inconsequentemente, ao levantamento da quantia constrita: “Meritíssimo juiz, sem embargo à possibilidade de o exequente poder requisitar o Bacenjud, há de observar o parágrafo 3º do artigo 835 do CPC, que assim disciplina: ‘Na execução de crédito com garantia real, a penhora recairá sobre a coisa dada em garantia, e, se a coisa pertencer a terceiro garantidor, este também será intimado da penhora’. Com efeito, requer-se este peticionante o desfazimento do bloqueio realizado, vez que tal quantia encontra-se destinada a outros compromissos assumidos com terceiros alheios a este feito”.
Instado a se manifestar, o exequente assim rebate a tese aventada: “Meritíssimo juiz, inobstante o dispositivo legal mencionado, e com a vênia à argumentação lançada, este exequente refuta a oposição ao levantamento dos valores constritos, vez que o próprio código adjeto, em seu artigo 835, caput, estabelece que ‘a penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira; II – títulos da dívida pública da União, dos Estados e do Distrito Federal com cotação em mercado; III – títulos e valores mobiliários com cotação em mercado; IV – veículos de via terrestre; V – bens imóveis; VI – bens móveis em geral; VII – semoventes (…)’. Deste modo, verificando-se que o dinheiro prefere a qualquer outro bem — móvel ou imóvel — quando se está em pauta a ordem de penhora, não merece prevalecer a alegação do executado”.
No momento, surge a celeuma jurídica já apontada no primeiro parágrafo do texto: havendo execução de crédito com garantia real, deverá a penhora recair preferencial ou obrigatoriamente sobre a coisa dada em garantia?
De fato, segundo o preconizado pelo parágrafo 3º do artigo 835 do CPC, “na execução de crédito com garantia real, a penhora recairá sobre a coisa dada em garantia, e, se a coisa pertencer a terceiro garantidor, este também será intimado da penhora”. Em um olhar perfunctório, a exegese do citado dispositivo é no sentido de que, em se tratando de execução de crédito com garantia real, o diploma adjetivo civil concedeu preferência justamente à penhora da coisa dada em garantia, independentemente de esta ser de propriedade do devedor principal, solidário ou de terceiro garantidor. Aliás, vem sendo este o entendimento perfilhado por alguns dos tribunais pátrios, de que havendo bens hipotecados ou empenhados e que dão lastro a dado título extrajudicial, tais bens terão preferência na ordem de penhora[1]:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. ORDEM DE PENHORA. BEM IMÓVEL DADO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA. PREFERÊNCIA. DICÇÃO DO ARTIGO 835, §3º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. 1. Nos termos do artigo 835, § 3º, do Código de Processo Civil, e ampla jurisprudência, das cortes estaduais, assim como do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, havendo bem imóvel hipotecado, garantindo execução de título extrajudicial, tal bem terá preferência, sendo penhorado primeiro. Agravo de instrumento conhecido e provido. (TJ-GO, Agravo de Instrumento 5317842-76.2018.8.09.0000, relator Fábio Cristóvão de Campos Faria, 3ª Câmara Cível, julgado em 13 de junho de 2019, DJe de 13 de junho de 2019)
AGRAVO DE INSTRUMENTO (…). CONTRATO COM GARANTIA REAL – PENHORA – ART. 835, §3º, DO CPC – PRIORIDADE. 1 – É vedada a reforma da decisão agravada em prejuízo dos Recorrentes (vedação à “reformatio in pejus“). 2 – É inviável o acolhimento da alegação de conexão entre as ações, quando não demonstrada a existência de identidade entre os seus objetos. 3 – Em se tratando de contrato com garantia real, a penhora recairá, prioritariamente, sobre a coisa dada em garantia (art. 835, §3º, do CPC). (TJ-MG, Agravo de Instrumento 1.0000.18.041390-8/001, relator desembargador Carlos Henrique Perpétuo Braga, 15ª Câmara Cível, julgamento em 30 de novembro de 2018, publicação da súmula em 5 de dezembro de 2018)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. BEM DADO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA. PENHORA. ART. 835, § 3º, DO CPC/15. Na execução de crédito com garantia real, a penhora deve recair sobre os imóveis dados em hipoteca pelos intervenientes garantidores, não havendo falar em indisponibilidade de bens por meio dos sistemas BACENJUD, RENAJUD e/ou INFOJUD, em homenagem a norma contida no art. 835, § 3º, do CPC/15. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. (TJ-RS, Agravo de Instrumento 70078982527, 15ª Câmara Cível, relatora Adriana da Silva Ribeiro, julgado em 14 de novembro de 2018)
Entrementes, há de observar o caput do artigo no qual se insere o aludido parágrafo, que ressalta: “A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: I – dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira; II – títulos da dívida pública da União, dos Estados e do Distrito Federal com cotação em mercado; III – títulos e valores mobiliários com cotação em mercado; IV – veículos de via terrestre; V – bens imóveis; VI – bens móveis em geral; VII – semoventes; VIII – navios e aeronaves; IX – ações e quotas de sociedades simples e empresárias; X – percentual do faturamento de empresa devedora; XI – pedras e metais preciosos; XII – direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia; XIII – outros direitos”. Ainda, o parágrafo 1º do mesmo artigo disciplina que “é prioritária a penhora em dinheiro, podendo o juiz, nas demais hipóteses, alterar a ordem prevista no caput de acordo com as circunstâncias do caso concreto”.
Lembrando que as disposições gerais estabelecidas para o processo executivo estabelecem uma balança entre a maior eficácia ao processo executivo, em benefício do credor, e o princípio da menor onerosidade para o devedor, nos seguintes artigos:
Art. 797. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal, realiza-se a execução no interesse do exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados.
Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.
Deste modo, numa interpretação global e sistêmica dos dispositivos citados, é possível concluir que a ordem de penhora prevista em lei é preferencial, e não obrigatória, quando observado o princípio da menor onerosidade para o devedor (artigo 805 do CPC) e os demais fatores que envolvam o caso concreto, a fim de resguardar os direitos do exequente e a satisfação de seu crédito, na medida em que a execução se realiza no interesse do credor (artigo 797 do CPC).
Referida interpretação tem o seu motivo, pois o âmago do critério sobre a preferência que recaia às penhoras (artigo 835 do CPC) está nos próprios atos executivos que, num caso concreto, se esclarecem serem os menos gravosos ao executado e os que dão maior eficácia ao processo executivo.
As garantias hipotecárias e pignoratícias que lastreiam um determinado crédito concedido pelo mutuante (mútuo feneratício) ao mutuário visam, em si, uma maior proteção ao crédito e ao próprio sistema econômico financeiro, e não, todavia, com o escopo de apenas conferir ao mutuante (exequente) a possibilidade de fazer-se valer de seu direito de reaver determinado crédito exclusivamente sobre tais garantias, de modo reflexo a blindar os outros bens do patrimônio do devedor que possam satisfazer a pretensão executória, pois o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, conforme alude o artigo 789 do CPC.
Retomando a situação hipotética narrada, verificando o magistrado que o penhor de 94 novilhos ou hipoteca de um imóvel localizado em pequena cidade do interior paranaense se mostram medidas menos eficazes ao exequente que o Bacenjud realizado,[2] deverá, como operador e dirigente do processo, excepcionar a regra processual encampada no parágrafo 3° do artigo 835.
Em consulta jurisprudencial efetuada perante o Tribunal de Justiça do Paraná, verifica-se ser este o entendimento predominante:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO. BEM APRESENTADO COMO GARANTIA FIDUCIÁRIA. PRETENSÃO DE PENHORA VIA BACENJUD, RENAJUD E INFOJUD. POSSIBILIDADE. ART. 835, §3º DO CPC NÃO VISA BLINDAR OS DEMAIS BENS DO DEVEDOR, MAS, SIM, DAR MAIS EFETIVIDADE À EXECUÇÃO. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PROVIDO. (TJ-PR – 13ª Câmara Cível – 0047290-63.2018.8.16.0000 – Ponta Grossa – relator desembargador Fernando Ferreira de Moraes – julgamento em 27 de março de 2019)
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. 1. Extinção da execução – Impossibilidade – Cessão fiduciária de títulos de créditos – Créditos que não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. 2. Impossibilidade de suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra devedores solidários e coobrigadas – Inteligência dos artigos 49, § 1° e 59 da Lei 11.101/05.3. Ordem de preferência da penhora – Penhora que deve recair preferencialmente sobre o bem dado em garantia, mas não necessariamente, conforme art. 835, § 3º, do CPC/15 – Possibilidade de realização de penhora via BACENJUD. DECISÃO MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-PR – 14ª Câmara Cível – AI – 1682831-0 – Arapongas – relator desembargador Octavio Campos Fischer – Unânime – julgamento em 28 de novembro de 2018)
Agravo de instrumento. Execução de título extrajudicial. Decisão agravada que determinou a penhora online sobre dinheiro em preferência a bem dado em garantia das duplicatas executadas. Pedido do devedor de a penhora recair sobre o bem dado em garantia em substituição à penhora em dinheiro. Impossibilidade sem a concordância do exequente. Decisão mantida. A preferência para a penhora do bem dado em garantia real só pode ser invocada pelo credor e não pelo devedor, pois a garantia é instituída em benefício daquele e não deste. Aplicar a regra do § 3º do artigo 835 do CPC em favor do devedor colocaria o credor com garantia real em situação inferior ao do credor quirografário, considerando que este poderia efetuar a penhora de dinheiro, ao passo que o credor pignoratício somente poderia penhorar o bem dado em garantia. Recurso conhecido e não provido. (TJ-PR – 15ª Câmara Cível – 0016315-24.2019.8.16.0000 – Cascavel – relator desembargador Hamilton Mussi Corrêa – julgamento em 5 de junho de 2019)
Observando-se as disposições gerais estabelecidas para o processo executivo, que estabelecem uma balança entre a maior eficácia ao processo executivo, em benefício do credor, e o princípio da menor onerosidade para o devedor, com vistas a buscar uma execução equilibrada, com atos executórios proporcionais à causa, pode o magistrado, diante dos mecanismos conferidos pelo próprio sistema processual e pela análise do caso concreto, estabelecer que a penhora mais recomendável (por exemplo, Bacenjud) à persecução executória seja aquela diferente do originariamente apregoado pelas partes como garantia do mútuo. Em outras palavras, havendo execução de crédito com garantia real, poderá a penhora recair sobre bens do executado além daqueles dados em garantia, se demonstrado ser a constrição mais recomendável.[3]
[1] Este também é o entendimento do professor Araken de Assis: “Havendo negócio jurídico das partes vinculando determinados bens à satisfação da dívida, ou gravame real – hipoteca, penhor e anticrese -, a constrição recairá obrigatoriamente sobre os bens dados em garantia, chamando a tal penhora de ‘natural’. Essa constrição poderá ser ampliada, recaindo sobre outros bens, caso a garantia seja insuficiente, ou restringir-se a parte dos bens gravados, havendo excesso. Em nenhuma hipótese, entretanto, deixará recair sobre os bens gravados, no todo ou em parte, porque a nenhuma das partes é dado desvincular-se unilateralmente do negócio jurídico no plano do direito material”. Conforme Manual da Execução, 20 ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 959-960.
[2] No processo, ainda deverá ser precedida a avaliação – que poderá ser ou não feita por expert, vide artigo 870, CPC —, divulgação a terceiros interessados — em leilão, vide artigo 880 e subsequentes, CPC —, para então obter-se a arrematação e consequente quitação (ou amortização) da dívida; isso tudo que poderá, quiçá, apresentar-se mais oneroso ao próprio executado.
[3] “Entendimento diverso implicaria em conferir ao credor hipotecário tratamento pior do que o dispensado ao quirografário (ao qual se aplicaria, sem tal restrição, a regra do parágrafo 1º), contrariando a finalidade da garantia, bem como um dos propósitos declarados do novo Código, que é conferir maior efetividade ao processo, com a consagração de um verdadeiro retrocesso em relação à evolução da jurisprudência nos últimos anos, que acertadamente passou a reconhecer que a aplicação da regra da menor onerosidade (artigo 805 do CPC) pressupõe que o benefício concedido ao executado não implique em prejuízo para o exequente, sendo impossível a sua aplicação quando houver tal prejuízo, que no caso se manifesta de mais de uma maneira (maior tempo e maior custo para obter a satisfação do crédito, com o risco adicional de que tal satisfação não se dê – no todo ou em parte – caso a alienação do bem não seja suficiente para o pagamento integral da dívida)”. Cf. YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Possibilidade de penhora de dinheiro na execução de crédito garantido por hipoteca. Revista de Processo (vol. 269/2017), p. 225-268.