A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 19, PARÁGRAFO PRIMEIRO, DA LEI 11.101/05
Alex Stochi Veiga
A Constituição Federal de 1988 é clara ao dispor quanto a competência dos tribunais para o julgamento de ação rescisória.
O art. 19 da lei 11.101/05 trata, em verdade, de duas ações diversas. Se há sentença proferida em habilitação ou impugnação de crédito, trata-se de Ação Rescisória, em verdade. Por outro lado, se sentença não há, trata-se de Ação de Retificação de crédito, para impugnar o crédito incluído nos termos do art. 15, I, da lei 11.101/05, que controverte o crédito não impugnado no curso da Recuperação Judicial ou da Falência, cuja decisão do Juízo é meramente homologatória do trabalho do Administrador Judicial e cuja fattispicie se amolda ao disposto no §4º do art. 966 do CPC.
Apesar de sua natureza bastante diversa, tais ações são tratadas no mesmo dispositivo legal, muito provavelmente apenas por conta da perpetuação de uma redação que não acompanhou as evoluções do direito processual. A habilitação/impugnação de crédito é julgada em 1ª instância e sujeita à Agravo de Instrumento (art. 17 da lei 11.101/05), e o acórdão proferido, por seu turno, pode ser impugnado mediante a interposição de recurso especial ou extraordinário (art. 102, III e art. 105, III, da CF).
De acordo com este panorama legal, tem-se que uma decisão de mérito eventualmente proferida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça que pode, excepcional e paradoxalmente, vir a ser rescindida por órgão inferior de jurisdição.
Segue um quadro comparativo da redação dos dispositivos na lei 11.101/05, no DL 7.661/1.945, no decreto 5.746/29 e na lei 2.024/08[1]
Como se verifica, nos quase 100 anos que medeiam a lei 11.101/05 e a lei 2.024/1.908, ou nos 112 que medeiam entre a lei 14.112/20 e a lei 2.024/1.908, o referido dispositivo teve apenas breves retoques de estilo e adaptação as alterações da própria lei em que estava inserto, sem acompanhar as evoluções do direito processual no período. Como se não bastasse, o disposto no parágrafo primeiro do art. 19 da lei vigente que fez escancarar o equívoco do legislador.
É interessante notar que ao tempo da promulgação da lei 2.204/1.908, vigia a Constituição de 1.891, que regulava, em seus artigos 59 e 60, a competência originária do Supremo Tribunal Federal e da Justiça Federal. Nos referidos artigos não havia previsão relativa à competência para o julgamento de ações rescisórias, quer em sua redação original quer na redação alterada pela Emenda Constitucional de 03/09/1.926. Segundo Pontes de Miranda: em 1.913, adotou-se [no STF], porém, em regra regimental, o sistema de ser processada a ação nos juízos federais e julgada, em instância única, pelo próprio Supremo Tribunal Federal.[2] Prossegue o referido mestre, contando que, naquele tempo as ações rescisórias não eram julgadas pelo mesmo juízo que proferiu a decisão: aliás, anteriormente [à 1.913], alguns julgados, escapos ao argumento heterotópico da conexão e da continência de causas, se haviam libertado do sistema de ser processada e julgada pelo mesmo juiz da sentença rescindenda.[3]
Como se pode ver por este breve relato do mestre Pontes de Miranda ao tempo da promulgação da lei 2.024/1.908 não havia ainda nem a previsão constitucional de que caberia aos próprios tribunais julgar a rescisão de seus julgados e tampouco um entendimento doutrinário pacífico sobre tal ponto, o que deve ter influenciado o legislador de 1.908.
Ocorre que a Constituição de 1.934, acolhendo regra então prevista apenas no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, estatuiu a competência da Corte Suprema (nome atribuído àquele Tribunal pela referida Constituição), a competência para julgar as ações rescisórias de seus acórdãos (art. 76, “2”, I, da CF/34).
Deste modo, tendo sido alterado substancialmente o ordenamento jurídico entre 1.908 e 1.945 era de se esperar que a regulamentação da Ação Rescisória de Sentença de Habilitação/Impugnação de Crédito fosse alterada no DL 7.661/1.945, o que não aconteceu, como se verifica do cotejo entre o texto de seu art. 99, com o art. 88 do decreto 5.746/29 e com o art. 88 da lei 2.024/1.908. Outra indicação para a manutenção de tal redação no DL 7.661/1.945 pode ser obtida dos comentários de Trajano de Miranda Valverde que indica que tal dispositivo reproduzia a 2ª parte do art. 770 do Código Comercial Italiano e que: esses quatro motivos de contestação [descoberta de falsidade, dolo, simulação, fraude]… correspondem quase exatamente aos quatro primeiros motivos especificados no Cód. De Proc. Civil, art. 494, que trata da ‘revocazione’ das sentenças[4].
Diante deste comentário de Trajano de Miranda Valverde, pode-se inferir que a manutenção da Ação Rescisória de Habilitação/Impugnação de Crédito tal como disposta no art. 88 da lei 2.024/1.908 não só ignorava a evolução do instituto da Ação Rescisória naquele tempo, 1.945, como ignorava também as marcantes diferenças entre a Ação Rescisória do direito brasileiro com a ação de ‘revocazione’ do direito italiano[5]–[6]. Tal equívoco, como se verifica, não foi sanado nem com o advento da lei 11.101/05 e tampouco com o advento da lei 14.112/20, tendo sido mantida a sistemática da Ação Revocatória da Sentença de Habilitação/Impugnação de Crédito.
Quando confrontado o art. 19 da lei 11.101/05 com o direito vigente, sua inconstitucionalidade salta aos olhos. A Constituição Federal de 1.988 é clara ao dispor quanto a competência dos tribunais para o julgamento de Ação Rescisória (art. 102, I, “j”, art. 105, I, “e”, art. 108, I, “b”, e, art. 125, §1º, todos da CF) e atualmente ninguém mais põe em dúvida a competência dos Tribunais do Trabalho e Estaduais para o julgamento das Ações Rescisórias de seus julgados e de seus juízes de 1ª instância7.
Daí porque o art. 19 da lei 11.101/05 é inconstitucional, por violar norma de competência prevista na Constituição Federal, de modo que ante a inconstitucionalidade deste artigo, naquilo que concerne à Ação Rescisória de Sentença de Habilitação/Impugnação de Crédito impõe-se a observância do disposto no CPC para a propositura da referida ação rescisória caso tenha sido julgada a Habilitação Judicial de Crédito ou a Impugnação de Crédito, e, no caso dos créditos em que não houve controvérsia (art. 15, I, da lei 11.101/05), impõe-se, o ajuizamento da ação prevista no §4º, do art. 966, do CPC.
[1] Não há correspondência na lei 859/1.902 e tampouco no decreto 917/1.890.
[2] Tratado da Ação Rescisória. Forense, 1.976, Rio de Janeiro, p. 471-472.
[3] Opus cit., p. 473.
[4] VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à lei de Falências, vol. II. Revista Forense, Rio de Janeiro, 1.94, p. 56.
[5] MIRANDA, PONTES DE. Tratado da Ação Rescisória. Forense, 1.976, Rio de Janeiro, p. 471-472.
[6] Ainda atualmente os estudiosos da Ação Rescisória indicam sensíveis diferenças entre a Ação Rescisória prevista no ordenamento jurídico brasileiro e sua similar italiana: “Na França, na Itália e em Portugal, nossa ação rescisória seria classificada como um recurso.” MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Ação Rescisória Do Juízo Rescindente ao Juízo Rescisório. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2.017, p. 83.
7 Duas são as regras básicas de competência para a ação rescisória.
A primeira é que o tribunal que prolatou a decisão rescindenda é o competente para julgar a ação rescisória. A segunda é que a decisão prolatada por juízo de primeiro grau, lá transitando em julgado, é rescindível perante o tribunal a que se encontra imediata e hierarquicamente vinculado o juízo para efeitos de controle de sua decisão. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Ação Rescisória Do Juízo Rescindente ao Juízo Rescisório. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2.017, p. 276.