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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA “NOVA LEI DE FALÊNCIAS”

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA

“NOVA LEI DE FALÊNCIAS”

Rodrigo Cunha Ribas

 

Em 24 de dezembro de 2020, foi publicada a lei 14.112, que alterou e inseriu inúmeros dispositivos na lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Trata-se da chamada “nova Lei de Falências“.

Uma das novidades foi a inserção do artigo 82-A[1] na mencionada lei 11.101/05, o qual faz expressa menção à teoria da desconsideração da personalidade jurídica. É importante esclarecer que, em verdade, anteriormente tal dispositivo já havia sido inserido, pela MP 881, de 30 de abril de 2019, porém não foi mantido quando da conversão dessa medida na lei 13.874, de 20 de setembro de 2019 (“Lei da Liberdade Econômica“). Portanto, tratou-se da segunda tentativa de inserir, na lei 11.101/05, regras acerca da disregard doctrine.

De qualquer modo, observa-se que, sob a ótica do direito material, a lei 14.112/20 não previu qualquer peculiaridade na aplicação dessa teoria no âmbito da falência e da recuperação judicial. Ao contrário, vinculou a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica à estrita observância do artigo 50 do Código Civil, sendo necessária a configuração do abuso da personalidade jurídica, mediante desvio de finalidade ou confusão patrimonial, para que a teoria possa ser aplicada.

Quanto ao direito processual, previu-se a necessidade de observância dos artigos 133 a 137 do CPC, isto é, de prévia instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica antes de se aplicar a teoria. Contudo, optou-se por tornar inaplicável a suspensão do processo prevista no artigo 134, § 3º.

É importante esclarecer que antes de a lei 14.112/20 entrar em vigor já se encontrava precedentes aplicando a teoria desconsideração da personalidade jurídica e o incidente previsto nos artigos 133 a 137 do CPC no âmbito falimentar. Por exemplo, em 10 de setembro de 2019, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo julgou agravo de instrumento interposto contra decisão que julgou procedentes os pedidos formulados em um incidente de desconsideração da personalidade jurídica instaurado em um processo de falência.[2]

Citando doutrina especializada, esse precedente se mostra de suma relevância para a compreensão da questão, uma vez que dele se depreende as seguintes conclusões:

a) a desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito do processo falimentar, não guarda qualquer relação com a extensão dos efeitos da falência prevista no artigo 81 da lei 11.101/05, pois tal dispositivo se aplica apenas aos tipos societários que preveem a responsabilidade ilimitada dos sócios, caso em que não se aplica a disregard doctrine;

b) a desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito do processo falimentar, também não guarda relação com a responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada prevista no artigo 82 da lei 11.101/05, uma vez que esse segundo instituto está no campo da responsabilidade civil, ao contrário da disregard doctrine, sendo imprescindível o cometimento de ato ilícito por parte do sócio, controlador ou administrador;

c) a desconsideração da personalidade jurídica implica a responsabilização do sócio somente com relação ao benefício pessoal obtido por ele com o abuso da personalidade jurídica da sociedade, e não por todo o dano que esta experimentou, como no caso do processo de responsabilização do sócio de responsabilidade limitada previsto no artigo 82 da lei 11.101/05, ou na extensão dos efeitos da falência, em que todo o patrimônio do sócio de responsabilidade ilimitada é atingido;

d) na desconsideração da personalidade jurídica, não há a decretação da falência do sócio, diferentemente do que ocorre na extensão dos efeitos da falência, conforme se depreende do artigo 81 da lei 11.101/05: “A decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes […]“.

Ainda, tal precedente esclarece que a fundamentação do incidente deve se dar de modo específico quanto a cada um dos sócios, elucidando no que consistiu o abuso da personalidade jurídica praticado individualmente por eles, o benefício pessoal que obtiveram e o montante de tal benefício. Tal esclarecimento mostra-se muito relevante no contexto específico da falência, dado o número de sujeitos processuais comumente envolvidos nesse tipo de processo.

Finalmente, convém ressaltar a qualidade da redação do artigo 82-A inserido pela lei 14.112/20, muito superior à do artigo 82-A inserido pela MP 881/19. A redação deste[3] mostrava-se confusa, ao fazer menção, concomitantemente, à extensão dos efeitos da falência e à desconsideração da personalidade jurídica, ao passo que a “nova Lei de Falências” foi muito precisa nesse ponto, diferenciando os dois institutos com bastante clareza.

Com efeito, o caput do artigo 82-A inserido pela lei 14.112/20 prevê expressamente que: “É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.”.

Ou seja, esse novo dispositivo legal torna fácil a compreensão da diferença entre a extensão dos efeitos da falência, cabível apenas nos casos de sócios de responsabilidade ilimitada – reiterando o entendimento da inaplicabilidade desse instituto os sócios de responsabilidade limitada -, e a desconsideração da personalidade jurídica, a qual pode ser aplicada no âmbito do processo falimentar, desde que respeitados os pressupostos para tanto, dentre os quais está exatamente à necessidade de que a espécie de pessoa jurídica preveja a responsabilidade limitada dos sócios.

 

[1] Art. 2º A Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos, seções e capítulo:

[…] ‘Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica.

Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).'”

[2] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de instrumento nº 2078990-10.2019.8.26.0000. Rel. Des. Grava Brazil. j. em 10.09.2019. Publicado em 12/09/2019.

[3] Art. 9º A Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, passa a vigorar com as seguintes alterações:

[…] ‘Art. 82-A.  A extensão dos efeitos da falência somente será admitida quando estiverem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica de que trata o art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.’ (NR)”