A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA CONTRA O SÓCIO MINORITÁRIO E O STJ
Ronan Santos
Ser sócio não significa, necessariamente, ditar os rumos da sociedade. Essa é uma verdade que muitos, no Judiciário, ignoram. Felizmente, o STJ tem adotado uma visão ponderada e técnica sobre a questão.
1. Contextualização do problema
Há uma distinção, bastante comum no universo das sociedades anônimas, entre o sócio que influi decisivamente nos destinos da sociedade e o que a utiliza como veículo de investimento. Quando falamos da sociedade limitada, entretanto, essa separação tende a desaparecer do horizonte jurídico. Pensa-se que, apenas em razão do tipo societário adotado, haveria uma participação maior de todos os sócios na vida social.
A prática trata de desmentir essa suposição. Isso porque há sociedades limitadas que, embora pequenas, possuem sócios que atuam como meros investidores, sem exercer a gestão. Daí a importância de regular a relação societária por meio de um acordo de sócios. Uma das razões para tanto é justamente a regulação dos poderes políticos que cada parte terá. Essa é a origem de institutos como as quotas preferenciais sem direito de voto[1].
Ocorre, contudo, que nem todos os empresários se preocupam em deixar as atribuições de cada agente delimitadas. Confundem-se, na prática, sócio e administrador, quando essas funções não são coincidentes. O problema se manifesta de maneira aguda quando se levanta o véu da personalidade jurídica com o objetivo de atingir o patrimônio dos sócios.
2. A desconsideração da personalidade jurídica e as suas controvérsias
A desconsideração da personalidade jurídica suscitou, ao longo de sua história no direito brasileiro, vivas controvérsias. Isso se deu em razão principalmente de certa incompreensão do instituto. Confunde-se, em numerosas hipóteses, a responsabilidade dos administradores com a ineficácia da personalidade jurídica declarada por incidente[2].
Ora, a responsabilidade dos administradores deriva do próprio texto legal. O art.28 do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, não seria uma hipótese de desconsideração, e sim da responsabilização direta dos gestores[3]. De toda forma, convencionou-se chamar os casos que fogem à regra do art. 50 do Código Civil de “teoria menor da desconsideração”.
O problema surge exatamente quando se aplica a teoria menor, que não exige desvio de finalidade e confusão patrimonial, aos sócios que apenas entraram como beneficiários de um vesting, por exemplo. Dado que a finalidade não era de comandar o empreendimento, e sim auferir uma parte dos lucros como prêmio pelo trabalho bem desempenhado.
3. Papel do sócio e papel do administrador na sociedade
Consolidou-se, no Brasil, o uso da expressão sócio-administrador. Em sociedades de pequeno e médio porte, é rara a contratação de administradores profissionais, o que apenas costuma ocorrer nas grandes companhias abertas. Contudo, o que é não deve embasar a nossa compreensão sobre o que deve ser[4]. Administrador e sócio são papéis diversos que podem, eventualmente, ser desempenhados pelo mesmo sujeito.
Tampouco a situação jurídica de sócio confere poderes de gestão. Disciplinar o exercício desses poderes cabe ao contrato social – no qual se estabelecem as regras fundamentais sobre a administração da sociedade – e ao acordo de sócios – que regula as relações dos sócios entre si. Por conseguinte, não há como partir de uma responsabilização automática, sem que se faça uma análise da forma como cada sociedade se organiza.
4. Posição do Superior Tribunal de Justiça
Vejamos, então, como o STJ vem decidindo em processos que envolvem a desconsideração da personalidade jurídica de sócio minoritário sem poderes de gestão. Vale ressaltar que, evidentemente, se esses poderes existem na prática, o sócio pode ser punido. Entretanto, não se pode punir alguém pelo simples insucesso. Como se verá adiante, as condutas devem ser de comprovada má-fé.
4.1 Com relação ao art. 50 do Código Civil
A lei 13.874/19 (conhecida como Lei da Liberdade Econômica) incluiu o art. 49-A do Código Civil[5] e deu nova redação ao seu art. 50. Os parágrafos primeiro e segundo deste último[6] trouxeram definições sobre desvio de finalidade e confusão patrimonial, o que fornece parâmetros para coibir eventuais excessos judiciais. Aliás, foi princípio posto pela LLE a presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil e empresarial (art. 3°, V) serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário.
A interpretação na matéria deve ser desse modo, restritiva, pois o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica é a regra. As exceções, conforme lição elementar de hermenêutica, não pode ser interpretadas de maneira ampliativa[7]. Portanto, no nosso entender, o direcionamento da desconsideração da personalidade jurídica para o sócio minoritário sem poderes de gestão não pode ser automático. Exige grande ônus para quem a requer, uma vez que vai de encontro a um princípio fundamental do Direito Privado.
A 4ª Turma do STJ entende que a desconsideração, em regra, alcança apenas os sócios administradores e aqueles que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso ou da fraude[8]. Parte-se da correta premissa de que, embora sócio, aquele que não tem poderes de gestão não presenta a sociedade, de modo que não é culpado da fraude ocorrida.
No mesmo sentido, a 3ª Turma do STJ julgou caso envolvendo herdeira de sócio minoritário atingida pela desconsideração. O órgão julgador, a nosso ver de maneira acertada, afastou a responsabilidade daquela, pois não dispunha de poderes de administração nem contribuiu para a prática dos atos fraudulentos[9].
4.2 No Direito do Consumidor
O art. 28, §5°, do Código de Defesa do Consumidor, prescinde da prova da fraude para decretar a desconsideração[10]. Vai além, na verdade, pois estabelece que a pessoa jurídica pode ter a sua eficácia negada sempre que for obstáculo ao ressarcimento dos consumidores. Mais que todos os outros, este dispositivo requer interpretação restrita, sob pena de trazer insegurança jurídica aos empresários.
A matéria chegou ao STJ num caso que versava sobre revisão contratual por atraso na entrega de imóvel. Em razão da sua condição de sócio, o recorrente (que ocupava função de diretor) foi atingido de maneira automática pela desconsideração. No voto-vencedor do Ministro Cueva, prevaleceu o entendimento de que devem ser responsabilizados apenas aqueles sócios que detenham poderes de gestão. O recurso foi provido e os autos, devolvidos às instâncias ordinárias[11].
4.2. No Direito Tributário
Em matéria tributária, consolidou-se o entendimento de que o sócio da sociedade limitada, sem função de gerência, não pode ser responsabilizado por dívidas tributárias contraídas pela sociedade, ainda que esta tenha se dissolvido irregularmente[12]. A conclusão está correta, uma vez que o sócio que não exerce função de administração trata a sociedade como um veículo de investimento, de cujos lucros ele pode se beneficiar. Logo, em princípio, não deve ser responsável pela fraude praticada por terceiros.
5. Precauções contratuais
A partir do exame das decisões acima, a importância da redação de bons contratos sociais e acordos de sócios fica evidente. Esses instrumentos, além de alinhar expectativas, servem como uma prova consistente em caso de eventual litígio. O sócio minoritário não tem voz nem vez e sofre pelos erros que não cometeu. Esse é o pior dos cenários.
Entrar em um contrato de vesting em uma sociedade sem o nível de governança adequado, por exemplo, é um descuido que pode custar caro. Por isso, é necessário examinar com atenção os prós e contras da oferta. Por parte dos sócios que querem instituir um programa de partnership, é necessário disciplinar de maneira minuciosa a relação com o futuro participante da relação societária.
Dessa forma, a chance de ter surpresas desagradáveis é bem menor. Além disso, sociedades que possuem contratos bem redigidos tendem a ter um crescimento mais duradouro e estruturado. Respeitar os direitos do minoritário, portanto, não é somente uma obrigação imposta pela lei, mas uma necessidade.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/393557/desconsideracao-da-personalidade-juridica-contra-socio-e-stj
[1] No tocante a estas últimas, não entraremos na análise de sua validade no ordenamento jurídico brasileiro, remetendo o leitor aos autores contrários e favoráveis. Contra: Campinho. Curso de direito comercial : direito de empresa – 18. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2022, p.159. A favor: Arruda, Pablo Gonçalves e. Mendonça, Saulo Bichara. Quotas Preferenciais: uma análise dos sócios quotistas e os meramente investidores. REI – REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, 7(2), 2021, 571-587.
[2] Vide Campinho. Curso de direito comercial : direito de empresa – 18. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2022, p. 79-82.
[3] lei 8.078/90, O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração (grifo nosso).
[4] Trata-se da famosa Lei de Hume (v. Hume, David. Tratado da Natureza Humana. Livro III, Parte I, Seção II. São Paulo, Editora UNESP, 2000, p. 509).
[5] Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.
[6] Art. 50 (…)
1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela lei 13.874, de 2019)
[7] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito – 20. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.192
[8] AgInt no AREsp n. 1.735.099/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 24/4/23, DJe de 2/5/23
[9] REsp n. 1.861.306/SP, relator Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 2/2/21, DJe de 8/2/21
[10] CDC, art.28, § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
[11] REsp n. 1.900.843/DF, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 23/5/23, DJe de 30/5/23.
[12] AgRg no AREsp n. 791.728/SP, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 23/8/18, DJe de 30/8/18