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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: A CARACTERIZAÇÃO DA CONFUSÃO PATRIMONIAL NAS RELAÇÕES CIVIS

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: A CARACTERIZAÇÃO DA CONFUSÃO PATRIMONIAL NAS RELAÇÕES CIVIS

José Roberto Della Tonia Trautwein

A autonomia patrimonial destina-se a estimular empreendimentos e, sobretudo, assegurar o desenvolvimento econômico e social.

1) Objetivo

Este trabalho tem por finalidade demonstrar, a partir da análise de decisões judiciais, alguns dos elementos probatórios considerados pelo Poder Judiciário para o acolhimento de pedido de desconsideração da personalidade jurídica em relações cíveis, com base na confusão patrimonial.

 

2) Desconsideração da personalidade jurídica

A lei 13.874/19, que instituiu a declaração da liberdade econômica, inseriu o art. 49-A no Código Civil para reforçar a compreensão sobre a ausência de “confusão entre os patrimônios das pessoas jurídicas com o de seus sócios, associados, instituidores ou administradores“. Além disso, consignou no parágrafo único desse dispositivo legal que “A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”

Essa regra pode ser excepcionada, nos termos do art. 50 do Código Civil, quando se constatar “abuso da personalidade jurídica, caracterizada pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial“, ocasião em que o Magistrado poderá “desconsiderar a personalidade jurídica para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou sócios da pessoa jurídica beneficiada direta ou indiretamente pelo abuso.

A desconsideração inversa da personalidade jurídica encontra-se disposta no § 3º do art. 50 do Código Civil, autorizando o atingimento dos bens da pessoa jurídica toda vez que for comprovado o abuso da personalidade jurídica praticada pelo sócio ou administrador. Da mesma forma, a legislação estabelece que a “mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica” (art. 50, § 4º, do Código Civil).

Evidencia-se, portanto, que nas relações disciplinadas pelo Código Civil aplica-se a teoria maior, “que exige a comprovação de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pelo que a mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa não justifica o deferimento da medida excepcional” (STJ, 4ª T., AgInt no REsp 2.072.521/MG, rel. Min. Marco Buzzi, j. 4/9/23).

 

3) Confusão patrimonial e seu reconhecimento pelo Poder Judiciário

O Código Civil, após o advento da lei 13.874/19, passou a elencar atos que ensejariam o reconhecimento da confusão patrimonial no § 2º de seu art. 50:

Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante;

outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

Mas em quais situações os Tribunais vêm reconhecendo a confusão patrimonial e determinando a desconsideração da personalidade jurídica? É o que se passa a demonstrar, a partir da análise de alguns julgados:

1º julgado: TJ/PR agravo de instrumento 37217-27.2021.8.16.0000, Rel. Des. Lauri Caetano da Silva, j. 12/11/21

O acórdão reconheceu a confusão patrimonial e acolheu o pedido de desconsideração da personalidade jurídica aduzindo que os dois automóveis encontrados em busca no Renajud não foram localizados pelo oficial de justiça para fins de avaliação e penhora ocasião em que também foi certificado que a empresa executada encerrou suas atividades no endereço indicado no mandado. Intimada, a devedora apresentou o endereço em que se localizava um dos automóveis e indicou, sem produzir qualquer prova que o outro veículo se deteriorou. Determinada a avaliação do primeiro automóvel, o oficial de justiça informou que o sócio da executada teria dito que nunca exerceu a posse sobre aludido bem e que desconhecia as partes envolvidas. Na sequência, o acórdão argumenta que a informação prestada ao serventuário pelo sócio da devedora é distinta do esclarecimento constante da petição protocolizada pelo advogado da executada, sendo improvável que o sócio majoritário da executada não soubesse do exequente ou do veículo da devedora. Ao final, a decisão justifica a necessidade de deferimento da desconsideração da personalidade jurídica, eis que “a manifestação do advogado que o representa (mov. 48.1) indicou que o bem se localizava justamente no endereço residencial do sócio majoritário (…), o que corrobora a confusão patrimonial entre a pessoa jurídica e a pessoa física, a má-fé do sócio e a tentativa de ocultação patrimonial, o que ilustra o desvio de finalidade.”

 

2º julgado: TJ/RJ agravo de instrumento 0044764-66.2023.8.19.0000, Relª. Desª. Renata Silvares França, j. 24/8/23

O incidente busca a inclusão no polo passivo da execução de título extrajudicial das duas sociedades empresárias que integrariam o grupo econômico da executada. Segundo o acórdão, foi constatada a existência de indícios da ocorrência do fenômeno de “Phoenix Company, hipótese que, a rigor, configura sucessão irregular de empresas com o abandono da endividada“. Esses indícios estariam presentes na adoção de nome fantasia ou razão sociais idênticos ou assemelhados, possuindo ramos de atuação similares ou parecidos. Além disso, pontuou-se que a executada pessoa jurídica teria sofrido alteração no quadro societário, passando a ter como único sócio o pai de sua ex-sócia. Na sequência, justifica-se a necessidade de se deferir a desconsideração da personalidade jurídica aduzindo que se verifica “indício, portanto, do esvaziamento da empresa e da confusão patrimonial característica do fenômeno da ‘Phoenix Company’, descrita por João Pedro de Souza Scalzilli, como ‘a doação das quotas da sociedade descartada entre parentes, amigos ou terceiros, geralmente ‘laranjas’ sem patrimônio algum“. Por fim, sustentou-se que o registro junto à Secretaria da RF indica que empresa executada teria sido extinta por liquidação voluntária, autorizando, conforme orientação do TJ/RJ, a inclusão dos sucessores no polo passivo do processo executivo.

3º julgado: TJ/SP agravo de instrumento 2123808-08.2023.8.26.0000, Rel. Des. Miguel Brandi, j. 30/8/23

O recurso foi interposto para obter a reforma de decisão proferida pelo juízo monocrático, que indeferiu o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora. O TJ/SP reformou a decisão a quo dizendo que a recorrente teria fundamentado a alegação de ocorrência da confusão patrimonial na alienação de imóveis da pessoa jurídica executada para outra empresa, que, por sua vez, no dia seguinte teria gravado os mesmos bens em hipoteca para os sócios da executada. O gravame acabou sendo cancelado dois meses mais tarde. Além disso, a confusão patrimonial também foi justificada na constatação de que o sócio da empresa adquirente era o diretor da sociedade empresária devedora. Tais elementos resultaram na reforma da decisão, em virtude da “Evidente confusão patrimonial que permite desconsiderar a personalidade jurídica da devedora“.

4º julgado: TJ/PR, apelação cível 0009744-67.2013.8.16.0058, Rel. Des. Rotoli de Macedo, j. 25/4/23

No processo, discutiu-se pedido formulado pelo autor objetivando a permanência do sócio-gerente da pessoa jurídica devedora no polo passivo da ação de indenização. O acórdão modificou a decisão do Juízo monocrático, que acolheu a ilegitimidade passiva, e determinou a continuidade do sócio-gerente no polo passivo, sob o argumento de que a empresa devedora teria recebido imóveis para o pagamento do trespasse de estabelecimento empresarial, cujo recibo fora outorgado pelo sócio-gerente, “pessoa física, e não como administrador da referida empresa“. Um ponto a ser destacado no acórdão para a reforma da sentença consiste no argumento de que, embora se possa suscitar equívoco na elaboração do recibo, “o que se busca é justamente a identificação de qualquer prova ou indício de prova de que em verdade fora desrespeitada a autonomia patrimonial e consequentemente a personalidade jurídica da empresa“, em benefício do sócio-gerente. O acórdão também analisou a questão sobre o viés do encargo probatório, entendendo que a ausência de provas acerca da alegação de que o dinheiro auferido teria sido utilizado para a quitação de débitos da pessoa jurídica, evidenciaria a confusão patrimonial, em razão da inobservância do art. 373, II, do Código de Processo Civil, que determina competir ao réu provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.

 

4) Conclusão

A autonomia patrimonial destina-se a estimular empreendimentos e, sobretudo, assegurar o desenvolvimento econômico e social. Sua utilização não deve acobertar práticas ilícitas, como as demonstradas anteriormente, ou, ainda, quando se constatar o emprego de recursos da sociedade empresária para a quitação de despesas pessoais dos sócios (TJPR, 18ª CC, AI 0036073-81.2022.8.16.0000, Relª. Desª. Denise Kruger Pereira, j. 15/2/23). Nessas situações de confusão patrimonial, a pessoa física ou jurídica beneficiária passa a integrar o polo passivo da demanda, a fim de que a outra parte não tenha seus interesses lesionados e possa auferir os valores devidos a fim de que cada operação econômica possa ser cumprida de forma satisfatória, com o atingimento dos fundamentos e dos objetivos fundamentais da República, dispostos, respectivamente, nos arts. 1º e 3º da Constituição Federal de 1988.

 

FONTE:

https://www.migalhas.com.br/depeso/394164/a-desconsideracao-da-personalidade-juridica