A CLÁUSULA DO PÔR- DO – SOL (SUNSET CLAUSE) NO DIREITO DE FAMÍLIA
Pablo Stolze Gagliano[1]
Sumário
A Autonomia Privada e as Relações de Família no Anteprojeto de Reforma do Código Civil; 2. Compreendendo a Sunset Clause: terminologia, conceito, aplicação nas relações contratuais, aplicação no Direito de Família e a experiência estrangeira; 3. Sunset Clause na Reforma do Código Civil: introdução, a proposta de tratamento legal (art. 1.653-B), compreensão da sua dinâmica e do seu termo eficacial, efeitos “ex nunc” (irretroatividade eficacial), cláusula sunset e pacto pós-nupcial, cláusula sunset diante da prática de atos fraudulentos, aplicabilidade imediata no atual sistema jurídico brasileiro; 4. Reflexão Final.
1. A Autonomia Privada e as Relações de Família no Anteprojeto de Reforma do Código Civil
Seguindo a diretriz e critérios editoriais objetivos desta coluna, começo tecendo breves considerações sobre o espaço de destaque dado à autonomia privada, no Livro de Direito de Família, no Anteprojeto de Reforma do Código Civil[2]
Um maior espaço para a autonomia privada já era esperado. Aliás, já não era sem tempo.
Primando pela segurança jurídica, a Comissão de Juristas do Senado, presidida pelo eminente Ministro Luís Felipe Salomão, concluiu pela imperiosa necessidade de se conceder mais espaço à autodeterminação dos brasileiros e brasileiras no âmbito das suas próprias questões – e vivências – de Direito de Família.
Afinal, já não havia mais ambiente para um dirigismo estatal asfixiante.
Há muito, a doutrina compreendeu que autonomia privada não seria mera tradução de liberdade contratual, indo além, pois implicaria o reconhecimento de uma autodeterminação volitiva inclusive no âmbito existencial.
Isso não significa, por óbvio, a consagração de uma autonomia rebelde, temerária e anárquica, mas sim, projetada nos limites da função social e da boa-fé objetiva.
Diversas proposições sugeridas, no Livro de Direito de Família, comprovam esse novo espaço de liberdade.
Destaco algumas delas[3]:
Formação de Família Parental e Assunção de Corresponsabilidade Pessoal e Patrimonial
Art. 1.511-B. § 2° – Para a preservação dos direitos atinentes à formação da família parental, é facultado a todos os seus membros declararem, em conjunto, por escritura pública, a assunção da corresponsabilidade pessoal e patrimonial entre seus membros e postularem a averbação dessa declaração nos respectivos assentos de nascimento, na forma do § 1° do art. 10 deste Código, sem que essa providência lhes altere o estado familiar;
Doação Pura de Gametas
Art. 1.629-F. É permitida a doação pura e simples de gametas, vedada a sua comercialização a qualquer título.
Art. 1.629-G. O doador deve ser maior de 18 (dezoito) anos e manifestar, por escrito, a sua vontade livre e inequívoca, de doar material genético.
Parágrafo único. É vedado ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços e aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas trabalham serem doadores de gametas na unidade ou rede que integram.
Manifestação Volitiva para Uso Post Mortem de Material Genético
Art. 1.629-Q. É permitido o uso de material genético de qualquer pessoa após a sua morte, seja óvulo, espermatozoide ou embrião, desde que haja expressa manifestação, em documento escrito, autorizando o seu uso e indicando:
I – a quem deverá ser destinado o gameta, seja óvulo ou espermatozoide, e quem o deverá gestar após a concepção;
II – a pessoa que deverá gestar o ser já concebido, em caso de
embrião.
Parágrafo único. Em caso de filiação post mortem, o vínculo entre o filho concebido e o genitor falecido se estabelecerá para todos os efeitos jurídicos de uma relação paterno-filial.
Livre Estipulação de Bens e Interesses Patrimoniais Antes ou Depois de Celebrado o Casamento ou a União Estável
Art. 1.639. É lícita aos cônjuges ou conviventes, antes ou depois de celebrado o casamento ou constituída a união estável, a livre estipulação quanto aos seus bens e interesses patrimoniais.
1° O regime de bens entre os cônjuges ou conviventes começa a vigorar desde a data do casamento ou da constituição da união estável.
2° Depois da celebração do casamento ou do estabelecimento da união estável, o regime de bens pode ser modificado por escritura pública e só produz efeitos a partir do ato de alteração, ressalvados os direitos de terceiros.
Cláusulas Especiais (para Guarda e Sustento dos Filhos) em Pactos Conjugais e Convivências
Art. 1.655-A. Os pactos conjugais e convivências podem estipular cláusulas com solução para guarda e sustento de filhos, em caso de ruptura da vida comum, devendo o tabelião informar a cada um dos outorgantes, em separado, sobre o eventual alcance da limitação ou renúncia de direitos.
Parágrafo único. As cláusulas não terão eficácia se, no momento de seu cumprimento, mostrarem-se gravemente prejudiciais para um dos cônjuges ou conviventes e sua descendência, violando a proteção da família ou transgredindo o princípio da igualdade.
Essa breve seleção de dispositivos confirma a premissa aqui exposta: a autonomia privada, com as justas limitações impostas pela segurança jurídica, ganhou protagonismo na Reforma, com a percepção, cada vez maior, do fenômeno de contratualização nas relações de família.
E, desde que esse movimento seja pautado pela segurança e preservação de valores existenciais, resultará, sem dúvida, em um aperfeiçoamento de todo o sistema, com mais espaço de liberdade e autodeterminação[4].
Note-se, aliás, que todo esse processo de mudança projeta as suas luzes, inclusive, no âmbito sucessório, conforme se pode verificar, por exemplo, em face da importante mudança sugerida quanto à regra proibitiva do contato que tenha por objeto a herança de pessoa viva (pacta corvina)[5].
Nesse contexto, merece destaque a interessantíssima sunset clause (“cláusula do pôr-do-sol”), proposta no âmbito do Regime de Bens, objeto deste texto.
2. Compreendendo a Sunset Clause: terminologia, conceito, aplicação nas relações contratuais, aplicação no Direito de Família e a experiência estrangeira.
A denominada sunset clause (“cláusula do pôr-do-sol”), também conhecida como “cláusula de caducidade”, é oriunda da experiência anglo-saxônica.
É importante compreender o seu conceito: por meio dessa estipulação negocial, prevê-se um termo ou uma condição resolutiva, que opera a alteração de uma situação jurídica ou a extinção dos seus efeitos.
Encerra-se um panorama ou horizonte jurídico, para iniciar-se outro, como se dá, diariamente, após o pôr-do-sol, daí derivando a origem da expressão “sunset clause”.
A sua aplicação não é restrita ao Direito de Família, estando presente, em especial, no campo das obrigações contratuais, e, até mesmo, nas relações internacionais[6].
Estudando o instituto, com olhos na aplicação da sunset clause em pedidos formulados perante a Administração Pública, à luz da Lei da Liberdade Econômica – Lei n º 13.874/19, escreveu Carlos Eduardo Elias de Oliveira:
“Trata-se da regra que estabelece o deferimento tácito de pedidos administrativos de liberação de atividade econômica após o transcurso de um prazo especificamente estipulado (art. 3º, IX e §§ 7º e 8º, LLE) [7]”.
Logicamente, aqui, o foco é o Direito de Família.
No âmbito dos pactos antenupciais, segundo a experiência estrangeira, não é incomum a inserção de uma cláusula sunset a qual “can cancel or substantially alter the agreement during the marriage. Sunset clauses take effect after a certain period of time or upon the occurrence of a certain event”. Vale dizer, a referida estipulação pode extinguir ou substancialmente alterar o pacto, durante o casamento. A referida cláusula vigorará após um certo lapso de tempo ou em face do implemento de determinado evento.[8]
Nessa linha, o casal pode, em um primeiro momento, nos dois primeiros anos do casamento, por exemplo, estabelecer normas patrimoniais mais restritivas, de maneira que, após o decurso do prazo, o regime passaria a ser mais comunitário ou compartilhado.
Como se houvesse um “período de teste” ou “estágio probatório”, que, por medida de segurança, recomendaria inicialmente um estatuto normativo mais cauteloso.
Matéria publicada no Chicago Tribune traz essa ideia, no sentido de que, por meio da cláusula sunset, o casal objetiva “testar” o casamento: se não der certo, pretende- se, com aquela previsão normativa, que o fim do matrimonio se opere com o menor índice de dano patrimonial possível; mas, se o casamento for exitoso, projetar-se-ão as regras “normais” do pacto pré-conjugal:
Many couples who use sunset clauses in their prenuptial agreements do it because they essentially want to test the marriage out. If it doesn’t work and that becomes quickly apparent, they both want to get out of the marriage with all of their assets intact and with as little trouble as possible. However, if the marriage does work and continues on for years, they want to revert back to a “normal” arrangement and do away with the prenuptial agreement[9].
A mesma matéria aponta uma interessante situação de risco na previsão de uma sunset clause: “after all, if you set your sunset clause at 10 years and get divorced after 11 years, you could lose a lot because of that one extra year of marriage”[10]. Explico esse trecho com um exemplo. Imagine-se que, por estipulação no pacto, nos dez primeiros anos do casamento, houvesse completa separação patrimonial, com clara exclusão de comunicabilidade de bens, além de outras regras restritivas. Ultrapassado o decênio, a cláusula sunset operaria a “ativação” de um regime de comunhão total de bens. O casal permaneceu unido apenas um ano após o termo previso na sunset. Esse “ano extra” poderá significar (ou custar) muito…
Por tais razões, penso que, na perspectiva do planejamento familiar, deve a cláusula ser redigida com extrema cautela, evitando-se prazos demasiadamente longos para efeito de “teste” da relação conjugal.
Mas, logicamente, cada caso recomendará tratamento próprio, não havendo, portanto, regra imutável e absoluta a ser seguida.
3. Sunset Clause na Reforma do Código Civil: introdução, a proposta de tratamento legal (art. 1.653-B), compreensão da sua dinâmica e do seu termo eficacial, efeitos “ex nunc” (irretroatividade eficacial), cláusula sunset e pacto pós-nupcial, cláusula sunset em face da prática de atos fraudulentos, aplicabilidade imediata no atual sistema jurídico brasileiro.
Como já tive a oportunidade de escrever, a Reforma do Código Civil é, na atualidade, o tema mais importante do Direito Privado:
A efervescência tecnológica da virada do século, a reconstrução profunda dos standards familiares, a velocidade da
comunicação são apenas alguns fatores que não puderam – ou não podiam – ser absorvidos por aquele importante diploma.
Dou-lhes um exemplo simples.
Vasculhe em sua memória os cinco últimos contratos que você pactuou. Certamente, não o fez por correspondência epistolar ou sequer utilizou uma chamada telefônica. Provavelmente, o negócio fora consumado pelo computador ou, simplesmente, pela tela do seu celular, utilizando um aplicativo. Aliás, por meio de um “app”, atualmente, nós comemos, passeamos, viajamos, compramos, jogamos, trabalhamos, ou, até mesmo, podemos encontrar o amor das nossas vidas. Um enredo que causaria espanto até mesmo a George Orwell.
O Código de 2002 não pode antever essa realidade. Mas é a realidade da vida de cada brasileiro.
A atualização das suas normas não podia mais tardar, inclusive diante da lucida advertência feita por Otávio Rodrigues Jr., no sentido de que o Direito Privado vive um “renascimento” como esfera de desenvolvimento das relações jurídicas.”
Comentando a codificação de 1916, o grande Eduardo Espínola ponderou que “antes de publicado o nosso Código Civil, todos aqueles que, por dever de ofício ou inclinação de espírito, se dedicavam ao estudo do Direito Civil entre nós, reconheciam as inúmeras dificuldades que se lhe apresentavam, a cada passo, quer provenientes, em certos pontos, da deficiência do nosso direito positivo então em vigor, quer, em outros, do excesso de leis incompletas e contraditórias”.
Por certo, avanço legislativo houve, embora não isento de críticas, a partir da edição e publicação do Código Beviláqua, e, muitos anos mais tarde, com o advento do Código Civil de 2002.
Mas os novos tempos impõem urgente atualização[11].
Sem dúvida, nesse esforço necessário de atualização, o Direito de Família desponta com grande força e importância.
Como dito linhas acima, o trabalho empreendido pela Comissão de Juristas do Senado, no sentido de fazer dialogar, com mais proximidade e clareza, as “normas familiarista” e a sociedade brasileira, resultou no reconhecimento da necessidade de um espaço mais adequado para a autonomia privada.
Nesse contexto, a consagração de uma regra prevendo a sunset clause no âmbito patrimonial do casamento ou da união estável – no pacto conjugal ou no convivencial, respectivamente – tem um grande significado social e jurídico. Confira o dispositivo sugerido pelo Anteprojeto:
Art. 1.653-B. Admite-se convencionar no pacto antenupcial ou convivencial a alteração automática de regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado, sem efeitos retroativos, ressalvados os direitos de terceiros
Com isso, consagra-se um interessante instituto oriundo do direito comparado e que, sem dúvida, confere mais liberdade e segurança jurídico-patrimonial aos casais brasileiros.
Trata-se, sem dúvida, de relevante (e inovadora) regra, limitada ao âmbito patrimonial: não poderá, pois, dispor sobre aspectos existenciais ou de ordem pública, como, por exemplo, a alteração de deveres cogentes emanados da autoridade parental.
Discorrendo sobre o instituto, observa Flávio Tartuce:
Trata-se da chamada “sunset clause” ou cláusula de caducidade – literalmente, “cláusula do pôr do sol” -, com origem no sistema da Common Law, tendo sido destacada pelo Professor Pablo Stolze Gagliano em vários momentos dos encontros da Comissão de Juristas. Como constou do Relatório da Subcomissão de Direito de Família, da qual ele fez parte, sempre foi a sua intenção tratar da “regra inovadora (sunset clause), no sentido de permitir ao casal optar, após um lapso de tempo, pela alteração automática do regime de bens (‘é admitido pactuar a alteração automática de regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado’)”. Assim, a título de exemplo, os cônjuges e companheiros poderão convencionar que nos cinco anos iniciais do relacionamento o regime patrimonial será o da separação convencional de bens, convertendo-se em comunhão parcial depois desse período de experiência. A previsão, mais uma vez, é essencialmente patrimonial, não havendo qualquer lesão a normas cogentes ou de ordem pública, o que foi uma preocupação constante da Reforma. Mais uma vez, segue-se a linha de redução de burocracias, de desjudicialização, de destravar a vida das pessoas, como tenho destacado de forma constante[12].
De acordo com a regra sugerida (art. 1.653-B), a sunset clause brasileira não está adstrita a condição resolutiva (acontecimento futuro e incerto), mas, sim, a termo (acontecimento futuro e certo), porquanto é claramente mencionado que a alteração automática do sistema patrimonial inicialmente adotado ocorrerá “após o transcurso de um período de tempo prefixado.”
E note-se: “sem efeitos retroativos”, o que reforça a regra segundo a qual a alteração de regime de bens projeta efeitos para o futuro (ex nunc) e não para o passado (ex tunc).
Assim, por exemplo, pode, o casal, estabelecer que, no primeiro ano do casamento, vigorará o regime da separação total de bens, com a administração exclusiva do patrimônio pessoal, sem nenhuma comunicabilidade patrimonial.
Ultrapassado o primeiro ano, por aplicação da cláusula sunset, o regime, conforme acordado, converter-se-á, automaticamente, em comunhão parcial de bens, imediatamente a partir de findo o lapso de um ano.
Observe-se que essa alteração não retroagirá para a data da convolação das núpcias, de maneira que, até a data da conversão, o regime aplicável, inclusive em face de terceiros, será, para todos os fins, o da separação total (tempus regit actum).
A regra proposta é clara: “sem efeitos retroativos”.
Ora, operada a conversão automática, o que for apurado como patrimônio pessoal de cada cônjuge deve ser considerado bem exclusivo de cada um, na perspectiva do novo (e convertido) regime da comunhão parcial.
Trata-se, sem dúvida, de uma consequência natural decorrente da escolha que fizeram, ao estabelecer um período inicial de “teste” no casamento, sujeitando-se aos efeitos das regras patrimoniais do regime escolhido naquele primeiro momento.
Logicamente, se a alteração for para o regime da comunhão universal, ter-se- á a impressão de que a mudança operou efeitos retroativos, o que não é verdade, porquanto essa falsa impressão decorre da própria natureza do regime comunitário adotado que opera a comunicabilidade de bens passados e futuros.
Interessante ainda destacar que a cláusula do pôr-do-sol também pode ser estipulada em contrato convivencial, ou seja, na perspectiva da união estável. Aliás, a Comissão de Reforma, em diversos momentos, no anteprojeto, teve o cuidado de atentar para a situação dos conviventes, razão por que, a título exemplificativo, ao abrir o Título II, do Direito Patrimonial, expressamente mencionou, no Subtítulo I, “Do Regime de Bens entre Cônjuges e Conviventes”. Embora casamento e união estável não sejam, por certo, institutos idênticos, merecem, em certos pontos, tratamento equiparável ou isonômico.
Uma ponderação interessante ainda pode ser feita.
A regra proposta (art. 1.653-B) menciona que a cláusula pode ser inserida “no pacto antenupcial” o que conduziria à falsa conclusão de não ser possível a sua pactuação após o casamento. De fato, a ambiência natural para a pactuação da sunset é o pacto antenupcial (ou convivencial), mas nada impede que, após o início do enlace conjugal, o casal conclua ser mais seguro e adequado convencionar uma cláusula dessa natureza.
Suponha-se, por exemplo, que, um ou dois meses após convolarem núpcias, os cônjuges (o mesmo, claro, seria aplicável à união estável) busquem assistência jurídica para estabelecer uma cláusula no sentido de que, a partir da data da sua pactuação, sujeitar-se-ão, por um ano, ao regime de separação total, admitindo-se a conversibilidade automática em comunhão parcial após a consumação do prazo ajustado.
Aliás, a possibilidade de se ajustar um “pacto pós-nupcial” é algo perfeitamente possível, inclusive em outros sistemas no mundo.
No dizer de Polly Morgan,
An agreement made before de marriage is a prenuptial agreement, sometimes called an ´antenuptial´ agreement. An agreement made during the marriage but before it has broken down is a postnuptial agreement[13].
O anteprojeto de Reforma, nesse ponto, é claro:
Art. 1.639. É lícita aos cônjuges ou conviventes, antes ou depois de celebrado o casamento ou constituída a união estável, a livre estipulação quanto aos seus bens e interesses patrimoniais. (grifei)
É desnecessário anotar – mas, por cautela, vale o registro – que a previsão da cláusula sunset não pode encobrir prática de ato fraudulento (para prejudicar, por exemplo, o direito de credores ou de terceiros de boa-fé).
Por fim, a despeito da inegável importância de se consagrar, em texto de lei, o instituto aqui estudado, penso já ser perfeitamente possível, no sistema jurídico atual, pactuar-se a sunset clause, na perspectiva da admissibilidade de um regime de bens progressivo, à luz da autonomia privada, desde que não haja violação a direitos de terceiros.
Nessa linha, discorrendo sobre essa admissibilidade do regime patrimonial progressivo, sustentam Carlos Eduardo Elias de Oliveira e João Costa-Neto:
Regime progressivo é o regime de bens que, após o transcurso de tempo ou ocorrência de evento futuro indicado no pacto antenupcial, muda de regras. Por exemplo, pactua-se que as regras do regime da separação de separação de bens vigorarão até o 10º ano de casamento, a partir de quando passará a viger as regras do regime da comunhão parcial.
Esse regime progressivo é plenamente viável, desde que o evento futuro indicado no pacto antenupcial seja inteligível e operacional. Em regra, recomendamos que o evento futuro seja meramente temporal (uma data ou um tempo de casamento)[14].
Portanto, defendo, firmemente, a possibilidade, pelos argumentos supra, de se já poder convencionar a cláusula sunset no atual sistema jurídico brasileiro.
4. Reflexão Final
É de inegável valor a proposta, constante no anteprojeto de Reforma do Código Civil, no sentido de se consagrar, no âmbito do Direito Patrimonial de Família, a cláusula do pôr-do-sol (sunset clause).
Essa consagração dialoga com a autonomia privada, respeitando a autodeterminação e a liberdade dos casais brasileiros.
Ao longo desse texto, partindo da experiência estrangeira, cuidei de conceituar o instituto, além de analisar a sua dinâmica, alcance e características fundamentais, sua irretroatividade eficacial, com a utilização de exemplos, a admissibilidade da cláusula sunset inclusive em pacto pós-nupcial, a sua vedação diante da prática de atos fraudulentos, e, por fim, concluí no sentido da sua imediata aplicabilidade no atual sistema jurídico brasileiro, a despeito da ausência de norma legal expressa.
Trata-se, sem dúvida, de um instituto útil, fascinante, e que, por certo, vai ao encontro do anseio de inúmeros casais brasileiros.
[1] Concluiu a graduação na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em solenidade ocorrida em 1998, tendo recebido o diploma de honra ao mérito (láurea). É pós-graduado em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia, tendo obtido nota dez em monografia de conclusão. É mestre em Direito Civil pela PUC-SP, tendo obtido nota dez em todos os créditos cursados, nota dez na dissertação, com louvor, e dispensa de todos os créditos para o doutorado. Foi aprovado em primeiro lugar em concursos para as carreiras de professor substituto e professor do quadro permanente da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, e também em primeiro lugar no concurso para Juiz do Tribunal de Justiça da Bahia (1999). É autor e coautor de várias obras jurídicas, incluindo o Manual de Direito Civil, o Novo Curso de Direito Civil, O Contrato de Doação e o Manual da Sentença Cível (Saraiva). É professor da Universidade Federal da Bahia. Já ministrou palestras e cursos em diversas instituições brasileiras, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Atuou como Relator de Comissão na IX Jornada de Direito Civil (STJ/CJF). Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia Brasileira de Direito Civil. Membro da Comissão de Juristas constituída pela Presidência do Senado Federal para a Reforma do Código Civil.
[2] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630.
[3] Para facilitar a compreensão, cuidei de inserir um breve título em cada dispositivo citado.
[4] Sobre a autodeterminação, merece transcrição o ensinamento de Otávio Luiz Rodrigues Jr.: “A autodeterminação, a seu modo, seria um poder juridicamente reconhecido e socialmente útil, de caráter ontológico, baseado numa abertura do homem para o mundo e suas experiências e solicitações sensíveis ou não. O plano da autodeterminação estaria no poder de cada indivíduo gerir livremente a sua esfera de interesses, orientando a sua vida de acordo com as suas preferências (RIBEIRO, 1999, p. 22)”. (RODRIGUES Jr., Otávio Luiz. Autonomia da Vontade, Autonomia Privada e Autodeterminação – Notas sobre a Evolução de um Conceito na Modernidade e na Pós-modernidade. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004, p. 126).
[5] 5 Nova redação do art. 426, segundo o anteprojeto de Reforma do Código Civil: Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.
1º Não são considerados contratos tendo por objeto herança de pessoa viva, os negócios:
I – firmados, em conjunto, entre herdeiros necessários, descendentes, que disponham diretivas sobre colação de bens, excesso inoficioso, partilhas de participações societárias, mesmo estando ainda vivo o ascendente comum;
II – que permitam aos nubentes ou conviventes, por pacto antenupcial ou convivencial, renunciar à condição de herdeiro.
2º Os nubentes podem, por meio de pacto antenupcial ou por escritura pública pós-nupcial, e os conviventes, por meio de escritura pública de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro cônjuge ou convivente.
3º A renúncia pode ser condicionada, ainda, à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas, nos termos do art. 1.829 deste Código, não sendo necessário que a condição seja recíproca.
4º A renúncia não implica perda do direito real de habitação previsto o no art. 1.831 deste Código, salvo expressa previsão dos cônjuges ou conviventes.
5º São nulas quaisquer outras disposições contratuais sucessórias que não as previstas neste código, sejam unilaterais, bilaterais ou plurilaterais.
6º A renúncia será ineficaz se, no momento da morte do cônjuge ou convivente, o falecido não deixar parentes sucessíveis, segundo a ordem de vocação hereditária.
[6] “Naturalmente, el acuerdo también resultaría de aplicación respecto de la ´sunset clause´ de 20 años contenida en el art. 47.3 del TCE en relación con las inversiones anteriores a la denuncia del Tratado22, permitiendo así evitar arbitrajes intra-UE basados en el art. 26 tanto respecto de Estados miembros de inversión que hubieran denunciado el Tratado con anterioridad a su con-clusión (como es el caso de Italia) como que lo hagan en el futuro. En este sentido, la propuesta de acuerdo de la Comisión incluye una disposición con-forme a la cual ´p]ara mayor seguridad, las Partes contratantes confirman[…] que […] el artículo 47, apartado 3, del TCE no se aplica ni se ha aplicado nunca a las relaciones en el interior de la Unión´, añadiendo que ´[e]n consecuencia, dicha disposición no puede haber producido efectos jurídicos en el interior de la Unión cuando un Estado miembro se haya retirado del TCE antes de la ce-lebración del presente Acuerdo, ni producirá efectos jurídicos en el interior de la Unión si un Estado miembro se retira del TCE posteriormente´. Así pues, la celebración de dicho acuerdo entre los Estados miembros, la UE y Euratom resulta necesaria (o, al menos, muy conveniente) aun cuando todos ellos se retiren del Tratado, como propugna el Parlamento Europeo, si se quieren evitar nuevos arbitrajes intra-UE basados en el TCE.” (DIEZ-HOCHLEITNER, Javier. Prática Española de Derecho Internacional Público – España Anuncia su Decisión de Denunciar el Tratado sobre la Carta de la Energia, disponível nohttps://www.revista-redi.es/redi/article/view/83/83, acesso em 23 de junho de 2024). (grifei) Cf. tb. Sunset Clauses in International Law and their Consequences for EU Law. Antonios Kouroutakis, IE University, Madrid, Spain, disponível no https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2022/703592/IPOL_STU(2022)703592_EN.pdf, acesso em 24 de junho de 2024.
[7] Lei da Liberdade Econômica: Diretrizes Interpretativas da Nova Lei e Análise Detalhada das Mudanças no Direito Civil nos Registros Púbicos, disponível nohttps://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2019/09/25/lei-da-liberdade-economica-diretrizes- interpretativas-da-nova-lei-e-analise-detalhada-das-mudancas-no-direito-civil-e-nos-registros-publicos/, acesso em 21 de junho de 2024.
[8] Fonte: https://www.stratlaw.org/blog/what-is-a-sunset-clause-in-a-prenuptial-agreement-and-how-does- it-work/, acesso em 19.06.2024.
[9] A Sunset Clause Can Test a Marriage – On Behalf of Weinman & Associates, P.C. | May 20, 2016 | Prenuptial Agreements. Source: Chicago Tribune, “Is a prenup expiration date an ex-wife’s best revenge?,” Margaret Littman, accessed May 20, 2016, disponível no:
https://www.weinmanfamilylaw.com/blog/2016/05/a-sunset-clause-can-test-a-marriage/ acesso em 19 de junho de 2024.
[10] Em tradução livre: afinal, se você estipular a mudança do regime de bens após 10 anos e vier a se divorciar após 11 anos, você poderá ter grande perda patrimonial apenas por causa de um único ano adicional de casamento.
[11] GAGLIANO, Pablo Stolze. A Cessão da Posição Contratual no Direito Brasileiro, artigo inédito a ser publicado na obra coletiva “Os 35 Anos do Superior Tribunal de Justiça: A Concretização da Interpretação do Direito Federal Brasileiro”, volume 2, Direito Privado, Ed. Thoth, coordenador geral Min. Mauro Campbell Marques.
[12] TARTUCE, Flávio. A Reforma do Código Civil e as Mudanças quanto ao Regime de Bens – Parte 1, disponível no https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/406125/a-reforma-do-codigo- civil-e-as-mudancas-quanto-ao-regime-de-bens, acessado em 24 de junho de 2024.
[13] MORGAN, Polly. Property Division on Divorce, in Family Law (edited by Ruth Lamont), Oxford University Press, 2018, p. 152. A ideia aqui sustentada é simples. Um acordo, um pacto, firmado antes do casamento é pré-nupcial, algumas vezes denominado ´pacto antenupcial´. Um acordo feito no curso do casamento, e antes do seu fim, é um pacto ´pós-nupcial´ (tradução livre).
[14] Oliveira, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2024, p. 1.344.