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A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA NA TRANSAÇÃO FEDERAL

A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA NA TRANSAÇÃO FEDERAL

André Luiz Fonseca Fernandes

 

Recentemente, foi noticiado que, de cada 10 transações federais, em cerca de 3 é apresentado pedido de revisão da capacidade de pagamento (CAPAG) do sujeito passivo, sendo deferido 1 destes pedidos. No âmbito judicial, já seriam 71 os casos de discussão da CAPAG, que buscam rever o rating dos débitos objeto de transação (art. 24 da Portaria PGFN 6.757/22) e, por conseguinte, os descontos aplicáveis.

Este indício de maior judicialização na transação constitui obstáculo ao seu desenvolvimento. No 4º Relatório do Projeto de Pesquisa: Observatório de Transações Tributárias (data base 1.7.22), do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper, já havia sido apontado um crescimento do contencioso judicial ligado à transação, com a localização de 356 decisões que, ao que parece, não abrangiam litígios sobre a CAPAG[1]. Este quadro de litigiosidade foi agora reforçado pelas controvérsias atinentes à CAPAG.

Transação não combina com judicialização. Como bem assinala o art. 2º, IV da Portaria PGFN 6.757/22, a redução de litigiosidade é um dos princípios reitores do tema. É indispensável, ao menos, mitigar o problema para que ele não transforme, em grande retrocesso, a transação em fonte de teses jurídicas.

Tal mitigação passa pela adequada compreensão do que deve ser entendido por capacidade de pagamento na transação federal. Como evidenciam a Medida Provisória 899/19 e sua conversão na Lei 13.988/20, passando pelas relevantes alterações nela efetuadas pelas Leis 14.375/22 e 14.689/23, a capacidade contributiva do devedor é de observância obrigatória na aplicação do regime transacional e na materialização da transação (art. 1º, §2º da Lei 13.988/20).

Apesar de a Exposição de Motivos da MP 899/19 referir que, entre outras características, a transação pressupõe o correto tratamento dos devedores que não possuam capacidade de pagamento, não havia na citada MP e não há na Lei 13.988/20 qualquer elemento concreto para determinar este correto tratamento do devedor com base em sua capacidade contributiva.

Partiu-se do pressuposto de que a definição dos elementos concretos de delimitação da capacidade contributiva na via transacional constituiria matéria complexa e técnica, não passível de regulação abstrata/geral e que, por isto, deveria ser deixada ao Executivo. Conferiu-se, nestes termos, discricionariedade técnica[2] ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) para disciplinar o assunto (art. 14, parágrafo único da Lei 13.988/20).

Não é objeto deste trabalho esmiuçar as fundadas críticas a que este pressuposto está sujeito. Constatando-se que a discricionariedade técnica é cada vez mais utilizada em matéria de autocomposição tributária (basta lembrar que a disciplina legal da mediação tributária em Porto Alegre abrange, inclusive, um conceito de discricionariedade técnica – art. 6º, VI da Lei 13.028/22), parece mais relevante destacar as os limites desta atuação discricionária do PGFN no delineamento da capacidade contributiva do devedor na transação.

Os mencionados limites derivam, necessariamente, do que se entende por capacidade contributiva na área tributária.

No sentido objetivo, a capacidade contributiva implica a escolha de hipóteses tributárias que correspondam a signos presuntivos de riqueza, de modo a diferenciar situações tributáveis e não tributáveis. O que está em jogo é a distribuição, de forma equânime e consoante a manifestação de riqueza, da carga tributária. Já no sentido subjetivo, ela demanda a análise concreta da esfera individual em busca da riqueza disponível, observadas as fronteiras do mínimo existencial e do não confisco. A atuação aqui está voltada para a justiça distributiva, com o fim de onerar, por meio de tributação mais acentuada, aqueles que manifestarem maior riqueza[3].

Parece claro que, voltando o foco e adaptando-a a transação, a capacidade contributiva do devedor deve, sem descurar do sentido objetivo acima na identificação dos signos presuntivos de riqueza, concretizar em maior grau o seu sentido subjetivo, de maneira a identificar, a partir da apreciação concreta da esfera do sujeito passivo, a riqueza efetivamente disponível para autocomposição.

Caso isto não ocorra, e o destacado exercício de discricionariedade técnica não considere este sentido da capacidade contributiva, a respectiva consequência é ilustrada pela jurisprudência do STF: não cabe ao Judiciário, por falta de capacidade institucional, interferir em juízo de discricionariedade técnica, “salvo ilegalidade manifesta ou ausência de razoabilidade” (ACO 444/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 10/11/20;  ACO 834/ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 5/11/21).

Com apoio no citado art. 14, parágrafo único da Lei 13.988/20, e levando em consideração a modalidade ordinária da transação (deixando de lado modalidades específicas como a transação excepcional – Portaria PGFN 14.402/20), o PGFN assinalou, no ar. 20 da Portaria PGFN 11.956/19, que a capacidade contributiva do devedor seria delineada na forma de sua capacidade de pagamento, decorrente da “situação econômica” e “calculada de forma a estimar se o sujeito passivo possui condições de efetuar o pagamento integral dos débitos inscritos em dívida ativa da União, no prazo de 5 (cinco) anos, sem descontos.”

Para aferir tal capacidade, diversas fontes foram consideradas. No caso de pessoa jurídica, aferia-se, por exemplo, a receita bruta e demais informações na Escrituração Contábil Fiscal, os valores registrados em Notas Fiscais Eletrônicas de entrada/saída e a massa salarial declarada nas Guias de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social.

O tratamento da matéria foi basicamente o mesmo na Portaria PGFN 9.917/20. Em ambas (art. 22), o devedor tinha conhecimento, antes da celebração da transação, de sua capacidade de pagamento e, se julgasse necessário, poderia apresentar pedido administrativo de revisão.

Já na Portaria PGFN 6.757/22, que rege atualmente o tema, o respectivo art. 21 diz que a capacidade de pagamento será “uniforme no âmbito da Administração Tributária Federal”, decorrente “da situação econômica do contribuinte” e “calculada de forma a estimar se o sujeito passivo possui condições de efetuar o pagamento integral dos débitos, no prazo de 5 (cinco) anos, sem descontos.” O art. 23 reitera que o devedor tem conhecimento, antes da celebração da transação, de sua capacidade de pagamento, podendo apresentar pedido administrativo de revisão.

Mas o que ocorre na prática? Na prática, a CAPAG é “resultado da aplicação de uma fórmula estatística”, que considera “alguns signos contábeis possíveis de serem obtidos nas obrigações acessórias da empresa, tais como: A totalidade da receita bruta declarada em PGDAs, o valor de recolhimentos de tributos, valor das notas fiscais de saída nas quais o contribuinte figura como destinatário, entre outros.” Trata-se de medida “estatística”, que “não analisa os documentos contábeis mais fidedignos a um efetivo cálculo de CAPAG.”[4] Por isto, pode não representar a efetiva capacidade contributiva do devedor.

Adota-se, então, uma CAPAG-presumida (estatística) que, em muitos casos, somente se for objeto de pedido administrativo de revisão deferido é que irá se aproximar de uma CAPAG-efetiva, fundada no sentido subjetivo da capacidade contributiva do devedor, na efetiva riqueza disponível para autocomposição.

Este modelo não é adequado porque não busca a apreciação concreta da esfera do sujeito passivo, a sua efetiva capacidade contributiva, a não ser após a apresentação de pedido de revisão. Além do nítido estímulo à litigiosidade administrativa, que pode vir a desembocar na instância judicial (indeferimento de revisão), a sua ausência de razoabilidade autoriza a interferência do Judiciário para readequá-lo.

É indispensável à modificação do modelo, em respeito à capacidade contributiva do devedor e para evitar maior prejuízo ao instituto.

 

[1] De acordo com o referido Relatório: “Quanto às matérias discutidas, a grande maioria das decisões (300 das 356 decisões, isto é, 84,27% das decisões) trata de pedidos para compelir a Receita Federal a inscrever débitos sob sua alçada em dívida ativa, para viabilizar a transação com a PGFN. Isso representa um aumento de pouco mais de 100% dos litígios envolvendo essa matéria. As demais matérias são bastante diversificadas, e envolvem, exemplificativamente, pedido de homologação de desistência de parcelamento administrativo e posterior inscrição dos débitos em dívida ativa (3,37%), pedidos de levantamento de restrições/penhoras no contexto da transação (3,65%), pedidos de utilização de penhoras para pagamento de transação (1,69%) e condenação em honorários advocatícios após desistência de ação para adesão a transação (1,69%).”

[2] SARAIVA NETO, Oswaldo Othon de Pontes. Abordagem Regulatória sobre a Transação Tributária – Ensaio sobre a Aplicação dos Estudos do Direito Regulatório à Administração Tributária. In: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes (coord.). Transação Tributária: Homenagem ao Jurista Sacha Calmon Navarro Coêlho. Belo Horizonte: Forum, 2.023, pp. 82 a 84.

[3] PISCITELLI, Tathiane. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2.021, pp. 115 a 117.

[4] Lima Júnior, Paulo César de. Transação Tributária Federal: a Figura da CAPAG e sua Relação com o Desconto Concedido. Migalhas, 5 de setembro de 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/392979/transacao-tributaria-federal-figura-da-capag-e-relacao-com-desconto. Acesso em: 1 out. 2.023.