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FRAUDE CONTRA CREDORES: O PROBLEMA DO CONSILIUM FRAUDIS

FRAUDE CONTRA CREDORES: O PROBLEMA DO CONSILIUM FRAUDIS

Pedro Oliveira Lourenço

 

O Código de 2002 não trouxe tantas inovações no regramento da fraude contra credores, mantendo-se uma estrutura relativamente semelhante ao seu antecessor. Em ambos, a fraude contra credores é (era) hipótese de anulabilidade, com o seu enquadramento como vício inserto no plano da validade.

A fraude contra credores ocorrerá, dentre outras hipóteses, em caso esvaziamento ou redução patrimonial por transmissão gratuita ou onerosa de bens.

A redação do dispositivo que trata da fraude por transmissão onerosa parece, em uma primeira análise, não guardar maiores dificuldades interpretativas, o que não se pode dizer dos seus desdobramentos práticos e do seu tratamento em doutrina e jurisprudência.

As dificuldades para a caracterização da fraude por transmissão onerosa são, resumidamente, as seguintes: (a) o consilium fraudis como requisito(b) a (des)necessidade de provar o conluio entre devedor e adquirente (concilium fraudis) e (c) a prova da scientia fraudis.

Em razão dos limites deste espaço, restringiremos a abordagem a um panorama geral do consilium fraudis — deixando de lado o concilium fraudis e a scientia fraudis 1, dividindo-se em dois tópicos: (i) o consilium fraudis na legislação e na doutrina e (ii) o consilium fraudis na jurisprudência do STJ.

Consilium fraudis na legislação e na doutrina 

Não raro, comumente se apresentam como requisitos da fraude contra credores por alienação onerosa de bens a anterioridade do crédito, o eventus damni (prejuízo causado ao credor) e o consilium fraudis (a intenção do devedor de fraudar). Há alguma vacilação sobre qual seria o conceito de consilium fraudis, com maior adesão à concepção de que se trata da má-fé, da intenção de causar dano e frustrar a excussão patrimonial.

Ao credor, a anterioridade do crédito, a situação de insolvência e o consequente prejuízo (eventus damni) são de fácil identificação, mesmo com algumas discussões circunstanciais. O problema estaria na exigência de demonstração do intento fraudatório (consilium fraudis), dada a subjetividade e a dificuldade de sua demonstração.

Por essas razões, alguns autores — conforme exposto abaixo — não apontam o consilium fraudis como requisito à caracterização da fraude contra credores, leitura que parece mais vinculada à literalidade do Código Civil. Os fundamentos destes autores são a inexistência de regra que exija do credor a demonstração da intenção de fraudar no ato da alienação onerosa e a dificuldade prática na produção dessa prova de caráter eminentemente subjetivo.

Na Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2005), por exemplo, os artigos 129 e 130 trataram do propósito fraudulento como elemento central do suporte fático normativo, atribuindo relevância à intenção do devedor de prejudicar credores (artigo 130) ou relativizando-a (artigo 129). Isso, porém, não ocorre no Código Civil.

Serpa Lopes e Pontes de Miranda sustentam ser prescindível demonstrar o propósito fraudulento. Marcos Bernardes de Mello, seguindo este mesmo entendimento, esclarece que “o consilium fraudis não constitui elemento essencial à caracterização da fraude contra credores. Não há necessidade de que o devedor ao alienar tenha o intuito, o propósito de fraudar os seus credores, nem mesmo que tenha consciência ou a ciência de que a sua alienação, por exemplo, o levará à insolvência”.

Para essa corrente, a verificação da fraude por alienação a título oneroso dependeria somente da prova do eventus damni e da insolvência notória (ou que deveria ser conhecida do outro contratante), de modo que o fato de o terceiro ter ciência do estado de insolvência do alienante devedor não induz necessariamente a um intento fraudatório.

Pode-se supor, por exemplo, a aquisição, mesmo diante da manifesta situação de insolvência do alienante, de um determinado bem por conveniência do terceiro adquirente, sem se verificar o intento de fraudar credores por parte do devedor ou do outro contratante, reforçando-se a dificuldade em se demonstrar o aspecto subjetivo do negócio jurídico. Ainda assim, dada a situação hipotética insolvência notória, não haveria a necessidade de se perquirir a existência de intenção conjunta ou isolada dos contratantes em prejudicar os credores pela transação, constatando-se a fraude pelo prejuízo causado.

Para Silvio Rodrigues, em sentido contrário, “apresentando-se estes negócios, concorrendo o consilium fraudis e o eventus damni, surge o defeito do ato jurídico”. Filia-se a este entendimento, dentre outros, Caio Mário da Silva Pereira, ao elencar como requisito da fraude contra credores por transmissão onerosa “o consilium fraudis, quando oneroso o negócio jurídico, ou seja, o concerto realizado entre os que dele participaram na ciência do estado de insolvência”.

Essa controvérsia reproduz-se em menor grau na jurisprudência do STJ.

Consilium fraudis na jurisprudência do STJ

No STJ, parece predominar o entendimento acerca da necessidade de se demonstrar o consilium fraudis no ato de transmissão onerosa. As pesquisas revelaram, ainda, certa inexistência de consenso acerca do conceito de consilium fraudis.

Na 3ª Turma, encontrou-se somente um acórdão, proferido no REsp 2.134.847/RS, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em que não se apontou o consilium fraudis como requisito da fraude contra credores por transmissão onerosa. Não há no acórdão digressões sobre a necessidade ou não de se provar o consilium fraudis, mas registrou-se: “a ocorrência de fraude contra credores requer: (I) a anterioridade do crédito; (II) a comprovação de prejuízo ao credor (eventus damni) e (III) o conhecimento, pelo terceiro adquirente, do estado de insolvência do devedor (scientia fraudis)”, não havendo menção ao propósito fraudulento como requisito.

Na 4ª Turma, identificou-se situação semelhante. Apenas uma decisão afastou o consilium fraudis como requisito para caracterização de fraude em transmissão onerosa, proferida no AgInt no REsp 1.294.462/GO, sob a relatoria do ministro Lázaro Guimarães, destacando-se a fundamentação do acórdão com enfoque no consilium fraudis.

Os fundamentos centrais foram exatamente a inexistência, no Código Civil, de “qualquer requisito que aluda à intenção de prejudicar credores ou a conluio” e a dificuldade do credor em demonstrar o aspecto subjetivo da transação.

Este posicionamento, mesmo acompanhado integralmente pelos demais ministros, não é o predominante, tratando-se de decisão isolada na 3ª e 4ª Turma.

Conclusões

Estes breves apontamentos evidenciam a complexidade na operacionalização da fraude contra credores por transmissão onerosa, em especial porque os negócios fraudulentos são, pela própria natureza, obscuros.

Por essas razões, a posição doutrinária pelo afastamento da exigência de demonstração do consilium fraudis, preocupando-se com a efetivação do instituto, defende a interpretação literal do artigo 159 do CC/02. Para essa corrente, bastaria comprovar a anterioridade do crédito, o prejuízo ao credor (eventus damni) e a insolvência notória ou que poderia ser conhecida do outro contratante, sem se falar em má-fé ou aspectos subjetivos do ato negocial, para configurar-se a fraude.

Trata-se, no entanto, de posicionamento minoritário na jurisprudência do STJ, que reiteradamente exige a comprovação do consilium fraudis como requisito indispensável à caracterização da fraude contra credores.

*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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Segundo Pontes de Miranda, o consilium (propósito de fraudar) não se confunde com o conceito de concilium (união, conluio). (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Validade, Nulidade e Anulabilidade. t. IV. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: RT, 2012, p. 569).

Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.

Art. 129. São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: (…)

Art. 130. São revogáveis os atos praticados com a intenção de prejudicar credores, provando-se o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro que com ele contratar e o efetivo prejuízo sofrido pela massa falida.

LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil, vol. I, 4ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962. p. 458.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Validade, Nulidade e Anulabilidade. t. IV. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: RT, 2012, p. 569.

MELLO, Marcos Bernardes de Teoria do fato jurídico: plano da validade / Marcos Bernardes de Mello. – 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. v. 1. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 230.

PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil – v. I / Atual. Maria Celina Bodin de Moraes. – 30. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.

10A pesquisa foi feita apenas utilizando-se o metadado “consilium fraudis” e/ou “eventus damni” (entre aspas para busca exata das expressões) no sítio do STJ; o resultado foi refinado para a análise apenas de Acórdãos (excluindo-se decisões monocráticas, informativos ou enunciados de súmula) da Terceira e da Quarta Turma. Isso resultou em um total de 66 Acórdãos, sendo 37 da Terceira Turma e 29 da Quarta Turma. Com este resultado, tentou-se identificar a exigência ou não do intuito fraudatório para constatação da fraude contra credores na transmissão onerosa, excluindo-se as decisões que tratavam de fraude por transmissão gratuita, fraude à execução ou submetidas à lei 11.101/2005, nas quais identificou-se algumas menções às expressões pesquisadas.

11 REsp n. 2.134.847/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/11/2024, DJe de 8/11/2024. AgInt no REsp n. 1.294.462/GO, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª REGIÃO), Quarta Turma, julgado em 20/3/2018, DJe de 25/4/2018.

 

Fonte: https://www.conjur.com.br/2025-jul-28/fraude-contra-credores-o-problema-do-consilium-fraudis/