4 ANOS DA PERMISSÃO DE SOCIEDADES LIMITADAS “UNIPESSOAIS”: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O TEMA
Fernando Schwarz Gaggini
Marlon Tomazette
1. Introdução
Tema atual de destaque no meio empreendedor é a figura da sociedade limitada em situação de unipessoalidade, ou, mais popularmente, “sociedade limitada unipessoal”.
A sociedade limitada (originalmente denominada “sociedade por quotas de responsabilidade limitada”) foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro em 1919, por força do decreto 3.708. Tal entidade rapidamente se tornou figura de destaque na economia nacional, vindo a ser a principal espécie societária na escolha de empreendedores[1]. Com o Código Civil, foi renomeada, com a nomenclatura atual (“sociedade limitada”), e passou a ter novo regramento, constante dos arts. 1.052 a 1.087 do Código. No entanto, aspecto que sempre esteve presente nesse tipo societário foi a exigência de um número mínimo de dois sócios, caracterizando a pluripessoalidade como um elemento tradicional do referido tipo. Contudo, em 2019, quando completava um século de existência no Brasil, a sociedade limitada sofreu relevante modificação[2], que reduziu a quantidade mínima de sócios, permitindo a unipessoalidade, mediante admissão de que tanto a constituição quanto a permanência da sociedade limitada possam se dar com apenas um sócio. Esse novo cenário gerou bastante impacto no que tange à sociedade limitada, e agora, diante da iminência de completar 4 anos de tal situação, cabem algumas considerações sobre tal realidade.
2. A figura das sociedades “unipessoais”: Breve comentário quanto à admissão no direito estrangeiro e brasileiro
A expressão “sociedade unipessoal” é terminologia que costuma causar grande estranheza a quem com ela tem um primeiro contato. Soa de início, contraditório falar, em um mesmo contexto, de “sociedade” e de “sócio único”. Mas, apesar de tal nomenclatura curiosa, é solução negocial que se mostrou útil na economia mundial. Por tal razão, em Portugal, a professora Catarina Serra relatou, em sua obra, a opinião crítica do jurista Luís Brito Correia, da seguinte forma: Brito Correia diz que “a sociedade por quotas unipessoal é uma mentira, a começar pelo nome”. Na realidade, a SUQ não é uma sociedade – pois não tem pluralidade de sócios -, não é por quotas – pois o sócio tem a totalidade e não uma parte (quota) do capital-, nem é uma pessoa colectiva, apesar de ter personalidade jurídica. Todavia, como também reconhece o autor, face aos dados estatísticos, ela “é uma mentira com grande sucesso“[3].
Costuma-se mencionar que os primeiros vestígios de sociedades unipessoais, na Europa, se deram em Liechtenstein, mas sendo a real imposição do fenômeno na Alemanha[4], em 1980, com o objetivo de incentivar pequenos e médios negócios. A partir da experiência alemã, o instituto se disseminou na Europa, com grande aceitação, passando a ser objeto da 12ª Diretiva 89/677/UE de 21 de dezembro de 1989. Nesse cenário, diversos países acolheram tal possibilidade, embora alguns tenham manifestado resistência à sua aceitação.
Foi o caso de Portugal, que em um primeiro momento se recusou a admitir as sociedades unipessoais. Como alternativa, criou, no ano de 1986, figura diversa, denominada como EIRL – Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada, objetivando permitir a limitação de responsabilidade mediante atribuição de patrimônio ao estabelecimento empresarial. Mas, como observou António Menezes Cordeiro[5], tal instituto não foi bem-sucedido, frente ao que Portugal, dez anos depois, admitiu em seu ordenamento a SUQ – Sociedade Unipessoal por Quotas, o que se deu em 1996.
Na América do Sul, o tema tradicionalmente encontrou resistência. Para evitar aceitar uma “sociedade de um sócio”, países como o Chile e o Brasil tentaram criar figuras equivalentes, mas fora do plano societário.
Foi o caso do Chile, em 2003, ao criar a “EIRL – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”, que não se tratava nem de uma sociedade unipessoal, nem de um patrimônio separado do empresário individual, mas sim de uma forma distinta de pessoa jurídica[6].
O Brasil, de forma semelhante à experiência chilena, optou por, em um primeiro momento (2011), ao invés de admitir a unipessoalidade permanente para sociedades, criar uma figura diversa, mas de função econômica equivalente. Tratou-se da EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, que consistia em tipo de pessoa jurídica que pertencia integralmente a um único titular, e que viria a ser extinta por força da lei 14.382, de 27 de junho de 2022.
Mas, em 2019, entretanto, o Brasil também admitiu a unipessoalidade permanente para sociedades limitadas (situação que “ocupou” o espaço antes reservado à EIRELI, e se mostrou causa direta de extinção de tal figura).
3. A caracterização da sociedade limitada em situação de unipessoalidade diante do direito societário brasileiro
Demonstrada a aceitação da unipessoalidade permanente para sociedades limitadas em nosso ordenamento, cabe agora contextualizá-la.
Um primeiro aspecto a considerar é que não se trata tal figura de um novo tipo empresarial ou societário, como por vezes se fala. Inclusive, entendemos incorreto afirmar que ela foi criada no ano de 2019. Isto porque, na realidade, não se tratou de criação de nova forma societária, mas apenas a admissão de uma situação (de unipessoalidade permanente), aplicável à tradicional sociedade limitada, há tanto tempo entre nós.
Logo, falar em sociedade limitada unipessoal, como se fosse algo distinto da tradicional sociedade limitada, é um equívoco. O que ocorreu foi apenas uma modificação legislativa pontual referente à sociedade limitada, que reduziu o número mínimo de sócios, para permitir que ela possa também ser constituída ou mantida por um único sócio, em situação permanente (podendo constituir-se originalmente desta forma, ou converter-se a tal situação, sem limitação de tempo).
Assim, não tem lógica se referir, em separado, à “sociedade empresária limitada“, diferenciando da sociedade limitada unipessoal, dada serem, em realidade, um único instituto, submetido a um único regramento (Código Civil, arts. 1.052 a 1.087)[7].
Por isso, até melhor do que se falar em sociedade limitada unipessoal, é mencionar se tratar de sociedade limitada em situação de unipessoalidade, até porque a qualquer momento a sociedade pode receber novos sócios, passando, a mesma pessoa jurídica, a uma situação de pluripessoalidade.
4. As funções da unipessoalidade societária e sua contextualização na realidade econômica brasileira
Embora se fale que a permissão para unipessoalidade societária se deu somente no ano de 2019, essa afirmação não é de todo verdadeira. A unipessoalidade já era admitida anteriormente, em algumas situações, e vedada em outras. E isso nos leva a aspecto muito importante, dentro dessa temática, que é a seguinte questão: qual a função de uma sociedade unipessoal?
Nesse sentido, propomos classificar a função da unipessoalidade societária em três vertentes: (i) como mecanismo de preservação de empresas; (ii) como mecanismo de organização de grupos societários; e (iii) como mecanismo de incentivo ao empreendedorismo individual.
A primeira classificação considera que a unipessoalidade societária pode ser importante mecanismo para assegurar a continuidade de empresas (atividades econômicas organizadas), evitando a dissolução de sociedades em razão de unipessoalidade superveniente decorrente de fato alheio à vontade inicial dos sócios (tal como, em uma sociedade de dois sócios, a morte de um deles). Nesse caso, por ser situação excepcional, a lei pode admitir a unipessoalidade, de forma temporária, para conceder prazo de tolerância para reconstituição do quadro de sócios. Essa situação de unipessoalidade é admitida há décadas no Brasil, tanto para sociedades contratuais quanto para sociedades anônimas (inclusive a lei 6.404, de 1976, prevê tal hipótese no art. 206, I, d).
A segunda classificação considera que uma sociedade unipessoal é relevante fórmula para organização de grupos societários, por permitir a separação dos negócios em diferentes sociedades, viabilizando uma segregação de riscos e atividades. Tal possibilidade também é admitida há muito tempo no Brasil, sendo o caso da sociedade anônima subsidiária integral (art. 251 da lei 6.404/76)[8].
A terceira classificação considera a utilização de uma sociedade unipessoal como forma de incentivar o empreendedorismo individual, ao propiciar a um único empreendedor constituir uma sociedade, e com isso segregar os riscos do negócio, concentrando-os em uma sociedade que controla integralmente. Essa alternativa era vedada pela legislação societária[9] brasileira até 2019, mas passou a ser admitida, através da autorização legal para que sociedades limitadas possam adotar a situação de unipessoalidade permanente.
5. Implicações práticas da unipessoalidade em sociedades limitadas
Como visto no tópico anterior, desde 2019 a legislação brasileira admite que as sociedades limitadas possam ficar em situação de unipessoalidade permanente, medida tomada pensando especialmente em propiciar incentivo econômico ao empreendedorismo.
No entanto, dado que a sociedade limitada foi originalmente concebida considerando a existência de uma pluralidade de sócios, por certo que a admissão de sua unipessoalidade levou à necessidade de adaptações em relação ao seu funcionamento prático, frente ao que cabem algumas considerações:
a) Quanto ao ato constitutivo:
Em relação ao ato constitutivo das sociedades limitadas, não há grandes diferenças teóricas, uma vez que se trata de um instrumento de organização econômica. O art. 1.052, § 2º do Código Civil diz que se aplicam ao documento de constituição do sócio único, no que couberem, as disposições sobre o contrato social. A adaptação obviamente decorrerá da falta de pluralidade de sócios que justifiquem regras sobre reunião/assembleia, cessão de quotas, retirada de sócio, exclusão, limite de poderes do administrador sócio ou sobre quóruns de deliberação. De todo modo, tendo em vista a possibilidade de ingresso de novos sócios no futuro, não há qualquer óbice para a inserção dessas regras no contrato social.
b) Quanto ao poder decisório:
Em relação às decisões mais importantes, é certo que o Código Civil prevê as figuras da reunião e da assembleia, dispensáveis no caso, uma vez que o sócio poderá decidir todas as matérias por escrito, nos termos do art. 1.072, § 3º do CC. Dentro dessa perspectiva, não há que se falar em convocação de reunião/assembleia ou mesmo de publicações de documentos destinados aos sócios (CC – art. 1.078, §1º). A única publicação necessária será a decisão do sócio único para reduzir o capital, quando considerado excessivo em relação ao objeto da sociedade (§ 1º do art. 1.084 do CC).
c) Quanto à administração:
Quanto à vontade da sociedade, é importante reiterar que essa vontade pode ser expressa pela administração da sociedade nas questões do dia a dia ou pelos próprios sócios, nas questões mais gerais e mais complexas da vida da sociedade.
Em relação à administração, a unipessoalidade não traz maiores mudanças, uma vez que o administrador continua podendo ser sócio ou não, com os requisitos estabelecidos no art. 1.011, § 1º do CC. Contudo, caso o sócio único seja o administrador é natural que qualquer medida que, em regra, dependa da deliberação dos sócios – ex.: venda de imóveis quando não é o objeto social – seja decidida diretamente por ele, que assumirá o duplo papel de sócio e de administrador (presentante da sociedade). Nos casos de administrador não sócio, não há qualquer alteração.
d) Quanto à flexibilidade na alteração do número de sócios (entrada e saída):
Como já mencionado a sociedade limitada “unipessoal” é uma sociedade limitada, seguindo todas as regras desse tipo societário. Dentro dessa ideia, surgiram dúvidas na prática das juntas comerciais quanto a necessidade de um ato de transformação para sociedade limitada “unipessoal”, nos casos de saída de sócios, de modo a restar um único sócio.
Ora, a transformação é a alteração do tipo societário, sem dissolução ou liquidação. Marcelo Feres[10], baseando-se nas precisas lições de Ripert e Roblot, afirma que há simples modificação no modo jurídico de exploração da atividade social. Repita-se mais uma vez, sociedade limitada “unipessoal” não é um tipo societário novo ou diferente da sociedade limitada pluripessoal. O que temos é o mesmo tipo societário, com as mesmas regras, apenas com um número diferente de sócios.
Assim sendo, a saída ou entrada de novos sócios na sociedade limitada unipessoal é operada por simples alteração contratual, não havendo necessidade de qualquer ato de transformação. O ato de transformação não é aplicável à espécie, uma vez que não há mudança de tipo societário.
Depois de dúvidas inicialmente levantadas pelas juntas comerciais, as adaptações foram sendo aos poucos adequadas aos sistemas e atualmente, há uma grande facilidade prática de lidar com sociedades limitadas unipessoais.
6. Conclusões
A sociedade limitada é figura muito tradicional no Brasil, representando o principal tipo societário existente dentre as sociedades empresárias. Entretanto, relevante modificação legislativa, ocorrida em 2019 (inicialmente pela MP 881, depois convertida na lei 13.874), alterou as regras da sociedade limitada, e autorizou sua constituição e existência tanto em situação unipessoal (com apenas um sócio) ou pluripessoal (com dois ou mais sócios). Com tal modificação, a sociedade limitada, que já tinha enorme importância, passou a atender mais uma demanda empresarial, no sentido de ser instrumento apto a viabilizar o empreendimento individual, mediante a constituição de pessoa jurídica, mas sem a necessidade de pluralidade de sócios. Desta forma, essa nova realidade apenas reafirma a enorme importância das sociedades limitadas dentro do cenário econômico brasileiro.
link: https://www.migalhas.com.br/depeso/384528/4-anos-da-permissao-de-sociedades-limitadas-unipessoais
[1] Dados atuais constantes do ¨Mapa de Empresas¨, publicado no portal Gov.br, relatam existir, atualmente, 6.066.646 sociedades limitadas ativas.
[2] Originalmente pela Medida Provisória n. 881, de 30 de abril de 2019, depois convertida na Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019, mediante a inclusão de parágrafos no artigo 1.052 do Código Civil.
[3] Conforme SERRA, Catarina. Direito comercial: noções fundamentais. Coimbra: Coimbra editora, 2009, p. 79.
[4] ULMER, Peter. Principios fundamentales del derecho alemán de sociedades de responsabilidad limitada. Traducción de Jesús Alfaro Aguila-Real. Madrid: Editorial Civitas, 1998, p. 45.
[5] Conforme CORDEIRO, António Menezes. Direito europeu das sociedades. Coimbra: Almedina, 2005, p. 486.
[6] Conforme LÓPEZ, Ricardo Sandoval. Derecho Comercial – Tomo I – Volume 1. 7.ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2007, p. 175.
[7] Inclusive, muitas pessoas se referem à sigla SLU para identificar tal figura, como se fosse diversa da ¨sociedade limitada tradicional¨, o que não é o caso. O Código Civil, aliás, não faz qualquer referência a tal sigla.
[8] E, na atualidade, podendo tal função ser alcançada também através do uso de sociedades limitadas em situação de unipessoalidade.
[9] Lembrando que, para possibilitar equivalente solução, existiu a figura da EIRELI, criada em 2011, e extinta em 2022, mas que não representava tipo societário.
[10] FÉRES, Marcelo Andrade; TOMAZETTE, Marlon. Transformação de sociedades empresárias. Repertório IOB de Jurisprudência, n. 7, 1. quinz., abr. 2003, p. 170.