30 ANOS DO STJ E PREQUESTIONAMENTO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO PREQUESTIONAMENTO FICTO DIANTE DO ART. 1.025 DO CPC
Cassio Scarpinella Bueno
Nos 30 anos de instalação do STJ, uma das palavras que mais enseja resultados quando empregada como padrão de pesquisa em seu magnífico sítio eletrônico é prequestionamento.
1 INTRODUÇÃO
Ao ensejo dos 30 anos de instalação do STJ, a Revista do Advogado, da gloriosa Associação dos Advogados de São Paulo, por intermédio de seu diretor, doutor Renato José Cury, e de seus coordenadores, doutores Marcio Kayatt e Roberto Rosas, tomou a iniciativa de editar volume comemorativo.
Nada mais oportuno.
Honrado com o convite, pareceu-me uma excelente oportunidade para externar algumas considerações acerca do prequestionamento, tendo em vista, como é de sabença geral, a admissibilidade dos recursos especiais dirigidos àquela Corte.[1]
2 Considerações prévias
A competência do STJ é de ordem constitucional. É o art. 105 da Constituição Federal (CF) que a estabelece e não há, diferentemente do que se verifica para outros órgãos jurisdicionais (assim, v.g. com a competência do TST, ex vi do § 1º do art. 111-A da CF), autorização para sua modificação por lei.
De acordo com o art. 105 da CF,
“Compete ao Superior Tribunal de Justiça: […]
III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos tribunais regionais federais ou pelos tribunais dos estados, do Distrito Federal e territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”.
3 Causas decididas
Para o presente estudo, importa dar destaque ao que devem ser compreendidos como “causas decididas”, que consta do precitado inciso III do art. 105 da CF.
A palavra “causa” sempre recebeu interpretação ampla. É indiferente, para fins de cabimento de recurso extraordinário e recurso especial, que as decisões recorridas tenham ou não apreciado o mérito ou que elas sejam, na sua origem, decisões interlocutórias[2] ou sentenças. Também não faz diferença, para estes fins, o conteúdo do acórdão proferido pelo tribunal a quo. A circunstância de a decisão ter sido proferida no âmbito da “jurisdição contenciosa” ou da “jurisdição voluntária” também não inibe o cabimento do recurso extraordinário e do recurso especial. Há entendimento, todavia, que recusa o cabimento daqueles recursos quando as decisões proferidas, embora jurisdicionais, ostentem natureza substancialmente administrativa, fruto de atividade atípica exercida pelo estado-juiz.[3]
Não é bastante, contudo, que se trate de “causa”. Ela deve ser decidida. É de “causas decididas” que cabe o recurso especial nos precisos termos do inciso III do art. 105 da CF.
A expressão “causa decidida” quer significar, antes de tudo, que a decisão que desafia ecurso especial é aquela que não comporta mais quaisquer outros recursos perante os demais órgãos jurisdicionais. Pressupõe-se, para empregar expressão comuníssima, “exaurimento de instância”.[4]
É correto observar que inexiste na ordem constitucional de 1988 – e foi ela que criou o STJ a partir do desdobramento de competências até então titularizadas pelo STF- referência ao que, em termos de admissibilidade de recurso especial, é designado por “prequestionamento”.
Aquela palavra, ao que tudo indica, foi cunhada a partir das previsões constantes das Constituições Federais de 1891 a 1946. Não terá sido coincidência observar que foi sob a égide da Constituição de 1946 que duas importantes súmulas do STF sobre o assunto, a 282[5] e, em especial, a 356,[6] ambas se referindo ao cabimento do então recurso extraordinário, dentre outras hipóteses, quando se questionasse sobre a validade de lei federal em face da Constituição.[7]
Não obstante, nos 30 anos de instalação do STJ, uma das palavras que mais enseja resultados quando empregada como padrão de pesquisa em seu magnífico sítio eletrônico é prequestionamento.
As referências a prequestionamento devem ser substituídas por causa decidida.
O primeiro desafio está posto: que prequestionamento é este, se nada há, na ordem constitucional de 1988, que autorize relacionar o cabimento do recurso especial a ele?
Não é estudando a etimologia da palavra, nem seus diversos significados que ajudarão na resposta à indagação. Muito menos fazer análise, por mais completa que se possa pretender, da jurisprudência dos tribunais superiores como se esta análise – e qualquer outra que diga respeito a direito positivo – pudesse se desgrudar de suas fontes normativas e de suas variações. A única forma de superar este impasse, a meu ver, é querendo relacionar, de alguma forma, o “prequestionamento” com a expressão constitucional em vigor, “causa decidida”. Para ir direto ao ponto, as referências a prequestionamento devem ser substituídas, a partir da CF de 1988 – e, em rigor, já deveria ter sido assim desde a CF de 1967[8] -, por causa decidida. Não se trata, contudo, de uma mera substituição de uma palavra por uma expressão com conservação de seu conteúdo. O que poderia se entender (ou que efetivamente era entendido) por prequestionamento antes da ordem constitucional de 1967 não corresponde necessariamente ao que deve ser compreendido por causa decidida.
Causa decidida, para o que aqui interessa sublinhar, é significativo de que, para que o STJ desempenhe adequadamente a sua missão constitucional, de uniformizar a interpretação e aplicação do direito federal infraconstitucional em todo o território brasileiro, é mister que ele analise, em sede de recurso especial, o que já foi decidido pelos tribunais de justiça e pelos regionais federais. É das decisões proferidas por outros órgãos jurisdicionais que decorrem, ou não, violações e contrariedades às normas federais e à jurisprudência de outros tribunais. Sem prévia decisão, não há como estabelecer em que medida normas federais infraconstitucionais foram ou deixaram de ser violadas pelos demais componentes da estrutura judiciária nacional.
Não se trata de ter direito de se ter um caso reexaminado pelo STJ em recurso especial em função do que se “prequestionou” no sentido mais literal da palavra, de o recorrente tomar a iniciativa de arguir determinadas questões por o tribunal de segundo grau. Trata-se, em perspectiva totalmente diversa, de se recorrer especialmente do que foi efetivamente decidido. Ainda que – este ponto é fundamental – o que foi decidido incorra em error in procedendo por não ter decidido o que deveria ter sido decidido.
Não há jogo de palavras na afirmação do parágrafo anterior. Ela é aguda e tem que ser discernida em todo e qualquer caso concreto: uma coisa é recorrer do que efetivamente se decidiu, alegando que a decisão é errada; outra, bem diversa, é recorrer porque a decisão deveria levar algo em conta (quiçá, até mesmo de ofício), que não levou. Neste caso, a ênfase do recurso recai na identificação de error in procedendo; naquele, de error in judicando.
4 Prequestionamento no CPC de 2015
O Código de Processo Civil de 2015 emprega duas vezes a palavra “prequestionamento” e o faz com grafia diversa da que emprego, “pré-questionamento”. Saber qual grafia é a correta (ou, até mesmo, se há uma grafia correta que elimina, como erradas, todas as demais) é mais uma vexata quaestio do tema que não é enfrentado nesta sede.
4.1. O art. 941, § 3º
O primeiro emprego da palavra está no § 3º do art. 941, segundo o qual “O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento”. Da previsão normativa decorre, inquestionavelmente, a superação da orientação contida no enunciado da súmula 320 do STJ.[9] Mais que superação, contudo, palavra que pode render ensejo a commonlawismos tão errados quanto desnecessários para a compreensão e o desenvolvimento do direito brasileiro, a hipótese é de clara perda de fundamento de validade de uma orientação jurisprudencial com o advento de uma nova lei em sentido contrário. Porque o recurso extraordinário e o recurso especial são dirigidos ao acórdão como um todo (ainda que a determinado capítulo dele), o voto vencido – ou os votos, na hipótese de ter sido aplicada a técnica de colegiamento do art. 942 – tem o condão de demonstrar de que maneira a questão constitucional e a questão federal infraconstitucional foram tratadas e decididas, ajudando na sua compreensão como um todo e, destarte, tornando mais evidente o indevidamente chamado “prequestionamento” (em verdade, causa decidida) que, não por acaso, é mencionado no referido § 3º do art. 941.
Saúdo, neste sentido, a novidade trazida ao tema pelo CPC de 2015 e desejo que o STJ, a partir do 31º aniversário de sua instalação, elimine toda e qualquer súmula ou orientação jurisprudencial (inclusive as “repetitivas”) que colidam com a nova codificação processual civil. Dentre elas, no que aqui e por ora interessa, a precitada súmula 320.
4.2. Visões do prequestionamento e o art.1.025
A segunda previsão que o CPC de 2015 traz sobre prequestionamento está no art. 1.025. De acordo com o dispositivo:
“Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade”.
A regra quer consagrar, a um só tempo, os chamados “embargos de declaração prequestionadores” e os usos e costumes da súmula 356 do STF, que ensejaram a elaboração do multiconhecido “prequestionamento ficto“, isto é, aquele que resulta da mera apresentação de embargos de declaração independentemente de seu acolhimento. É noção que enfatiza a iniciativa do recorrente em discutir determinada questão em detrimento do efetivo conteúdo da decisão recorrida.
A aproximação do art. 1.025 do CPC de 2015 com a súmula 356 do STF (ou, mais corretamente, com os usos e costumes forenses que a têm como referência que, em rigor, a interpretam a contrario sensu) afasta-a, em idêntica medida, da súmula 211 do STJ.[10]
Recorre-se do que efetivamente foi decidido e não do que, a despeito de ter sido pedido, não o foi.
Sobre o acerto desta afirmação, cabe fazer breve escorço, que bem realiza o escopo deste trabalho, celebrar os 30 anos de instituição do STJ:
Com efeito, aquele tribunal, nos primeiros anos de sua existência, posicionou-se sobre o tema quando acentuou que a parte que apresentava embargos declaratórios para fins de prequestionamento – isto é, com vistas a deixar mais claro, mais evidente, mais “explícito” o que havia sido decidido para fins de recurso especial – não poderia ser sancionada nos termos do então vigente parágrafo único do art. 538 do CPC de 1973, regra que encontra seu par nos §§ 2º e 3º do art. 1.026. Prova segura está na sua súmula 98: “Embargos de declaração manifestados com notório propósito de prequestionamento não têm caráter protelatório”.
Em meados da década de 1990, contudo, o STJ passou a entender que a mera apresentação dos declaratórios – consideravelmente ampliada pela alforria da precitada súmula 98 – não era suficiente para fins de “prequestionamento”, isto é, para que houvesse decisão apta de reexame por aquele tribunal. Era mister que os declaratórios fossem efetivamente providos para que, de acordo com o entendimento que acabou por prevalecer, surgisse a “causa decidida” (o “prequestionamento”) para os fins do art. 105, inciso III, da CF. É o que se lê, com todas as letras, da precitada súmula 211 daquele tribunal. E sempre me pareceu correto afirmar que a súmula 211 do STJ colide, mesmo em sua literalidade, com a orientação da súmula 356 do STF.[11]
Também sempre entendi que, com as vênias de estilo, a diretriz motivadora da súmula 211 do STJ e, anteriormente a ela, da súmula 282 do STF, embora empregando a palavra prequestionamento, é a que mais corretamente atende ao modelo constitucional do Direito Processual Civil que hoje deriva do art. 105, inciso III, da CF. Para tal modelo, como quis destacar de início, é irrecusável que, para o cabimento do recurso especial, haja “causa decidida” e, por isto, eventuais embargos declaratórios devem ser previamente julgados pelo órgão a quo até mesmo para fins de “exaurimento de instância”. Recorre-se, vou repetir, do que efetivamente foi decidido e não do que, a despeito de ter sido pedido, não o foi.
A afirmação anterior merece ser entendida amplamente porque, aprofundado o que já aventei anteriormente, pode acontecer que aquilo que foi decidido o tenha sido de maneira errada, não levando em conta o arcabouço constitucional e/ ou legal federal aplicável à espécie. Se assim ocorreu, contudo, é irrecusável que o que foi decidido, no lugar do que deveria ter sido, tem aptidão de contrariar a CF ou a lei federal, ainda que em termos processuais, isto é, incidindo em error in procedendo. Mesmo nesse caso, todavia, recorre-se do que efetivamente foi decidido, visando o recurso à superação do error in procedendo, e não do que, não fosse aquele erro, deveria ter sido decidido.
A função de revisão e de controle da legislação federal infraconstitucional que o STJ exerce em recurso especial pressupõe, nunca é demais repetir, prévia decisão anterior, seja ela qual for. Se nada se decidiu a seu respeito, não há padrão de confronto com a legislação federal para fins de recurso especial. A conclusão seria outra se se estivesse a cogitar do exercício da competência originária (art. 105, inciso I, da CF) ou da competência recursal ordinária (art. 105, inciso II, da CF) do STJ. Esta tríade competencial do STJ que deriva do modelo constitucional (e, em rigor, também do STF e do TST) tem que ser devidamente compreendida para o devido estudo acerca do exercício de sua função jurisdicional.
Justamente em função desta última ressalva é que a afirmação do parágrafo anterior não significa que os embargos declaratórios devem ser apresentados em quaisquer casos como se eles, por si sós e necessariamente, criassem condições de admissibilidade do recurso do recurso especial, como se fossem eles que “prequestionassem” a matéria, no sentido de ela “aparecer” (ficar decidida) na decisão a ser recorrida. É indispensável discernir três hipóteses (bem) diversas a esse respeito.
A primeira pressupõe que não houve decisão sobre questão federal infraconstitucional. Nestas condições, o caso não é de recurso especial à falta do que exige o art. 105, inciso III, da CF. É indiferente, para a hipótese, que a parte apresente embargos declaratórios porque não há nenhuma contrariedade, obscuridade, omissão ou erro material na decisão quanto a teses de direito infraconstitucional federal. Diferentemente do que sugerem as súmulas 356 do STF e 98 do STJ, os embargos, em tais casos, nunca tiveram o condão de “prequestionar” nada porque não há tese de direito infraconstitucional federal a ser decidida. O recurso especial vale a ênfase, pressupõe sempre causa decidida daquela perspectiva, observando, no particular, cada uma das alíneas do inciso III do art. 105 da CF.
A segunda hipótese pressupõe que a decisão deveria se pronunciar sobre questão federal infraconstitucional, mas não o fez. Em tais situações, o uso dos declaratórios é indispensável para que aquelas teses sejam devidamente enfrentadas. Se os declaratórios são rejeitados, contudo, põe-se a questão de saber se a decisão respectiva foi proferida acertadamente ou não. É para esta hipótese – e só para ela – que tem aplicação a diretriz da súmula 211 do STJ (que encontra eco no art. 1.025 do CPC de 2015), ensejando a apresentação de recurso especial com fundamento na violação ao art. 1.022 do CPC de 2015 pelo órgão a quo para corrigir a deficiência no julgamento realizado por ele.
Importa destacar que, em tais casos, o recurso especial assume caráter meramente rescindente do julgado proferido pelo tribunal a quo, isto é: dá-se provimento ao recurso especial para anular o acórdão, determinando-se que o tribunal recorrido julgue os declaratórios para decidir sobre a matéria neles veiculada, até então não decidida.
Um exemplo tem o condão de ilustrar bem essa segunda hipótese: do acórdão que confirmara a sentença, o réu apresenta embargos de declaração sustentando, pela primeira vez no processo (o que é correto do ponto de vista sistemático), a ilegitimidade ativa. O tribunal rejeita (erradamente) os declaratórios porque, no seu entender, a alegação é intempestiva. Neste caso, a única “questão federal” a ser enfrentada é a de saber se os declaratórios deveriam ou não ser enfrentados para discutir a questão da ilegitimidade ativa. O recurso especial, por isso mesmo, deve cogitar da contrariedade ao art. 1.022 e, se provido, novo acórdão deverá ser proferido, suprindo-se aquele error in procedendo. Do novo acórdão a ser proferido pelo órgão a quo, caberá novo recurso especial, este sim cogitando de um eventual error in judicando: a parte é, ou não, legítima; a sentença deve, ou não, ser mantida.
A terceira e última hipótese pressupõe que a decisão tal qual proferida revela o enfrentamento suficiente de uma dada tese de direito infraconstitucional federal. Dela, sem necessidade de qualquer outra providência, cabe recurso especial, cumprindo ao recorrente apenas evidenciar a específica perspectiva de que a decisão enfrentou a questão federal infraconstitucional. É o caso, por exemplo, de o acórdão confirmar a sentença que acolhera pedido de compensação de tributos recolhidos a maior pelo contribuinte diante do reconhecimento da inconstitucionalidade da lei que indevidamente os cobrara no mesmo ano de sua instituição. A questão constitucional (o tributo é, ou não, constitucional) e a questão federal infraconstitucional (haver ou não possibilidade de compensação do tributo pago a maior) estão suficientemente postas (decididas) no acórdão tal qual proferido. Se a forma pela qual estas duas questões estão enfrentadas pelo acórdão, aí considerada, inclusive, a referência a determinados dispositivos constitucionais e/ou legais a dar sustento à conclusão do acórdão, é mais ou menos clara, mais ou menos evidente, é questão de nenhuma importância para o cabimento do recurso, é mero formalismo, indiferente para a boa técnica processual. Até porque saber se o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei e a admissão da compensação tributária daí decorrente são corretos ou não diz respeito ao mérito do recurso, o que pressupõe, por definição, a superação de sua admissibilidade.
Existe um ingrediente extra que fomenta a consideração do último parágrafo. A aplicação diuturna da súmula 356 do STF e da súmula 211 do STJ sempre foi capaz de revelar, embora de ângulos opostos, que o reconhecimento da contrariedade ao atual art. 1.022 fora dos casos identificados anteriormente como segunda hipótese pressupõe que o STJ identifique o ponto obscuro, contraditório, omisso ou erro material do acórdão recorrido e, nesta exata medida, que aquele tribunal tem condições de constatar, com precisão e desde logo, a questão federal tal qual decidida. Se não fosse pela percepção de que há algo a ser completado no acórdão proferido pelo tribunal a quo, não haveria espaço para o reconhecimento de seu error in procedendo e a violação do art. 1.022. Trata-se de situação eloquentemente descrita pela palavra “ficto” aposta ao lado de “prequestionamento” e que se relaciona aos usos e costumes da súmula 356 do STF.
O art. 1.025 do CPC de 2015 abraça a concepção dos “embargos de declaração prequestionadores”.
Em tais situações, quando efetivamente existente o error in procedendo na decisão recorrida especialmente, admitir que o recurso especial desempenhe função meramente rescindente é conspirar contra o princípio da eficiência processual. Se o STJ consegue, desde logo, constatar qual é a questão infraconstitucional federal, é certamente preferível que ele julgue de uma vez o recurso especial diante do efetivo reconhecimento da “causa decidida”, ainda que de forma menos clara. Analisada dessa perspectiva, a hipótese deixa de pertencer à segunda categoria indicada e passa a fazer parte da terceira.
Consequência perceptível dessas observações é que, na insegurança sobre saber se a decisão, tal qual proferida, está ou não suficientemente “prequestionada”, como se diz na prática, tornou-se bastante usual a interposição de recursos especiais alegando, sucessivamente, o error in procedendo (por causa da constante apresentação dos declaratórios para fins de “prequestionamento”) e o error in judicando, a ser apreciado na medida em que o STJ reconheça que a matéria está suficientemente “prequestionada”. Nesta situação, a segunda e a terceira hipóteses anteriormente indicadas caminham lado a lado.
4.3. De volta ao art. 1.025
É correto entender que o art. 1.025 do CPC de 2015 abraça a concepção dos “embargos de declaração prequestionadores” e do “prequestionamento ficto“, fortemente influenciado pela prática do foro, ao mesmo tempo em que sua ressalva final permite ao STJ discernir as hipóteses sobre haver ou não possibilidade de julgamento do que anteriormente foi chamado de error in judicando, sendo indiferente, destarte, a sorte dos declaratórios.
Não nego a boa intenção do legislador em resolver problemas práticos relativos à admissibilidade de recursos especiais e, importante frisar, também um dos variados meios de aplicação da chamada “jurisprudência defensiva”, expressão eloquente para significar os óbices, a grande maioria de índole meramente formal e totalmente desarmônico com os ditames do Direito Processual Civil brasileiro do século XXI, que são diuturnamente apresentados pelos tribunais superiores, inclusive pelo STJ, para não conhecer de recursos ou de outros expedientes que lhe são dirigidos pelas mais variadas questões.
A questão que se põe, contudo, é se ato normativo infraconstitucional, como é o caso do art. 1.025 do CPC de 2015, poderia tratar com ânimo de definitividade da matéria que, como destaco de início, tem raiz constitucional, vez que respeitante ao exercício da competência recursal especial do STJ.
Minha resposta é negativa. Em outros locais, chego a sustentar se não a inocuidade daquele dispositivo – porque ele quer se sobrepor às devidas técnicas aplicáveis à hipótese – sua inconstitucionalidade.[12]
Para cá, quero destacar que o dispositivo tem dado ensejo ao entendimento de que a aplicação do art. 1.025 do CPC de 2015 depende de o recurso especial ter veiculado também violação ao art. 1.022 do mesmo Código, bem nos moldes da cumulação eventual entre os errores in procedendo e in judicando tratada anteriormente.[13]
Em rigor, pelo que acabei de escrever, poderia me limitar a aplaudir o entendimento porque ele se amolda a uma das formas como o tema merece ser interpretado. Contudo – e isso tem que ser sublinhado -, as situações que aventei precedentemente não podem ser generalizadas. Nem todo caso, como as três hipóteses ventiladas anteriormente querem ilustrar, embora de maneira singela, aceita aquela cumulação de pedidos recursais, justamente porque o que se decidiu em cada caso concreto não é passível, por definição, de ser tratado indistintamente. Nem todo acórdão depende de prévios embargos de declaração para que a matéria esteja “prequestionada” (decidida), sendo indiferente, para tanto, o que diz o art. 1.025 do CPC de 2015.
E não obstante, o receio que aqui manifesto daquele crescendo jurisprudencial[14] é que o art. 1.025 do CPC de 2015 (sem prejuízo das críticas que, em minha opinião, merecem) acabe sendo usado indistintamente como verdadeiro obstáculo (intransponível) para a admissibilidade de milhares de recursos especiais interpostos em processos em que nem sequer embargos declaratórios versando sobre a contrariedade do art. 1.022 do CPC de 2015 deveriam ter sido apresentados, mas que o foram única e exclusivamente com o receio de décadas de jurisprudência defensiva relativa ao “prequestionamento”, que estaria superada pelo art. 1.025. Quase que uma repetição automática dos usos e costumes forenses que, ainda que de modo inconsciente, valoriza mais a forma (a apresentação dos embargos declaratórios) do que o conteúdo (haver ou não causa decidida apta a desafiar o recurso especial).
Nesta perspectiva, o remédio que estaria sendo ministrado por aquele dispositivo tenderia a gerar o pior efeito colateral possível…
5 Votos
Concluo esta brevíssima análise com meus votos para que o STJ, a partir do trigésimo primeiro ano de sua instalação, possa definir com segurança e objetividade o papel que desempenha enquanto julgador de recursos especiais. E porque este papel depende de interpretação do inciso III do art. 105 da CF, são irrecusáveis que o STF não se furte (mais) de discutir o assunto.
Sem prejuízo da reflexão que toda a jurisprudência processual do STJ editada antes do CPC de 2015 merece em termos de subsistência – e a referida anteriormente com relação à sua súmula 320 é pequena amostra do hercúleo esforço a ser feito naquela direção -, não faz sentido, mesmo à luz da literalidade do art. 1.025 do CPC de 2015 – e ainda que se queira deixar de lado sua análise constitucional, como sói se dar entre a grande maioria dos processualistas civis, mesmo diante do art. 1º do Código, mero post-it que luta para evitar o natural desgaste de sua força adesiva -, generalizar hipóteses e permitir que a orientação da súmula 211 retorne mais forte que nunca para justificar a inadmissão generalizada de um sem-fim de recursos especiais sem levar em conta aquilo que realmente importa para fins do exercício da competência recursal especial do STJ: haver ou não (e independentemente de quaisquer prévios embargos declaratórios) causa decidida em única ou última instância por tribunal que contrarie em alguma medida norma de direito infraconstitucional federal.
Nada de prequestionamento, nem explícito, nem implícito, nem numérico e nem ficto, bem ao gosto da súmula 356 do STF e de seu espelho no art. 1.025 do CPC. Só causa decidida: é esta, e nenhuma outra, a exigência constitucional que abre os portais do STJ ao cidadão, justificando o exercício de sua competência no que tange aos recursos especiais.
Se há algo que soa dramaticamente contraditório na celebração das três décadas de instalação do STJ, o Tribunal da Cidadania, são os ecos e os reflexos de sua jurisprudência defensiva. Os cidadãos brasileiros não a merecem, muito menos ao preço das impressionantes estatísticas de quantidade de recursos julgados em sua maior parte com a conclusão de que não o serão.
[1] Trata-se, a bem da verdade, de tema ao qual me voltei inúmeras vezes, tendo escrito, a respeito, os seguintes artigos, todos disponibilizadosgratuitamente em meu site pessoal (www.scarpinellabueno.com): “Duas ‘novidades’ em torno dos Recursos Extraordinários em sentido lato”, “Quem tem medo do prequestionamento?”, “Prequestionamento – Reflexões sobre a Súmula 211 do STJ” e “De volta ao prequestionamento – Duas reflexões sobre o Recurso Extraordinário nº 298.695/SP”.
[2] Assim, por exemplo, a Súmula nº 86 do STJ: “Cabe recurso especial contra acórdão proferido no julgamento de agravo de instrumento”.
[3] É o que se verifica com as Súmulas nº 637 do STF (“não cabe recurso extraordinário contra acórdão de Tribunal de Justiça que defere pedido de intervenção estadual em Município”), nº 733 do STF (“não cabe recurso extraordinário contra decisão proferida no processamento de precatórios”) e nº 311 do STJ (“os atos do presidente do tribunal que disponham sobre processamento e pagamento de precatório não têm caráter jurisdicional”).
[4] É diretriz suficientemente ilustrada pela Súmula nº 281 do STF (“É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada”) e pela Súmula nº 207 do STJ (“É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no tribunal de origem”).
[5] “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”.6. “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”.
[6] “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”.
[7] É a seguinte a redação do art. 101, inciso III, da CF de 1946, que previa o cabimento do recurso extraordinário: “Art. 101 – Ao Supremo Tribunal Federal compete: III – julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes: a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal”.
[8]Cujo art. 114, inciso III, se referia às hipóteses de cabimento do recurso extraordinário da seguinte maneira: “III – julgar mediante recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de Governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal; d) der à lei interpretação divergente da que lhe haja dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal”. A Emenda Constitucional nº 1/1969 renumerou aquele dispositivo para o art. 119, não acrescentando, contudo, nenhuma alteração significativa nas alíneas.
[9]É o seguinte o enunciado daquela súmula: “A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento”.
[10] Cujo enunciado é o seguinte: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”.
[11] Trata-se de tema para o qual me voltei mais demoradamente no artigo “Súmulas 288, 282 e 356 do STF: uma visão crítica de sua (re) interpretação pelos tribunais superiores” e no já mencionado “De volta ao prequestionamento – duas reflexões sobre o Recurso Extraordinário nº 298.695/SP”.
[12] A referência é feita aos meus Novo Código de Processo Civil anotado. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 956-957; Manual de direito processual civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 852-854; e, mais demoradamente, em meu Curso sistematizado de direito processual civil. v. 2. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 662-664 e 679-688.
[13] Tem-se indicado o REsp nº 1.639.314-MG, da 3ª Turma do STJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 4/4/2017, DJe de 10/4/2017, unânime, como o primeiro caso em que o assunto foi versado nos moldes do texto (o leading case, para quem gosta de importar palavras estrangeiras fora de seu contexto). A ementa daquele julgado é a seguinte: “CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INVENTÁRIO. – LIQUIDAÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE LIMITADA. PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS PROPORCIONAIS ÀS COTAS INVENTARIADAS – HERDEIROS SÓCIOS EM CONDOMÍNIO – CABIMENTO – PRESCRIÇÃO DO DIREITO – NÃO OCORRÊNCIA. 01. Inviável o recurso especial na parte em que a insurgência recursal não estiver calcada em violação a dispositivo de lei, ou em dissídio jurisprudencial. 02. Avaliar o alcance da quitação dada pelos recorridos e o que se apurou a título de patrimônio líquido da empresa, são matérias insuscetíveis de apreciação na via estreita do recurso especial, ante o óbice da Súmula 7/STJ. 03. Inviável a análise de violação de dispositivos de lei não prequestionados na origem, apesar da interposição de embargos de declaração. 04. A admissão de prequestionamento ficto (art. 1.025 do CPC/15), em recurso especial, exige que no mesmo recurso seja indicada violação ao art. 1.022 do CPC/15, para que se possibilite ao Órgão julgador verificar a existência do vício inquinado ao acórdão, que uma vez constatado, poderá dar ensejo à supressão de grau facultada pelo dispositivo de lei. 05. O pedido de abertura de inventário interrompe o curso do prazo prescricional para todas as pendengas entre meeiro, herdeiros e/ou legatários que exijam a definição de titularidade sobre parte do patrimônio inventariado. 06. Recurso especial não provido”.
[14] E já são centenas de casos, das seis Turmas do STJ, em que o precitado recurso especial é empregado como razão de decidir para supedanear a conclusão de que “a admissão de prequestionamento ficto (art. 1.025 do CPC/2015), em recurso especial, exige que no mesmo recurso seja indicada violação ao art. 1.022 do CPC/2015, para que se possibilite ao Órgão julgador verificar a existência do vício inquinado ao acórdão, que uma vez constatado, poderá dar ensejo à supressão de grau facultada pelo dispositivo de lei” (STJ, 4ª T., AgInt no AREsp nº 1.344.145-RS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 13/12/2018, DJe de 18/12/2018, unânime).