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MULTIPARENTALIDADE: A POSSIBILIDADE DE MÚLTIPLA FILIAÇÃO REGISTRAL E OS SEUS REFLEXOS JURÍDICOS

Daniela Bernardo Vieira dos Santos

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Evolução Legislativa do Direito de Famílias. 3 A Possibilidade de Múltipla Filiação Registral no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 4 A Questão Registral da Múltipla Filiação e as Repercussões da Lei nº 11.924/09; 4.1 Direito de Visita e Guarda; 4.2 Dos Alimentos; 4.3 Direito Sucessório; 4.4 Direito Previdenciário; 4.5 Efeitos Eleitorais. 5 Conclusão. 6 Referências Bibliográficas.

           

1 Introdução          

A família é formada a partir de fenômenos biológicos e sociais. Dessa forma, está presente em todas as fases da civilização. A palavra “família” deriva do latim famulus ou famulia, que significa um conjunto de pessoas obedientes ao patriarca, ou seja, conforme a interpretação de Beviláqua (1943, p. 16), “o complexo das pessoas que descendem de um tronco ancestral comum“. Porém, como a história da humanidade pode mostrar, a instituição familiar desafia qualquer conceito geral.

Segundo Farias e Rosenvald (2012, p. 39), as estruturas familiares sofrem alterações e variações no espaço e no tempo, conforme as necessidades e as expectativas do homem e da sociedade a cada época. Contudo, para entender o conceito de “família” será necessária a compreensão do instituto familiar no decorrer da história e no desenvolvimento da sociedade.

O homem pré-histórico deixou vestígios, nos quais ficaram evidentes que vivia e sobrevivia em grupos sociais, famílias primitivas. Porém, alguns estudiosos discordam dessa concepção naturalista da família e percebem-na como uma instituição predominantemente cultural.

No tocante ao patrimônio familiar, os bens estavam restritos à habitação e a utensílios necessários para o trabalho, ou seja, tudo estava voltado à economia de subsistência do clã. Assim, Engels (1977, p. 48) anota que a herança não poderia sair dos genes e, como os filhos pertenciam apenas a genes de sua genitora, as heranças pertenciam às suas mães e depois que elas morriam passavam aos irmãos de sua mãe.

Vencido tal período selvagem, a família tornou-se sindiásmica, ou seja, reduzida a um homem e a uma mulher. Consolidou-se o caráter cultural das relações familiares, compostas de relações básicas como aliança e filiação. Ao mesmo tempo, tal desenvolvimento trouxe o acúmulo de riquezas, já que a propriedade que antes pertencia a genes, agora, passou a pertencer ao chefe da família. Com efeito, a partir de então, o homem torna-se mais importante do que a mulher, pois agora as riquezas orbitam em torno dele.

Nesse sentido, Pereira (2004) aponta que “o pater famílias atribuía ao pai, ao mesmo tempo, a condição de chefe político, sacerdote, juiz, autorizando-o a oficiar o culto doméstico e distribuir justiça. O poder do pai não tinha mais limites“.

A partir do Direito Clássico, a família começa a perder o caráter patriarcal, hierarquizado, e passa para uma fase em que as relações familiares têm laços afetivos. O indivíduo passa a ser prioridade e não mais a sociedade total e única familiar.

Segundo Gomes (1999, p. 41), “o Código de Napoleão, sob influência da Escola do Direito Natural, também combateu o cunho patriarcal e sua finalidade política proclamando o enfraquecimento da autoridade paterna, do casamento, da incapacidade e submissão da mulher, da inferioridade de ilegítimos“.

Deu-se, então, a passagem do modelo patriarcal a outro, afastando-se das concepções religiosas, construído por costumes em cada povo, valorizando o sentimento.

2 Evolução Legislativa do Direito de Famílias        

A Revolução Industrial trouxe consigo um aumento na demanda de mão de obra e, com isso, as mulheres foram levadas a ingressar no mercado de trabalho, deixando o homem de ser o único a prover o sustento da família. Nessa esteira industrial, a família passa por novas transformações e, nessa fase capitalista voltada ao consumo, busca novos objetivos, que é a satisfação dos seus membros, ou seja, o bem-estar social.

Sob o mesmo ponto de vista, Bossert e Zannoni (2000) ponderam que:

A família monogâmica está se tornando um fator econômico de produção. Não só serve as suas necessidades, mas também produz produtos de comércio ou serviços – o longo estágio histórico da produção e da fabricação concentrada na pequena família. A família é, nessa fase, a organizadora dos fatores de produção. É também a fase em que o mais importante valor econômico corresponde ao setor imobiliário. Mas esta situação é invertida quando, a partir do século XVIII, as sociedades são transformadas pelo surgimento da industrialização. E a produção, exceto em áreas rurais, é realizada fora do âmbito da família, uma vez que está concentrada nas indústrias, e os negócios são amplificados. Correspondentemente, o imobiliário dá lugar aos valores mobiliários, como ações, representativos de ações de capitais das empresas produtivas. E assim, depois que a família, a partir da ascensão do industrialismo, perde o traço que a caracterizava como núcleo da organização da produção, em termos econômicos, foi substancialmente reduzida para um nível de organização de consumo.

No século XX, tão somente, esses fenômenos sociais começam a tomar novos contornos. Contudo, a tradição monogâmica fora mantida e as mulheres, cada vez mais, vincularam-se ao trabalho. A passagem da economia agrária à economia industrial atingiu irremediavelmente a família.

Segundo Grisard Filho (2010, p. 59), a cultura, sob a influência da doutrina da Igreja Católica, “sedimentou a ideia da família monogâmica e da absoluta igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, difundiu a consciência do amor, respeito mútuo e da responsabilidade de cada um dos membros da família” entre si.

Com o nascimento de um Estado codificador, influenciado pelas ideias do Iluminismo, o Direito Civil surgiu com a esteira de garantir estabilidade nas relações privadas, que acabou por influenciar o Código Civil de 1916. Como observam Gagliano e Pamplona Filho (2013, p. 50):

Nesse contexto, o Código Civil de 1916, cuja concepção original foi elaborada por Clóvis Beviláqua em 1899 (discutido anos a fio no Congresso Nacional, oportunidade em que receberia a influência humanista de Rui Barbosa, como visto), traduz, em seu corpo de normas tão tecnicamente estruturado, a ideologia da sociedade agrária e conservadora daquele momento histórico, preocupando-se muito mais com o ter (o contrato, a propriedade) do que com o ser (os direitos da personalidade, a dignidade da pessoa humana).

O legislador não escondeu sua repulsa às famílias constituídas por meios avessos ao matrimônio, por consequência, aos parceiros e aos filhos, frutos dessas relações, foram refutados quaisquer direitos.

O Código Civil de 1916 trouxe expressões como o “individualismo” e o “liberalismo“. Essas incorporações estão presentes quando se inferiu dos princípios, como o casamento civil como família legítima, dissolução apenas com a morte de um dos cônjuges. Porém, a mulher ainda permaneceria à sombra do marido.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a família, a criança e o adolescente e também o idoso ganham capítulo em destaque (Capítulo VII do Título VIII). Nesse feitio, o ordenamento jurídico consagra a família como pluralidade de tipos, consequência natural do desenvolvimento da humanidade.

Nas palavras de Farias e Rosenvald (2014, p. 28), a família transformou-se em “um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado“. Agora, a família estrutura-se com mais empenho sob as relações afetivas e solidárias.

Sob o mesmo ponto de vista posiciona-se Dias (2010, p. 55):

A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8º do art. 226 da Constituição Federal: ‘o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos componentes que a integram’.”

Em 2002, a Lei nº 10.406 instituiu o Código Civil brasileiro vigente, que regulamentou o Direito de Família conforme as orientações constitucionais. Tais mudanças consolidaram o atual paradigma que explica a função atual da família, que é a afetividade.

No mesmo sentido, Lôbo (2008, p. 11) posiciona-se a respeito de que “a família converteu-se em um espaço de realização da afetividade humana“, ou seja, as relações familiares, hoje, buscam suprir as necessidades da pessoa humana. Até mesmo ao Estado foi imposto o dever de tutelar por esse princípio, que é o respeito pela dignidade humana em todas as relações patrimoniais ou não.

A família sofreu intensas mudanças e continua se modificando conforme as alterações comportamentais da sociedade no decorrer de sua história. Como a sociedade não é estática, a família e o direito sempre estarão se moldando às mudanças para suprir as necessidades que venham a aparecer.

Esse novo paradigma torna o afeto um elo de fundamental importância para a união das pessoas em uma família. Assim sendo, Dias (2010, p. 28) afirma que, “cessado o afeto, está ruída a base de sustentação da família“.

3 A Possibilidade de Múltipla Filiação Registral no Ordenamento Jurídico Brasileiro       

Segundo Lôbo (2008, p. 57), a opção do legislador brasileiro pela paternidade socioafetiva está referida nos arts. 1.593, 1.596, 1.597, V, 1.605 e 1.614 do Código Civil de 2002. Assim, atualmente, o conceito de filiação abriga os filhos de qualquer origem, em igualdade de direitos, sendo incompatível com o predomínio da realidade biológica, distinguindo, então, a genética e a paternidade.

Portanto, o que vem preponderando é a razão da proteção à criança, ficando essa à mercê da vontade dos pais. Se já existe o vínculo de filiação, não mais interessando a situação parental, não se deve desconstituir o elo familiar como se o filho fosse um bem que, através da manifestação da vontade, possa ser adquirido ou descartado.

O conceito de filiação abriga os filhos de qualquer origem, em igualdade de direitos, sendo incompatível com o predomínio da realidade biológica, distinguindo, então, a genética e a paternidade. Contudo, como demonstrado em estudo anterior, a doutrina somente reconhece a filiação socioafetiva quando estão presentes os requisitos que caracterizam a posse de estado de filho, ou seja, quando demonstrados o trato, o nome e a fama.

A socioafetividade tornou-se, então, uma das maiores características da família atual, em face desses novos valores eleitos pela Magna Carta. Muito embora na Constituição Federal não haja referências expressas entre afetividade e consanguinidade, em seu art. 227, § 6º, deixa clara a igualdade entre filhos, “havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção“. Nesse mesmo sentido, o art. 1.593 do Código Civil estabelece que “o parentesco é natural ou civil conforme resulte de consanguinidade ou outra origem“.

A concepção eudemonista altera a percepção jurídica da família e, assim, impõe a construção de um novo conceito de filiação, uma vez que tal concepção reflete na filiação como uma satisfação com o nascimento emocional desse filho, conectando-o à família através do amor, do afeto e, assim, dando-lhe conforto e segurança.

Para a psicanálise, a figura dos pais é fundamental para a construção da personalidade e da sexualidade dos filhos [1]. Da mesma maneira, Villela (1979, p. 401) sustenta que a paternidade e a maternidade se apresentam para a ciência jurídica como conceito de difícil definição. Contudo, o Direito de Família procura analisar a paternidade e a maternidade como uma função a ser desempenhada em prol dos filhos.

Pode-se atribuir, assim, que a filiação jurídica não depende de religião ou consanguinidade, mas, sim, de cultura, conforme demonstrado em capítulos anteriores, pois o desenho familiar se amolda conforme as mudanças e os avanços sociais, tornando-se, assim, a família um instrumento de satisfação pessoal, na qual se buscam a proteção, a solidariedade e, principalmente, a dignidade da pessoa humana.

A possibilidade do reconhecimento voluntário da paternidade no registro civil da criança e do adolescente já existia desde a Lei nº 8.560/92, que incentivava, através de políticas públicas, mecanismos para reconhecimento de paternidade. Contudo, a filiação plural vai além da simples parentalidade socioafetiva, pois nela coexistem ambas as filiações, a biológica e a afetiva simultaneamente.

A justificativa que ensejou a Lei nº 11.924/09 ficou por conta da afetividade recíproca entre enteados e padrasto/madrasta e o estado de filho que vivenciam.

4 A Questão Registral da Múltipla Filiação e as Repercussões da Lei nº 11.924/09            

A Lei nº 11.924, de 17 de abril de 2009, conhecida popularmente como Lei Clodovil Hernandez, foi assim chamada porque se trata de um projeto apresentado à Câmara dos Deputados pelo então Deputado Federal Clodovil Hernandes, que autoriza a alteração da Lei de Registros Públicos para permitir ao enteado ou à enteada adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta [2]. A Lei nº 11.924/09 corroborou esses novos paradigmas ao determinar uma alteração no art. 57 da Lei nº 6.015/73.

Nesse sentido, trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro uma grande inovação para a realidade das famílias contemporâneas, porque é cada vez mais comum encontrar famílias recompostas e, nesses casos, tal lei permite ao enteado ou à enteada usufruir de um nome que reflete sua realidade e sua posse do estado de filho. A lei, em tese, não trata da retirada do nome de família biológica, mas do simples acréscimo de outro nome do padrasto ou da madrasta.

Nessa mesma ótica, Rodrigues e Teixeira (2010, p. 89) lecionam: “a multiparentalidade inaugura um novo paradigma do Direito Parental no ordenamento brasileiro. Para que ela se operacionalize, contudo, é necessário que seja exteriorizada através de modificações no registro de nascimento”.

Contudo, mesmo antes do advento da lei, a questão foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, que decidiu pela possibilidade do acréscimo do sobrenome do padrasto, embora não se trate de hipótese de multiparentalidade:

NOME. ALTERAÇÃO. PATRONÍMICO DO PADRASTO. O nome pode ser alterado mesmo depois de esgotado o prazo de um ano, contado da maioridade, desde que presente razão suficiente para excepcionar a regra temporal prevista no art. 56 da Lei nº 6.015/73, assim reconhecido em sentença (art. 57). Caracteriza essa hipótese o fato de a pessoa ter sido criada desde tenra idade pelo padrasto, querendo por isso se apresentar com o mesmo nome usado pela mãe e pelo marido dela. Recurso não conhecido.” (STJ, REsp 220.059/SP, 2ª S., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.11.00, DJU 12.02.01)

Segundo os ensinamentos de Guimarães (1999, p. 416), o “nome“, em termos gerais, é entendido como “a palavra que identifica a pessoa, singular ou coletiva, ou a coisa, para distingui-la de outras“, e o “nome civil” como “aquele dado à pessoa desde o nascimento, registrado no Registro Civil das Pessoas Naturais, e que, com as exceções da lei, deve acompanhá-la por toda a vida“. Em outras palavras, o nome é a identificação no meio familiar e social da pessoa, e, nesse sentido, Gagliano e Pamplona Filho (2013, p. 135) destacam que os direitos da personalidade são “aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais“.

Os arts. 16 a 19 do Código Civil de 2002 trazem a segurança ao nome, sendo ele um dos direitos da personalidade e, assim, possui todas essas características como tal. Tartuce, em seus ensinamentos, faz a seguinte classificação:

Os direitos da personalidade são tidos como intransmissíveis, irrenunciáveis, extrapatrimoniais e vitalícios, eis que comuns à própria existência da pessoa. Trata-se ainda de direitos subjetivos, inerentes à pessoa (inatos), tidos como absolutos, indisponíveis, imprescritíveis e impenhoráveis.” (2011, p. 86)

Com a nova Lei, acresce-se a possibilidade de no nome constar o sobrenome apenas da mãe ou do pai e do padrasto ou da madrasta, ou todos, dos pais biológicos e do padrasto ou da madrasta. Contudo, mesmo antes da criação dessa nova Lei, no Superior Tribunal de Justiça já havia o entendimento de que seria permitida a supressão de patronímico paterno em decorrência de abandono, aplicando-se, para tanto, os métodos de interpretação sistemática e teleológica de forma integrada:

CIVIL. REGISTRO PÚBLICO. NOME CIVIL. PRENOME. RETIFICAÇÃO. POSSIBILIDADE. MOTIVAÇÃO SUFICIENTE. PERMISSÃO LEGAL. LEI Nº 6.015, DE 1973, ART. 57. HERMENÊUTICA. EVOLUÇÃO DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I – O nome pode ser modificado desde que motivadamente justificado. No caso, além do abandono pelo pai, o autor sempre foi conhecido por outro patronímico. II – A jurisprudência, como registrou Benedito Silvério Ribeiro, ao buscar a correta inteligência da lei, afinada com a ‘lógica do razoável’, tem sido sensível ao entendimento de que o que se pretende com o nome civil é a real individualização da pessoa perante a família e a sociedade.” (STJ, REsp 66.643/SP, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 21.10.97, DJ 10.12.97)

O motivo principal da inclusão do nome foi, justamente, proporcionar às novas famílias um meio de demonstrar a posse do estado de filho que vivenciam e o vínculo afetivo estabelecido no seio familiar.

Sendo assim, em face dos novos valores eleitos pela Constituição Federal de 1988, por que não acumular as parentalidades socioafetiva e genética? Uma vez que a multiparentalidade pode dar grande contribuição para que os elos afetivos não sejam desfeitos.

Dessa forma, como define Fachin (apud LÔBO, 2008, p. 516), a “aplicação da lei deve sempre realizar o princípio, consagrado como critério significativo na decisão e na aplicação da lei, tutelando-se os filhos como seres prioritários“. Porém, os problemas acabam surgindo quando da dissolução do casamento ou da relação convivencial, pois nesse momento surgem efeitos jurídicos sob os filhos. Em outras palavras, da dissolução conjugal surgem alguns direitos e deveres para os pais da criança, independentemente se são pais biológicos ou afetivos.

Outro dilema que assombra o tema é a possibilidade de anulação do registro civil diante da dissolução da relação conjugal. Assim, questiona-se se teriam os pais afetivos ou seus herdeiros o direito de negar a paternidade ou anular o registro civil.

Conforme o caput do art. 1.609 do Código Civil, “o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável (…)“. Sendo assim, a doutrina argumenta, pois, uma vez a filiação socioafetiva sendo alicerçada nos laços de afeto, uma vez inexistindo esse sentimento, mesmo existiria a relação parental.

Como se vê, existem ambos os argumentos. De qualquer sorte, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, essa situação, indiscutivelmente, já está pacífica quanto a sua irrevogabilidade. Ou seja, trata-se da chamada “adoção à brasileira“, por tratar-se de um reconhecimento voluntário de paternidade, e, assim, equipara-se à paternidade adotiva.

Incidem também outras questões de ordem prática e jurídica, pois se questiona, assim, como seria a prestação de alimentos, a guarda e a visitação e a questão sucessória.

Assim, como lembra Cassettari (2014, p. 141), “são inúmeros e, quiçá, inesgotáveis os efeitos da multiparentalidade, haja vista que, além destes, muitos outros ainda serão descobertos e debatidos“.

4.1 Direito de Visita e Guarda   

A lei cuida da guarda dos filhos em oportunidades distintas: quando do reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento (Código Civil, arts. 1.611 e 1.612) e quando da separação dos pais (Código Civil, arts. 1.583 a 1.589). A guarda dos filhos é, implicitamente, conjunta, apenas individualizando-se quando ocorre a separação de fato ou de direito dos pais. Também quando o filho for reconhecido por ambos os pais, não residindo eles sob o mesmo teto e não havendo acordo sobre a guarda, o juiz decidirá atendendo ao melhor interesse do menor (Código Civil, art. 1.612). O critério norteador na definição da guarda é a vontade dos genitores.

Mesmo que fique acordada entre os pais a definição da guarda e da visitação, esta dependerá da homologação judicial, o que só ocorre após a ouvida do Ministério Público. Evidenciado que o acordado entre os pais não atende aos interesses dos filhos, o juiz pode deliberar de forma diversa, tendo a faculdade de não homologar a separação (Código Civil, art. 1.574, parágrafo único).

Quando não for possível o acordo entre os pais quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada de acordo com a nova Lei nº 11.698/08. Nesse sentido, tal guarda assegura aos filhos que seus pais tenham maior participação em suas vidas. A participação no processo de desenvolvimento integral dos filhos leva à pluralização das responsabilidades, estabelecendo verdadeira democratização de sentimentos, pois a finalidade é consagrar o direito da criança e de seus dois genitores, colocando um freio na irresponsabilidade provocada pela guarda individual. Sendo assim, nos dizeres de Cassettari (2014, p. 117), “deve ser buscado sempre o melhor interesse da criança, não havendo preferência entre parentalidade biológica ou afetiva“.

                      

4.2 Dos Alimentos            

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais manifestou-se sobre pedido de alimentos proposto pela enteada contra a madrasta:

DIREITO DE FAMÍLIA. ALIMENTOS. PEDIDO FEITO PELA ENTEADA. ART. 1.595 DO CÓDIGO CIVIL. EXISTÊNCIA DE PARENTESCO. LEGITIMIDADE PASSIVA. O Código Civil atual considera que as pessoas ligadas por vínculo de afinidade são parentes entre si, o que se evidencia pelo uso da expressão ‘parentesco por afinidade’, no § 1º de seu art. 1.595. O art. 1.694, que trata da obrigação alimentar em virtude do parentesco, não distingue entre parentes consanguíneos e afins.” [3]

O acórdão teve como base legal para fixação dos alimentos o fato de a madrasta ser parente por afinidade da criança, ou seja, sua enteada. No entendimento de Teixeira e Rodrigues (2010, p. 23):

Para a fixação dos alimentos, o Código Civil utiliza-se do termo ‘parente’ (no art. 1.694), sem fazer distinção ou restrição quanto às espécies deste; sendo a afinidade um tipo de parentesco, daria ela, também, legitimidade para o pedido de alimentos. Essa fundamentação deve ser vista com reservas, pois em várias situações a lei limitou os efeitos irradiados ao parentesco sem abranger a afinidade, como foi o caso da herança e poderíamos pensar, também, nos alimentos.”

Além disso, acredita-se que a interpretação sistemática das normas que regulamentam o dever de alimentar conduz ao entendimento de que essa obrigação, fundada na solidariedade familiar, não se estende aos parentes por afinidade. Ao analisar o conteúdo dos arts. 1.696 e 1.697, percebe-se que o legislador estabelece uma ordem de preleção entre parentes que devem ser chamados ao dever de alimentar.

No art. 1.696, está disposto que o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, além de recair nos demais ascendentes, segundo o grau de parentesco. O mesmo se aplica ao art. 1.697, que afirma que na falta dos ascendentes, ou seja, parentes biológicos, civis ou socioafetivos, a obrigação alimentar será transferida aos descendentes – que guardam, obviamente, o mesmo tipo de parentesco que os ascendentes mencionados no art. 1.696.

Em outras palavras, na ausência de parentes na linha reta, a obrigação se volta para os parentes colaterais: irmãos unilaterais e bilaterais, excluídos, dessa forma, os parentes afins, que não constam de tal ordem hierárquica. Nesse caso, o legislador se omitiu quanto ao dever/direito aos parentes afins.

Entretanto, os parentes afins equiparam-se aos consanguíneos e civis, pois se trata de parentesco afetivo. Conforme o art. 1.593 do Código Civil, in verbis, “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem“.

Assim, reconheceu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais que “o direito à igualdade formal e material presentes na Constituição Federal deve permear a relação de perfilhação existente nas famílias recompostas, considerando como filhos todos os que efetivamente se portem como pais e filhos[4].

Em síntese, pelo princípio da supremacia do interesse da criança e do adolescente e pela predileção do ordenamento jurídico brasileiro pela verdade socioafetiva, a manutenção da obrigação alimentar dos pais é assegurada não apenas pelo assento constitucional (art. 229), como também expressa no Código Civil em seu art. 1.634 e no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 22. Sendo assim, com a dissolução da união conjugal não há possibilidade da renúncia da paternidade socioafetiva. Não se pode falar em distinção entre os filhos biológico e afetivo, sendo então assegurados os mesmos direitos e deveres para com seus ascendentes e descendentes.

4.3 Direito Sucessório    

O Código Civil de 1916 reconhecia apenas a filiação baseada na presunção pater is est, resquícios herdados do Direito Romano. Assim, os filhos advindos de relacionamentos extraconjugais não tinham sua filiação declarada e, ainda, era vedada a eles a busca pelo reconhecimento biológico.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, ficou estabelecida a igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem genética, o que fez uma adaptação da legislação infraconstitucional. Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro tornou-se mais eficiente na resolução das demandas geradas pelo conflito criado entre a paternidade socioafetiva análogas à adoção e à paternidade biológica.

Então, conforme as relações de parentesco é que se define a ordem de vocação sucessória, ou seja, a existência de herdeiros necessários estabelecerá como se dará a sucessão legítima, pois, conforme traz Zeno Veloso:

A morte, a abertura da sucessão e a transmissão da herança aos herdeiros ocorrem num só momento. Os herdeiros, por essa previsão legal, tornam-se donos da herança ainda que não saibam que o autor da sucessão morreu ou que a herança lhes foi transmitida. (…) o legislador concilia a transmissão automática e por força da lei da herança, no próprio momento da morte do de cujus, com a necessidade de os herdeiros aceitarem a herança e com a possibilidade de eles preferirem repudiá-la.” (2003, p. 1.598)

Nesse sentido, em relação aos filhos, independentemente da forma de filiação (biológica e/ou afetiva), na abertura da sucessão, cria-se uma linha de sucessão para cada pai (ou mãe) que o filho tiver, e isso se dará na condição de herdeiros necessários.

A Constituição Federal de 1988, no art. 227, e o Código Civil de 2002, no art. 1.596, preveem expressamente: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação“. Portanto, o reconhecimento da filiação socioafetiva e da multiparentalidade como nova forma de entidade familiar é de tão importância, pois esses possuem os mesmos direitos, inclusive sucessórios.

O acórdão em tela, de setembro de 2012, traz consigo uma tendência na jurisprudência brasileira, em respeito aos princípios do Direito de Família, sobretudo o da dignidade da pessoa humana e o da afetividade, expressamente vislumbrada na preponderância do afeto sobre a consanguinidade.

Contudo, não foi sempre assim. Somente após a Lei nº 6.515/77 que os filhos de qualquer natureza foram equiparados através dos dispositivos que fulminaram a discriminação anteriormente positivada no ordenamento jurídico. Todavia, nem mesmos os filhos adotados tinham direito à sucessão antes da Constituição e, após a sua promulgação, o sistema jurídico passou a reconhecer de fato a relação paterno-filial fundada em vínculos afetivos, concebendo-se a noção de paternidade socioafetiva.

Com base no princípio da igualdade entre os filhos, no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, na solidariedade e no melhor interesse da criança e do adolescente, pacifica-se então o art. 1.593 do Código Civil, que pontua que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem“.

Portanto, diante do exposto, entende-se que não haverá óbices para o recebimento de heranças para a divisão do pagamento de alimentos e tampouco obstáculos para a cumulação de nomes de família.

4.4 Direito Previdenciário          

Os efeitos jurídicos da filiação socioafetiva estendem-se, também, aos direitos previdenciários, uma vez que o estado de filho lhe garante tal direito. Conforme Kertzman (2014, p. 34), os tipos de regimes previdenciários existentes no país são três, quais sejam: o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), administrado pelo Poder Público; os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), também gerenciado pela Administração Pública; e o Regime de Previdência Complementar, regido por órgão privado.

Os beneficiários da Previdência Social são os segurados e seus dependentes, conforme prevê a Lei nº 8.213/91, em seu art. 10: “Os beneficiários do Regime Geral de Previdência Social classificam-se como segurados e dependentes, nos termos das Seções I e II deste capítulo“. Dessa forma, serão beneficiados os filhos que sejam menores de 21 anos e não emancipados, ou, independentemente da idade, os relativa ou absolutamente incapazes, pertencentes à primeira classe de beneficiários.

No que tange à multiparentalidade para o Direito Previdenciário, Cohen e Felix (2013, p. 34) ensinam que “estes podem ser observados quando do seu reconhecimento, visto que, nesses casos, o filho se torna dependente de, no mínimo, três pessoas, por exemplo, dois pais e uma mãe“.

Nesse estágio, independentemente do regime previdenciário a que os pais pertençam, se todos os assegurados da Previdência Social vierem a falecer, o filho terá direito ao recebimento cumulado de, no mínimo, três pensões por morte, muito embora a legislação seja omissa quanto à hipótese de cumulação desse benefício no caso de morte dos pais.

A ministra-relatora concedeu em seu voto a pensão por morte sustentada no princípio constitucional da igualdade entre os filhos, pois em seu voto ela deixa claro que o direito previdenciário estende-se aos “filhos de qualquer condição e deve-se entender que será considerado como filho toda pessoa que foi acolhida, criada, mantida e educada, mesmo que não seja filha biológica”. Portanto, embora não possuísse vínculos de sangue, fora demonstrado o estado de filho com seus devidos requisitos para tal.

Vale ressaltar que os efeitos jurídicos da filiação socioafetiva são recíprocos, ou seja, os ascendentes também gozam dos mesmos direitos.

Diante de tais entendimentos jurisprudenciais, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro, muitas vezes, tem sido omisso quanto aos direitos gerados da multiparentalidade amparada constitucionalmente. Os julgadores, ao decidirem, trazem para a relação de afetividade o mesmo status da filiação biológica, claro que se realmente nas relações existam o tratamento comum presente entre pais e filhos, ou seja, se há o vínculo de afetividade recíproco. Assim, ao ser confirmada a existência da relação, sob ela passam a incidir todos os direitos inerentes à filiação.

4.5 Efeitos Eleitorais        

A multiparentalidade também tem seus efeitos no direito eleitoral, no que diz respeito à causa de inelegibilidade. O art. 14, § 7º, da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre a inelegibilidade do cônjuge e dos parentes dos chefes do Executivo, in verbis:

Art. 14. (…). 

  • 7º São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.”

Ao analisar a redação constitucional disposta acima, percebe-se que a filiação socioafetiva não gera efeitos somente no âmbito do Direito de Família e Sucessões, pois gera efeitos também em outros ramos do Direito, como, no caso, no Direito Eleitoral (TEIXEIRA, 2013).

Em síntese, ficou demonstrado que os efeitos jurídicos pertinentes ao reconhecimento da paternidade socioafetiva trazem consigo importantes consequências, tanto para o mundo jurídico como para a sociedade no todo, pois a extensão da família afetiva reflete até no Direito Público, quando esse alcança o direito eleitoral com a aplicação da inelegibilidade para os filhos socioafetivos.

5 Conclusão          

As questões familiares devem ser interpretadas antes de tudo à luz dos preceitos supremos do ordenamento jurídico pátrio, os quais reconheceram a pluralidade de configurações da entidade familiar, expressa ou tacitamente, rejeitando a percepção coalha de consideração exclusiva da organização formada por um pai, uma mãe e filhos, estes ligados àqueles apenas biologicamente. Portanto, como se demonstrou, o reconhecimento da posse do estado de filho é de grande valia para a configuração da filiação socioafetiva, uma vez que, estando presentes os requisitos do tractatus (trato), nomem (nome) e reputatio (fama), não há o que se questionar quanto ao status de paternidade/filiação.

Com o advento da Lei nº 11.924, de 17 de abril de 2009, ficou clara a opção do legislador brasileiro pela paternidade socioafetiva em face da paternidade puramente biológica, pois através da referida Lei, popularmente conhecida como Lei Clodovil Hernandez, o ordenamento jurídico brasileiro passa a autorizar a alteração da Lei de Registros Públicos para permitir ao enteado ou à enteada adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta. Dessa forma, o nome, que é um direito fundamental personalíssimo, passa a expressar o que os laços de afeto, carinho e amor já demonstravam, que é a relação pai e filho.

Acompanhando esses progressos, a filiação socioafetiva, além do direito inovador de ser contemplada pela dupla paternidade registral, poderá, no futuro, vislumbrar a reciprocidade que permeia os alimentos, a guarda, a visita, a vocação sucessória, os benefícios previdenciários e as restrições eleitorais. Diante de todo o exposto, conclui-se que a paternidade/maternidade é muito mais que simples laços sanguíneos, pois ser pai ou mãe depende de amor, de entrega e de cuidados para com o filho. Não será um papel escrito com o nome que mudará os sentimentos recíprocos de pai/mãe e filho. Contudo, para resguardar os direitos e as obrigações que ambos possuem, faz-se necessário que o Direito lhes dê respaldo legal e garantias do reconhecimento da filiação socioafetiva.

                                  

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[1] CHEMANA, Roland. Dicionário de psicanálise. Trad. Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995. p. 158-159.

[2] QUEIROZ, Fabíola Gabriela Pinheiro de. A Lei nº 11.924/09 e seus reflexos na árvore genealógica familiar. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2.812, 14 mar. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/18648>. Acesso em: 5 jun. 2014.

[3] TJMG, AC 1.0024.04.533394-5/001, 4ª C.C., Rel. Des. Moreira Diniz, j. 20.10.05, DJMG 25.10.05.

[4] TJMG, Ap. Cível 1.0000.00.269153-3/000-2CC, Des. Rel. Brandão Teixeira, publ. 04.10.02.

 

Respostas de 2

    1. Prezada Dra. Daniela,
      Só temos a agradecer por sua excelente contribuição ao meio jurídico, especialmente de matéria tão sensível no Direito de Família.
      O nosso escritório está à sua disposição, inclusive caso queira nos enviar novos materiais para publicação em nosso site.
      Att.
      RKL Escritório de Advocacia

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